Mikhail Cancelier
Professor adjunto de Direito Privado da Faculdade de Direito da UnB. Doutor em Direito (UFSC). Advogado
Vendo e lendo, no último dia 28 de junho, as diversas notícias e posts referentes à comemoração do Dia do Orgulho LGBTQIA+ (sim, todas as letras são necessárias, atenção), me causou espanto o tanto que as manifestações, repletas de conteúdo dito representativo, falam sobre amor, sobre o direito de amar, sobre a liberdade de amar.
Ao final do dia, já praticamente assumindo a forma de um arco-íris, ficou muito claro, pelo menos pra mim, que falta à comunidade LGBTQIA+ (da qual orgulhosamente faço parte) atenção. E muita.
Falta atenção, pois a luta, na sociedade brasileira contemporânea, não é simplesmente por amor. A luta é por eficácia jurídica; por segurança jurídica, por igualdade jurídica. A luta é pelo Direito. É isso que nos falta, enquanto comunidade, e precisamos nos ater ao fato de que o Estado, que o Direito, hoje, não nos alcança com sua tutela.
O Estado não nos dá atenção. Entendo que o Direito que temos não é nosso, é emprestado. Explico: a criminalização da LGBTfobia, por exemplo, ocorre de forma indireta. Hoje, é considerada crime, pois o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) “entendeu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia” , assim, o STF enquadrou os crimes de homofobia e transfobia “como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria”. A Lei, no entanto, não existe.
Movimento semelhante ocorreu com o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O STF entendeu que famílias formadas por homossexuais deveriam ser reconhecidas como unidade familiar, interpretando o artigo 1.723 do Código Civil, que regulamenta a união estável, de modo que fosse também aplicado aos casais formados por pessoas do mesmo sexo, e, assim, chegou-se à viabilização do casamento entre essas pessoas. Aqui, mais uma vez, falta Lei.
Dessa forma, vamos sendo importados forçosamente ao sistema normativo nacional pelo Poder Judiciário, já que o Poder Legislativo insiste em não nos enxergar.
Tomemos, mais uma vez, o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, como exemplo. Dentre seus requisitos, para que seja reconhecida e gere efeitos jurídicos, encontra-se a publicidade[1], de modo que ao buscar a formalização de uma relação como uma união estável, deve-se comprovar essa ser uma relação pública. Ora, para pessoas heterossexuais não há, regra geral, grande dificuldade nesse movimento. Já para as pessoas LGBTQIA+, a dificuldade em comprovar tal requisito existe, pois o exercício público de nossas relações, com frequência, gera violência.
Mariana Bellussi, analisando dados de julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo, demonstra em sua pesquisa que a “publicidade tem se apresentado como um obstáculo para o reconhecimento das uniões estáveis” entre homossexuais.
Isso ocorre, pois a Lei é escrita ignorando e não reconhecendo nossa realidade, e, por consequência, não nos alcança com sua tutela, mesmo diante de uma “interpretação favorável”.
A desatenção estatal, no entanto, é ainda mais profunda, como se percebe da leitura da pesquisa intitulada “Violência LGBTQIA+ no Brasil”, executada e publicada pela FGV DIREITO SP, em dezembro de 2020. Por exemplo, ao serem questionados sobre casos relacionados à ocorrência de homofobia e transfobia em seus territórios, apenas 16, dos 27 entes consultados (26 Estados e o Distrito Federa), tinham estatísticas para fornecer; 11 Estados não conseguiram fornecer os dados solicitados. A pesquisa, em seu inteiro teor, demonstra que não temos dados estatais suficientes sobre nós, e que, em maior ou menor grau, de forma geral, nossa existência não é relevante para o Estado.
A ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais), “no Boletim n. 01”, publicado em maio deste ano, informa que os casos de assassinatos de pessoas transsexuais, no Brasil, segue alto, mesmo no atual cenário pandêmico e de menor interação social, causado pela COVID-19, tendo atingido número recorde em 2020.
