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Nova Lex Mercatoria

A nova Lex Mercatoria e a vontade

As funções da forma e do consenso na vida dos contratos internacionais

José Augusto Fontoura Costa
31/08/2021|12:38
Atualizado em 31/08/2021 às 12:39
lex mercatória
Crédito: Unsplash

Como se sabe, é corrente a afirmação da existência de uma nova Lex Mercatoria fundada na coesão social de uma comunidade transnacional de comerciantes internacionais. A noção geralmente está associada a conjuntos de fontes materiais passíveis de serem encontradas em consolidações e compilações, bem como descobertas nos interstícios dos usos e práticas comerciais.

A identificação de fontes formais é, porém, controversa:da perspectiva de uma sistemática formal de ordenamento jurídico – pelo menos no sentido conferido por Bobbio, Hart e Kelsen, i. a. – evidencia-se a falta de cadeias formais de validação normativa e de estruturas escalonadas.

Daí o jogo de é ou não é a respeito da sua existência como forma jurídica passa a ser, como é comum em nossa área, uma contenda conceitual. Porém, considerando que a teoria orienta a prática e, ao mesmo tempo, compõe a matéria a partir da qual se constrói a legitimidade do Direito, essa disputa não é vazia ou irrelevante. Assim, torna-se importante observar a prática efetiva da arquitetura e da aplicação dos contratos internacionais para observar se há, ou não, a convicção dos profissionais envolvidos a respeito de um Direito transnacional dos comerciantes.

Por isso é interessante compreender o papel da vontade das partes na estruturação dos contratos internacionais e, para tanto, pode-se retomar a temática do formalismo contratual, ainda que muitas vezes tida por mera relíquia de cristaleira.

Uma das narrativas fundamentais do Direito Privado contemporâneo é a da modernização decorrente da eliminação do formalismo em prol da vontade das partes. Essa modificação histórica ocorre por meio (1) da perda de importância das roupagens formais em benefício da efetiva vontade individual e (2) da superação de uma proteção jurídica limitada a um conjunto de tipos contratuais para uma capaz de abranger quaisquer acordos.

Trata-se mais de um mito fundante da contratualística atual do que uma constatação histórica. Não que inexistam bons estudos a respeito; há. O ponto é outro: a repetição insistente desse conto é responsável pela consolidação de uma determinada imagem do contrato tendente a se naturalizar e cristalizar em um esquema idealizado – o do consenso como substância do contrato – pois o apresenta como se fosse o mais elevado resultado do desenvolvimento histórico. Em outras palavras, é propriamente historicista.

Uma das vítimas dessa narrativa são os contratos formais, descritos como próprios dos albores do Direito. Por exemplo, conta-se que a wed do Direito anglo-saxão (anterior a Guilherme, o Conquistador, portanto) se refere a uma espécie de penhor, mediante o qual se entrega uma coisa de valor à contraparte ou a um terceiro como meio de dar nascimento, ao mesmo tempo em que se garante o cumprimento do prometido.

Também se identifica na stipulatio romana, marcada por uma troca ritual de fórmulas precisas por meio das quais as partes, em presença uma da outra, firmam o compromisso. São retratos de realidades pretéritas, supostamente superadas pelo desenvolvimento. Não obstante, é relevante lembrar que a stipulatio foi capaz de perdurar por mais um milênio: já aparecia na Lei das XII Tábuas (450 a.C.), podendo ser anterior, e ainda desempenhava um papel de protagonismo no período justinianeu. Além disso, aspectos formais abundam na prática moderna.

São, mesmo assim, apresentados ao escrutínio dos juristas modernos como métodos bem arcaicos, relacionados com explicações religiosas e, portanto, irracionais. Por isso, visto de longe, o formalismo parece fazer parte de um mundo já bastante distante, cujos fundamentos já deixaram de fazer sentido em um mundo tão moderno e sofisticado.

A primeira conclusão, portanto, poderia ser no seguinte sentido: a existência de eventuais tendências formalistas na lex mercatoria corrobora a hipótese de que esta é apenas um Direito primitivo, ainda em estado de formação, onde conjuntos de fontes materiais se organizam em torno de jurisdições ad hoc. Não é algo que se possa sustentar sem o risco do ridículo. Qualquer um que tenha acompanhado um caso internacional complexo sabem que nada aí se assemelha ao ritualismo da wedou da stipulatio e, muito menos, de promessas isoladas e singelas cujo único problema sério era o de controlar o moral hazard.

