Dalton Cesar Cordeiro de Miranda

Em voto proferido por ocasião do julgamento do RE n. 38.644/MG, o então Ministro Aliomar Baleeiro alertou que " (...) Toda lei exige interpretação e adaptação aos fatos. Não podemos metê-los num leito de Procusto, para acomodá-los à lei. A norma é que, em cada caso, há de afeiçoar-se à realidade da vida, e é por isso que se atribui ao Juiz a missão de legislador do caso concreto." [1]
A citação a tão renomado jurista nos parece oportuna em face de recentes notícias dando conta da proximidade de reabertura dos trabalhos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão da Administração responsável pela solução de divergências sobre a interpretação das normas tributárias, confirmando sua relevância para manutenção do Estado Democrático de Direito. A neutralidade e a busca pela efetiva promoção de justiça fiscal são pilares a serem perpetuados no tempo, como sustentáculos da autoridade do CARF.
Preocupa-nos deveras reiteradas e midiáticas afirmações no sentido de que uma considerável soma de dinheiro estaria represada naquele CARF, supostamente destinado a fazer caixa ao governo, como se os julgamentos a ocorrer naquele Tribunal Administrativo estejam ordinariamente e de antemão maculados de uma certeza da prática de má conduta fiscal pelos contribuintes e, consequentemente, pelo não provimento de suas razões de defesa.
O CARF não deve ser visto ou tomado como a "bassin des âmes" estatal, assim como o eram nas igrejas francesas as bacias das almas, "irmandades criadas para angariar fundos que financiassem missas em favor das almas do purgatório." [2]; até porque, antes de se dar celeridade a fazer fundos arrecadatórios, mister é julgar com imparcialidade os processos sob a responsabilidade do Tribunal Administrativo.
Dito isso e no contexto em que deve se encerrar esta apresentação, cremos que há de se ter cuidado - por aquele CARF e julgadores - com a adoção das denominadas pautas temáticas, previstas que estão no Regimento Interno do órgão (RICarf).
No RICarf consta a previsão de que os processos serão sorteados eletronicamente às suas Turmas e destas, para seus conselheiros, também na ambiência eletrônica, organizados, entre outras formas, pela mesma matéria ou concentração temática. Ocorre que, identificando considerável número "de recursos com fundamento em idêntica questão de direito", o Presidente de Turma poderá "sortear 1 (um) processo para defini-lo como paradigma," ficando os demais sobrestados. A inclusão em pauta do paradigma deverá ser expressamente identificada, assim como a dos processos cuja matéria de direito esteja alinhada e para os quais será aplicado resultado idêntico de julgamento, assegurado o direito de manifestação a todos os diretamente vinculados à solução daquele paradigma.
Tais recursos com mesma matéria ou concentração temática também são tratados em passagem específica do RICarf como "recursos repetitivos".
Causa-nos espécie, entretanto, que em capítulo próprio do Regimento intitulado "DO JULGAMENTO"  nenhuma menção seja feita a forma como se dará o exame do recurso identificado como paradigma, e também àqueles que a esse estariam atrelados; o que parece ser falha grave, inclusive pela importância e dimensão com que tal modalidade de julgamento vem sendo propalada para fins de dar celeridade e esvaziamento ao volume de processos aguardando exame naquele CARF.
O possível imediatismo na aplicação da modalidade de julgamento dos processos em listas temáticas causa surpresa, não porque se aventa a necessidade de se dar solução rápida a créditos que supostamente a União teria em seu favor, mas, sim, pelas complexas matérias de direito que tramitam naquele Tribunal Administrativo.
Não nos parece que nesse momento de retomada seria conveniente ou respaldado pela segurança jurídica que se reclama de órgão de tamanha responsabilidade para com a sociedade promover-se, por exemplo, a análise em lista de temas como "ágio", "lucros no exterior", "participação nos lucros e resultados", entre outros de maior ou menor relevância.
O julgamento de determinada "tese" em desconsideração a situações fáticas distintas, observamos, necessariamente não estará alinhado à especificidade de caso concreto que se maneja para enfrentamento do Tribunal Administrativo, implicando tal em possível e manifesto cerceamento de direito de defesa. Recordemos a já transcrita frase de Baleeiro [1].
Mais ainda, a solução em lista para situações temáticas de enorme repercussão poderá implicar no esvaziamento da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), uma vez que, em sendo a decisão paradigmática observada em tempos (curtos e) distintos e por diferentes Colegiados, ensejará a propositura de Súmula para a matéria/tese que, uma vez aprovada, regimentalmente vedará o acesso das partes àquela CSRF.
E com os apontamentos acima, forte nas advertências de Jean Grenier [3], seguimos imbuídos de espírito colaborativo e em busca da verdade, sendo certo que só interromperemos por tal busca quando a encontrarmos (a verdade); e, se não a localizarmos, seremos suficientes honestos para reconhecer nossa ignorância quanto ao tema.
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[1] 'in' Memória jurisprudencial: Ministro Aliomar Baleeiro / José Levi Mello do Amaral Júnior. - Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2006, p. 193 (Série memória jurisprudencial)
[2] <a href="http://www.baciadasalmas.com/a-origem-da-expressao-na-bacia-das-almas/">http://www.baciadasalmas.com/a-origem-da-expressao-na-bacia-das-almas/</a>
[3] 'in' A Propos de l'Humain, p. 50

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