Nesse sentido, a luta por representatividade jurídica é fundamental, e romantizar esse movimento, transformando-o em uma luta, apenas, de amor, é um desserviço. Trazer essa demanda pro campo afetivo, brindando somente cores e momentos felizes, é quase desumano com pessoas que são diariamente violentadas em nosso país por não terem acesso à Lei.
A Constituição Federal, positiva como Direitos Fundamentais, em seu art. 5º, nos incisos IX, X e XVI, a Liberdade de Expressão, Privacidade e a Liberdade de Reunião e Manifestação, respectivamente. O texto está escrito[2] e é destinado a todos nós. Por isso podemos expressar nosso amor em público, celebrar o Dia do Orgulho com Paradas festivas e assumir cargos políticos defendendo nossas pautas respectivas.
Esses Direitos, repetindo, estão postos. Escritos. Positivados. E todos, de acordo com o texto legal, devemos ter esses Direitos assegurados. O Estado, expressamente, nos autoriza. O Direito já existe. No entanto, esse movimento, autorizado pela legislação, não nos protege da violência ocasionada pelo exercício do Direito.
O Estado permite nossa manifestação, mas não nos protege quando nos manifestamos, e é aí que a nossa luta, enquanto comunidade, precisa ser mais presente e precisa. É uma luta pela constituição do Direito de exercermos nosso amor, de exercermos nossa existência. Hoje, temos liberdade para amar, mas não podemos exercê-la livremente, pois o exercício do nosso íntimo não é regulamentado, não é positivado. Por isso, nossa luta deve ser, sobretudo, pela constituição de Direitos. Não basta sermos livres para amar, o Estado tem que legitimar e regulamentar esse movimento, de modo a proteger o exercício de nossa liberdade.
Aqui é importante reforçar a necessidade de igualdade jurídica e de representatividade normativa.
Ocorre que, o Direito, trabalhado enquanto Lei, tem o condão de normalizar, normatizando, um comportamento e, dessa forma, consegue imprimir igualdade jurídica, mesmo que, muitas vezes, inexistente de fato. Mas a igualdade está lá. Está escrita. Por isso a Lei, o texto, a linguagem são tão importantes.
A comunidade LGBTQIA+ é desprovida de representatividade normativa.
Precisamos, então, lutar para entrarmos no universo do Direito. Não de forma indireta, como vem acontecendo. Temos que existir para a Lei. Temos que ter a palavra que nos representa escrita na norma. Precisamos ser positivados.
Evidente que os símbolos são importantes. É importante expor a imagem de uma bandeira que representa nossa comunidade, pois isso mostra que estamos ocupando aquele espaço. No entanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido para podermos exibir o tão repetido "LOVE IS LOVE”. Quando postamos “orgulho de ser quem somos”, não estamos nos vendo enquanto comunidade.
No dia do Orgulho LGBTQIA+ levantar o discurso, apenas, da liberdade de amar, é desrespeito com a nossa comunidade, é discriminatório, é classista, é demonstração de um privilégio que poucos têm em nosso país.
Um homem branco, cisgênero, com alto grau de instrução e com uma boa estrutura financeira/social, mesmo sendo homossexual, consegue proteção da violência que pode vir a ocorrer em função da sua orientação sexual. Ele recebe atenção do Estado em função de suas outras características, e, por conta delas é que consegue, também, se fazer ouvir enquanto homossexual. De modo completamente diverso, uma mulher preta, transsexual e hipossuficiente, dificilmente (para não dizer nunca) será ouvida. Não recebe atenção. Atenção jurídica. Atenção normativa. Aí, também, reside a necessidade da Lei, escrita, positivada. Ela, de algum modo, mesmo que de forma extremamente embrionária, equaliza.
Num contexto marcado pela ascensão ao poder da ignorância, da violência e da truculência (com apoio massivo da nossa sociedade), lutar usando um discurso puramente sentimental beira o inútil. Não gera resultado efetivo. São gritos ao vazio.
É urgente a organização. Organização jurídica. Organização textual. Organização eficaz, que se transforme em atenção.
Afinal, é preciso estar atento e forte, para que o que hoje é perigoso abra espaço ao divino e maravilhoso.
[1] Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguinte:
[…]
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[…]
XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
[…].