Marcos Ferrari

Diante das discussões fiscais recentes, chamei atenção em um artigo publicado pelo JOTA de que<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estabilidade-fiscal-exige-regras-criveis-18112022"> somente regras críveis</a> podem garantir a estabilidade nesse campo. Sabe-se, seja pela literatura seja pelas experiências internacionais, que somente estabilidade fiscal pode gerar crescimento econômico sustentado, com geração de emprego e renda.  
A profundidade do problema tem sido camuflada pela ilusão de uma nova regra. A despeito do esforço de alguns colegas, o ponto relevante é porque as regras deixam de ser críveis e qual a garantia de que uma nova regra fiscal seja balizadora da economia. A história fiscal recente mostra que não sustentamos a mesma regra por longos períodos. Embora o passado não seja um preditor ideal do futuro, ao menos sinaliza que a nova regra precisa ter uma flexibilidade controlada. Isso nos remete à natureza das regras. 
A partir de uma leitura da teoria novo-institucionalista, que tem o economista e ganhador do Prêmio Nobel Douglass North como principal expoente, é possível tecer simplificadas considerações sobre nosso contexto fiscal. As regras de uma sociedade fazem parte de um contexto mais geral denominado ambiente institucional, que inclui cultura, costumes, valores, códigos e condutas como regras não formais (não escritas), e constituição, leis, decretos, portarias e resoluções como regras formais (escritas).  
Assim como a concorrência é responsável pela dinâmica dos mercados, a concorrência também atua na dinâmica do ambiente institucional. A posição entre as empresas no mercado se altera de acordo com concorrência entre as empresas. Da mesma forma, as regras se alteram conforme a concorrência entre as organizações (partidos políticos, entidades empresariais, sindicatos etc). As alterações ocorrem em intervalos temporais distintos. Algumas levam séculos, como a cultura, outras, poucos anos, como portarias e resoluções.  
Há uma escala de tempo natural na velocidade dessas alterações para cada tipo de regra. Se as regras formais se alteram em velocidade maior do que as regras não formais, de certa forma, as não formais moldam as formais. Quando uma regra dura mais do que essa escala, ela demonstra resistência ao tempo e, portanto, ganha credibilidade. O contrário também é verdadeiro. Quando dura menos, ela se mostra não resistente ao tempo e, assim, perde credibilidade.  
Quanto mais crível, mais a sociedade a tem como parâmetro e passa a ajustar suas escolhas a partir da regra, o que reforça sua resiliência ao longo do tempo. Assim, as organizações fazem suas escolhas e disputam espaço na sociedade tendo as regras vigentes como parâmetros norteadores. As escolhas, portanto, passam a se adequar previamente às regras, ensejando estabilidade no ambiente institucional.  
Quando, no entanto, as regras não comportam mais as escolhas, a concorrência passa a se dar pelas regras, que se alteram dentro da sua escala temporal até atingir uma nova estabilidade no ambiente institucional. Se as alterações nas regras ocorrem recorrentemente fora de sua escala temporal, não há parâmetros confiáveis que guiem as escolhas e, portanto, não há estabilidade no ambiente institucional. Regras pouco críveis ensejam escolhas mal feitas e, consequentemente, instalam uma espécie de entropia na sociedade.  
É possível interpretar a história recente das regras fiscais no Brasil a partir dessa perspectiva. Não se trata de erros e acertos de um governo ou de outro, mas de um processo natural de amadurecimento da sociedade brasileira. A regra da meta de superávit primário funcionava bem, transmitia credibilidade, todas as escolhas de alocação de recursos eram feitas a partir dela. Era uma regra crível. A concorrência se dava pelas escolhas dentro do espaço fiscal e o orçamento público ficava no limite das regras. Necessidade de acionar a regra de ouro passava ao largo. Não havia discussões de alterações no arcabouço fiscal. 
Como nosso estágio de desenvolvimento se caracteriza por uma sociedade estado-intensiva, esta regra começou a perder credibilidade a partir da impossibilidade de aumentar receitas tributárias para fazer jus ao aumento recorrente de despesa pública, a maior parte advinda de despesas obrigatórias, principalmente previdência. A regra da meta fiscal passou a ser adaptada para alocar as despesas crescentes, com descontos de valores do PAC da meta, mas logo se mostrou ineficaz, por diversas razões, com o início de registro de déficit nas contas primárias. Tornou-se claro que a regra deveria passar para o lado da despesa. 
Em 2016, após duas propostas surgirem, houve a criação de uma nova regra para alocar os recursos públicos, que passou a controlar o crescimento das despesas pela Constituição Federal, tendo a inflação passada com parâmetro de ajuste. As escolhas da sociedade no âmbito do orçamento passaram a ser limitadas ao teto dos gastos. Passamos a ter três regras fiscais para controlar o mesmo fenômeno, aumento crescente das despesas públicas. 
Os formuladores da regra constitucional previram sua própria reavaliação em dez anos, para incorporar situações não previstas no momento em que foi estabelecida, não obstante ter algumas válvulas de escape até lá. A pandemia trouxe antes desse prazo uma pressão nos gastos públicos, forçando a criação de despesas fora do teto para alocar novas escolhas. Esse mecanismo, gastos adicionais por PEC, que deveria ser pontual, passou a ser recorrente. Foram criadas as PEC’s orçamentárias. As alterações na Constituição passaram a ocorrer num prazo bem menor do que sua escala temporal sugere.  
Nesse contexto, o teto perdeu toda sua credibilidade, seguindo o mesmo trágico destino da regra do resultado primário. Se para não descumprir a regra é preciso usar outro mecanismo para driblá-la, é porque ela deixou de ser crível. A concorrência entre as organizações no ambiente institucional passou ser feita pelas regras e não pelas escolhas. Quando cada um quer uma regra que se adapte às suas escolhas, chega-se ao pior dos mundos: a entropia. Os dados econômicos e sociais dos últimos 10 anos — crescimento estagnado e piora nas condições de vida da população — falam por si só.  
Independente de qual venha a ser o novo arcabouço fiscal do Brasil, uma discussão que deve ser difícil em 2023, não é exatamente isso que vai definir a recuperação da estabilidade fiscal, mas se se a regra será crível e resistente ao tempo, o que demanda, necessariamente, parâmetros estáveis para as escolhas de alocação de recursos públicos da sociedade. Do contrário, estaremos apenas trocando a barra de gelo.  
Se a história recente mostra que não sustentamos regras fiscais rígidas de longo prazo, essa característica precisa estar embutida no novo arcabouço. É, afinal, uma característica da sociedade brasileira e de seu atual estágio de desenvolvimento. É preferível assumir, nas regras formais, nossa regra não formal enquanto sociedade a negar essas particularidades. Alterar as regras fiscais a a todo momento torna o ambiente institucional instável e compromete os resultados econômicos e sociais. Regras críveis, ainda que não tão estritas, proporcionam a necessária estabilidade fiscal e melhores condições para um futuro mais próspero.

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JOTA

Regras críveis, ainda que não tão estritas, proporcionam estabilidade fiscal e melhores condições para um futuro mais próspero

A natureza das regras, inclusive fiscais

Se a história mostra que não sustentamos regras fiscais rígidas de longo prazo, essa característica deve estar embutida no novo arcabouço