João Ricardo Dias de Pinho

A Emenda Constitucional nº 103 de 2019, conhecida como “Reforma da Previdência”, alterou a redação do inciso XXI do art. 22 da Constituição da República, para outorgar à União a competência privativa para legislar sobre normas gerais de "inatividades e pensões" dos militares estaduais. Essa alteração teria, na leitura de alguns, aberto espaço para uma reforma do sistema previdenciário dos militares estaduais mediante lei federal.
Amparada provavelmente nessa leitura, a Lei Federal nº 13.954 de 2019 foi promulgada para disciplinar o “Sistema de Proteção Social dos Militares”, inserindo na redação do Decreto-lei 667 de 1969 a seguinte disposição:
“Art. 24-C. Incide contribuição sobre a totalidade da remuneração dos militares dos estados, do Distrito Federal e dos territórios, ativos ou inativos, e de seus pensionistas, com alíquota igual à aplicável às Forças Armadas, cuja receita é destinada ao custeio das pensões militares e da inatividade dos militares".
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O enunciado veicula típica regra de incidência tributária, disciplinando qual a materialidade, alíquota e base de cálculo da nova contribuição social dos militares, e sob esse aspecto praticamente exauriu a competência dos estados-membros para disciplinarem a incidência desse tributo.
Neste contexto, as questões que se colocam são: poderia norma geral veicular regra-matriz de incidência? Estariam os militares estaduais sujeitos a essa incidência independentemente de norma específica? As isenções previstas em leis estaduais, não reproduzidas na Lei Federal, estariam revogadas tacitamente?
O ponto subjacente a esses questionamentos não é novo, pelo contrário, perturba a literatura do direito tributário há um bom tempo, e envolve o conceito de “normas gerais”.
Autores notáveis se dedicaram ao estudo desse tema, a exemplo de Geraldo Ataliba<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a> e José Souto Maior Borges<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>, e embora tenham promovido avanços significativos na sua compreensão, a jurisprudência das Cortes Constitucionais tem enfrentado dificuldades para harmonizar o entendimento sobre as normas gerais. Compreende-se: a expressão é demasiadamente vaga.
Essas inflexões dos Tribunais Superiores refletem agora nas instâncias inferiores. Breve pesquisa revela quatro posicionamentos distintos sobre a disciplina da Contribuição Social dos Militares, a saber: (i) a norma geral pode instituir a contribuição, independente de lei específica (TJMS<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>); (ii) a norma geral não poderia instituir a contribuição (TJRS<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>); (iii) a norma geral poderia fixar uma alíquota mínima (TJSP<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>), (iv) a norma geral não pode revogar isenções previstas em leis específicas (TJSC<a href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a>) e (v) a norma geral pode revogar isenções previstas em leis específicas (TJPR<a href="#_edn7" name="_ednref7">[7]</a>).
A diversidade de entendimentos se mantém mesmo após o recente julgamento da ACO nº 3.396 no pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), onde se reconheceu a impossibilidade de lei federal fixar as alíquotas da contribuição devida pelos militares estaduais.
Ao que nos parece, na motivação do acórdão do STF estaria a dificuldade em se pacificar a jurisprudência dos tribunais estaduais, pois seu argumento central foi que o pacto federativo impede a União de definir o quantum da contribuição social aos regimes de previdência dos estados, quando compete aos entes subnacionais custear eventuais déficits atuariais.
<blockquote class="jota-article__eye">Nada foi dito sobre a (im)possibilidade de norma geral veicular norma de incidência tributária. A diferença é sutil, mas provoca ruídos fortes.</blockquote>
Seguindo a motivação exposta no julgamento da ACO nº 3.396, a alteração nas contribuições dos militares estaduais incapaz de gerar déficit atuarial não viola o pacto federativo.
Ocorre que, sob a ótica tributária, a violação ou não do pacto federativo tem por pano de fundo outro tópico: a autonomia política dos entes subnacionais em deliberar, junto aos seus parlamentos, os critérios de incidência da contribuição social. Autonomia que não decorre das disposições constitucionais veiculadas pelos arts. 42, § 1º c/c 14, §3º, X, mas sim daquelas constantes do § 1º do art. 149.