Ora, a formalidade é fundamental para estabelecer, com clareza, os âmbitos do negócio. E isso se dá em ao menos duas dimensões: a delimitação temporal e o recorte textual dos instrumentos contratuais. Essa capacidade de cindir o tempo e o discurso para dar fronteiras bem definidas é fundamental para a segurança e, como tal, para o bom funcionamento do comércio. O uso, na prática, de elementos formais determinantes do tempo e dos quatro cantos do contrato é essencial para a boa arquitetura e a boa gestão de operações internacionais sofisticadas.

Nesse sentido, vários aspectos do consensualismo, tendentes à psicologização do fundamento fático dos vínculos contratuais, são deletérios para a contratação internacional. Como foram projetados para servir de válvula de escape do sistema, estão sujeitos a quaisquer defeitos de fabricação capazes de instituir e banalizar o refluxo. Assim, v. g., a ampla admissão de provas, inclusive orais, para contraditar o texto de um instrumento contratual consolidado abre campo para expedientes com potencial para erodir a certeza e a celeridade, em razão da tendência a estender o tempo dos procedimentos.

Ora, já que a preocupação com a vontade dos indivíduos tem custos elevados, é importante compreender o que justifica seu aparecimento histórico e a ampla aceitação ocorrida, concomitantemente, nas duas principais famílias do Direito Ocidental, as do civil law e do common law, inclusive por meio de importantes críticas à noção de consideration.

Decerto, ainda que seja possível encontrar origens filosóficas do consensualismo nos séculos XVI e XVII, o privilégio do enfoque na vontade – e no encontro das mentes – se generalizou no século XIX. Talvez seja resultado de um momento em que a industrialização, que dependeu da conversão do trabalho e da terra em mercadorias precificáveis, dava ênfase à produção e circulação de bens móveis. Também é fenômeno que se relaciona com o reconhecimento político das liberdades e isonomia associadas à erosão de poderes da nobreza.

De uma perspectiva mais funcional, a difusão das construções teóricas do contrato em torno da noção de vontade individual está relacionada à necessidade de garantir juridicamente o fluxo de mercadorias e o cumprimento dos acordos por meio dos quais trabalhadores livres vendiam sua mão de obra.

Como contratar já não era um campo bissexto para as práticas civis, nem atividade exclusiva de comerciantes, a conveniência de atender àqueles para quem os contratos não são instrumento profissional, como trabalhadores e consumidores, terminou por favorecer a atribuição de validade e efeitos dos acordos, pois a assimetria de informação a respeito dos formalismos e significados do jargão empregado poderia envenenar a confiança dos leigos nas formas jurídicas do trânsito econômico.

Nesse sentido, é defensável a ideia de que o fortalecimento da noção de contrato como forma de expressão jurídica da vontade, albergada pela liberdade e isonomia, é concomitante à perda de centralidade do contrato comercial e, contanto, da própria lex mercatória. Quem necessita e se beneficia de uma fonte genérica de obrigações compreendida como acordo de vontades não são os profissionais do comércio em se trato diuturno; aí a noção de uma troca econômica entre profissionais comprometidos com uma ética própria tende a ser suficiente, inclusive quando se leva o pacto a julgamento[1].

Assim, a preferência por um tratamento formalista dos contratos comerciais faz sentido, sobretudo em razão de suas vantagens práticas – com destaque para a previsibilidade e a segurança interpretativa, bem como da circunstância de serem relações entre profissionais experientes e presumidamente diligentes. Pode-se, aí, abrir mão de instrumentos protetivos, os quais só são justificáveis para facilitar a atuação de atores relativamente desinformados e ingênuos.

Nesse sentido, a tendência de agrupamento normativo e principio lógico dos contratos em uma categoria única, sujeita a um regime indiferenciado, pode não ser uma boa política legislativa. Distinguir o que deve ser distinto pode ser muito vantajoso, atrelando aos acordos de tipos diversos regimes legais diferentes conforme as características de cada campo. Isso, decerto, sem prejuízo da importância teórica e prática de figuras jurídicas amplas e abstratas, como as categorias “negócio jurídico” e “contrato”.

