Luciano Aragão Santos

A política pública de combate ao trabalho em condições análogas à escravidão, ou escravidão contemporânea, iniciou-se em 1995 no Estado brasileiro, com o início sistematizado das atividades de fiscalização. Em 2024 essa política completou 30 anos e, para surpresa de todos, sofreu um dos maiores reveses da sua história.
Essa política, iniciada com o eixo de fiscalização, foi se estruturando ao longo dos anos, incorporando medidas preventivas e de reabilitação, além do tradicional viés repressivo.
Alguns momentos podem ser considerados marcos no avanço e desenvolvimento dessa política. O primeiro deles foi a edição, no início de 2003, do I Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, instrumento cujo escopo foi a definição de ações concretas para guiar a atuação do Estado em seus esforços para erradicar o trabalho em condições análogas à escravidão.
Em julho desse mesmo ano, constituindo o segundo marco, foi criada a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, órgão colegiado encarregado de coordenar e avaliar a efetivação das ações previstas no Plano Nacional.
Em novembro de 2003 foi criada a lista suja, instrumento do Ministério do Trabalho e Emprego que constituiu um dos maiores avanços na política, pois tornava público, periodicamente, o nome daqueles empregadores que comprovadamente submeteram pessoas a condições análogas à escravidão.
Apesar de não prever sanções, a lista tornou-se um importante mecanismo de controle social, permitindo que agentes privados se posicionem em relação àqueles empregadores com quem mantinham relações comerciais, civis ou consumeristas.
Em 2017 foi publicada a Portaria 1.129 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-do-trabalho">Ministério do Trabalho</a> que previu que a publicação da lista suja dependeria de autorização do ministro do Trabalho, retirando a autonomia da área técnica da pasta, que até então conduzia o processo com autonomia e independência de controles políticos.
Em face da portaria foi ajuizada arguição de descumprimento de preceito fundamental, a ADPF 489/DF, ao argumento de que “foi editada ‘com o inconfessável propósito de inviabilizar uma das mais importantes políticas públicas adotadas no Brasil para proteção e promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais’ (…)”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Em sede de medida cautelar a ministra Rosa Weber deferiu o pedido liminar e suspendeu a eficácia da Portaria 1.129 até apreciação definitiva pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. Em sua decisão registrou que:
“(…) a exigência de ato prévio do Ministro do Trabalho para inclusão do empregador na “lista suja” do trabalho escravo, bem como para a divulgação dessa lista, como prescrevem o art. 3o, § 3o, e o art. 4o, § 1o, da Portaria no 1.129/2017, são medidas administrativas que limitam e enfraquecem as ações de fiscalização, ao contrário de promoverem a diligência necessária para a adequada e efetiva fiscalização. Ainda constituem medidas que condicionam a eficácia de uma decisão administrativa a uma vontade individual de Ministro de Estado, que tem notório viés político".
Após a decisão cautelar foi editada nova portaria (Portaria 1.293) que revogou integralmente a Portaria 1.129, não repetindo os dispositivos questionados. A Portaria 1.293 estabeleceu que a organização e divulgação do cadastro ficariam a cargo do corpo técnico do Ministério do Trabalho, excluindo a previsão de ingerência do ministro do Trabalho. Por essa razão a ADPF 489 foi extinta por perda superveniente do objeto.
Contudo, a discussão retornou ao STF na ADPF 509, na qual foi questionada a constitucionalidade da lista suja por violação ao princípio da reserva legal. O Supremo, naquela oportunidade, reconheceu a constitucionalidade da lista suja, pois é instrumento que efetiva a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11) e promove a dignidade da pessoa humana ao fortalecer o combate a instrumentalização do ser humano<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Mesmo após todo o embate e com a manutenção da lista suja como um instrumento de transparência conduzido pela área técnica do Ministério do Trabalho, mais uma vez foi realizada uma investida para interferência política na lista suja. É que em 29/07/2024 foi publicada a Portaria Interministerial 15 do Ministério do Trabalho e do Ministério dos Direitos Humanos, prevendo a possibilidade de acordos pelos empregadores comprovadamente flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à escravidão com o Ministério do Trabalho, para fins de exclusão da lista suja e ingresso em uma outra lista, denominada cadastro de empregadores em ajustamento de conduta.
A nova portaria enfraquece esse importante instrumento permitindo que, pela primeira vez desde a sua criação, empresas deixem de integrar essa relação, cujo fim sempre foi o de dar publicidade a essa grave violação de direitos humanos. O resultado inevitável dessa exclusão da lista suja é a proteção desses empregadores contra as medidas de controle social que surgiram após o advento da lista.
Para agravar ainda mais a situação, há previsão expressa de que frustrada a tentativa de acordo com a área técnica em audiência de composição, será encaminhada ao empregador proposta final de acordo, submetida ao ministro do Trabalho antes do encaminhamento (art. 5º, parágrafo 7º). Trata-se de verdadeira ingerência política no processo de exclusão de empresas da lista suja, em contraste com toda o período de existência da própria lista.
Essa interferência também remonta a antiga Portaria 1.129, em relação a qual o STF já havia registrado que são inadmissíveis medidas que condicionem a eficácia da lista suja a vontade de ministro de Estado.
A Portaria 15 do MTE e do MDHC constitui, portanto, claro retrocesso na política do Estado Brasileiro de Erradicação do Trabalho Escravo, desprezando os 30 anos de esforços para erradicação dessa violação a direitos humanos e toda a construção social e jurisprudencial que reconhecem a importância da lista suja na sociedade brasileira.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> STF. ADPF 489/DF. Disponível em: <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313126004&amp;ext=.pdf">https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313126004&amp;ext=.pdf</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=451765&amp;ori=1">https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=451765&amp;ori=1</a>.

lista suja do trabalho escravo

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JOTA

Portaria 15 do MTE e MDHC despreza 30 anos de esforços para erradicação dessa violação a direitos humanos

A nova lista suja: ingerência e retrocesso no combate ao trabalho escravo

Portaria 15 do MTE e MDHC permite ingerência na lista suja e despreza 30 anos de esforços para erradicação dessa violação a direitos humanos