Colocando o debate nesses moldes, poderíamos concluir que a instituição da contribuição social dos militares, bem assim a revogação de isenções anteriormente concedidas, dependeriam da edição de leis locais, pois a norma geral editada pela União não faz às vezes de norma de incidência tributária, seja para instituir tal contribuição seja para revogar as isenções existentes.
No entanto, a situação fica mais complexa quando trazemos à tona o julgamento do RE 573540, Tema 55, onde, de certa forma, se deliberou que as competências tributárias têm regramento específico na Constituição.
Assim, a competência genérica para edição de norma sobre "inatividades e pensão", não incluiria a competência específica para edição de "norma tributária" sobre contribuição social destinada a regime previdenciário dos estados.
Logo, à União caberia editar normas gerais sobre as contribuições dos militares estaduais, não por força da nova disposição do art. 22, XI, (competência genérica), mas sim pela regra preexistente do art. 146, III da nossa Carta (competência específica).
Isso teria forte impacto na discussão, porque a Lei Federal nº 13.954 de 2019, promulgada como lei ordinária, não poderia assumir a condição de instrumento introdutório de norma geral tributária, uma vez que tal instrumento deve ser promulgado como lei complementar, por força da disposição do art. 146, III.
Neste cenário, a aplicação da regra do art. 24-C do Decreto-lei 667 de 1969, inserido pela Lei Federal nº 13.954 de 2019, seja como efetiva norma de incidência ou como norma geral tributária, não encontra respaldo na atual jurisprudência do STF.
O posicionamento mais provável da Corte será admitir como mínima a alíquota fixada pela regra federal, sem adentrar na discussão sobre sua natureza de norma geral.
A condição de alíquota mínima deve ser outorgada ao percentual federal em vista do § 4º do art. 9º da EC 103/2019, que estipula como mínima a alíquota fixada pela União para seus servidores.
Sacando esse argumento, o Supremo manteria coerência com a decisão da ADI nº 3.138. Lembrando que, consumado esse prognóstico, ficaria pendente a discussão sobre a possibilidade da norma do Decreto-lei regular a base de cálculo da contribuição dos militares estaduais.
De qualquer modo, sem a instituição pelos estados de normas de incidência da contribuição social dos militares, o horizonte aponta para uma crescente litigiosidade sobre o tema.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> Lei Complementar em Matéria Tributária, in Revista de Direito Tributário, n. 48, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Lei Complementar Tributária, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Processo nº 1405868-66.2020.8.12.0000. Disponível em: &lt;<a href="https://esaj.tjms.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do">https://esaj.tjms.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do</a>&gt;.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> Processo nº 0088926-49.2020.8.21.7000. Disponível em: &lt;<a href="https://www.tjrs.jus.br/novo/busca/?return=proc&amp;client=wp_index">https://www.tjrs.jus.br/novo/busca/?return=proc&amp;client=wp_index</a>&gt;.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> Processo nº 1004000-13.2020.8.26.0297. Disponível em: &lt;<a href="https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=1191740&amp;cdForo=9058">https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=1191740&amp;cdForo=9058</a>&gt;.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[6]</a> Processo nº 5024080-02.2020.8.24.0000/SC. Disponível em: &lt;<a href="http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#formulario_ancora">http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#formulario_ancora</a>&gt;.
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[7]</a> Processo nº 0002899-18.2020.8.16.9000. Disponível em: &lt;<a href="https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/2100000015315481/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-0002899-18.2020.8.16.9000">https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/2100000015315481/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-0002899-18.2020.8.16.9000</a>&gt;.

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JOTA

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