Quando se soma “internacional” à qualificação “comercial” o assunto fica ainda mais sério. Ao contrário do tratamento pelos Direitos internos, onde a substituição do conceito de “vontade” pelo de “autonomia privada” predomina, nas operações internacionais é mais difícil, talvez inadequado, pautar-se por uma noção tão dependente da ideia de ordenamento jurídico, particularmente da alocação dos contratos nas cadeias de validação e controle de conteúdo existentes em uma ordem jurídica cujas completude e coerência são pressupostas.

Em outras palavras: quando um contrato é constituído como parte da cadeia de validação em um ordenamento jurídico, a autonomia privada se refere ao campo autorizado, em grande medida pelo princípio da legalidade em sentido amplo, para a criação de normas individualizas e realização de seus efeitos. A “autonomia privada” é esse campo de atuação autorizada aos particulares em questões de natureza privada. Não é a vontade, é a autorização para que atos derivados da vontade sejam válidos e eficazes. Isso nem sempre faz sentido em contratos fadados a vagar nos espaços trasnacionais.

Esse contexto acaba empurrando os contratos internacionais do comércio para um conjunto de estratégias já conhecido, mas bastante difícil de evitar.

Em primeiro lugar, estão os textos prontos e repetitivos. Destacam-se, dentre eles, os contratos padronizados, muito comum em setores de commodities, bem como alguns produtos financeiros e seguros. Interessantíssimos, nesse particular aspecto, os contratos e diretrizes da FIDIC, os quais conseguem abranger operações de elevada complexidade por meio de instrumentos prêt-à-porter em um setor onde valores e sofisticação poderiam justificar clausulados taylormade.Há, também, as cláusulas padronizadas, como os INCOTERMSTM e a imensa gama de boilerplateclauses.

O uso de instrumentos repetitivos oferece uma vantagem bem maior do que a eventual economia de horas de advocacia: trata-se da segurança derivada de formas e fórmulas tantas vezes repetidas;reiteradas a ponto de restringirem sobremaneira as brechas pelas quais poderiam passar infiltrações consensualistas.

Porém nem tudo pode ser facilmente resolvido a partir de modelos consagrados setorialmente. Há operações cuja estrutura dependerá da formulação de instrumentos originais, ainda que com algum uso de cláusulas estandardizadas.

Há, aí, riscos: se um contrato padronizado possibilita a identificação do momento de sua firma como o do início da validade do instrumento, a existência de negociações extensas e complexas pode gerar imprecisões e mal-entendidos a respeito da cronologia da formação e modificação contratual. Nesse sentido, o uso de instrumentos pré-contratuais para delimitar formalmente o tempo, os deveres, os participantes e as responsabilidades são necessários.

Para os mesmos fins, o uso de listas com definições cuidadosas e a determinação dos quatro cantos do contrato por meio de mergerclausesé importantíssimo. Em outras palavras: formaliza-se de dentro para fora, buscando clareza e previsibilidade.

A propósito, antes de formular a crítica, algumas vezes relevante, a respeito do estilo dos contratos e da alegada tendência a macaquear os cacoetes do common law, deve-se recordar que, nas operações transnacionais, várias características desses instrumentos longos e complicados é justificada exatamente pelo ambiente normativo bastante complexo.

É por isso que, na prática, a aceitação daquilo que foi contemplado no instrumento e a presença de cuidados para não ir além de uma estruturação economicamente coerente das obrigações e deveres especificamente contratados tende a preponderar em detrimento de aberturas interpretativas e considerações subjetivas e psicológicas.

Daí a tendência pragmática a, no comércio internacional, favorecer o reconhecimento de aspectos formalmente confirmados e custar a admitir desvios interpretativos que se afastem dos sentidos normais dos textos; quando isso se admite, aliás, é mais em razão de considerações de racionalidade econômica do que da compreensão das vontades individuais.


[1]Há, sempre, curiosas coincidências. Enquanto escrevia este bre artigo, encontrei um trabalho recente e interessante a respeito da tensão entre consensualismo e formalismo na adjudicação de contratos comerciais. Para eventuais interessados, trata-se do trabalho de Felipe Jiménez. A formalisttheoryofcontractlawadjudication. Utah Law Review, v. 2020, n. 5, Artigo n. 1. 2021. Disponível em https://dc.law.utah.edu/ulr/vol2020/iss5/1/, consultado em 27 de agosto de 2021.logo-jota