Pedro Pinho

As condutas ilícitas nos mercados financeiros e de capitais se dividem em três espécies: os ilícitos administrativos referentes ao mercado de valores mobiliários e companhias abertas; os ilícitos administrativos no mercado financeiro; e os crimes, que se subdividem entre aqueles contra o Sistema Financeiro Nacional (SFN), previstos na Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986, e contra o mercado de capitais, conforme a Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976.
Para cada espécie, a legislação determina um órgão exclusivamente competente para processar e sancionar os atos nelas enquadrados. Os ilícitos administrativos no âmbito do mercado de valores mobiliários são processados e sancionados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), conforme os artigos 9º e 11 da Lei n° 6.385/76. A competência para punir ilícitos administrativos no âmbito do mercado financeiro, por sua vez, foi dada pelo artigo 10, inciso IX da Lei n° 4.595, de 31 de dezembro de 1964, ao Banco Central do Brasil. Os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional são julgados pela Justiça Federal (artigo 26 da Lei n° 7.492/86).
Apesar da clara distinção legal entre os órgãos competentes para julgar e lidar com cada gênero, a matéria gera dúvidas. Isso porque não há qualquer diferença ontológica entre os ilícitos administrativos e penais. Nada impede, portanto, que uma conduta seja ilícita em mais de uma esfera dentre as acima. Basta que a lei assim o diga.
Tomemos como exemplo um administrador de instituição financeira que pratique o ato de conceder empréstimo em desacordo com a chamada “boa técnica bancária”, ou seja, dar crédito sem levar em conta “(i) a idoneidade do devedor; (ii) sua capacidade econômica; (iii) suas fontes de renda; (iv) as garantias reais ou pessoais que possa oferecer; e (v) o prazo da operação”. Tal ato viola várias regras do ordenamento jurídico brasileiro.
Em primeiro lugar, quem pratica a conduta incorre em crime de gestão fraudulenta ou temerária de instituição financeira, de acordo com o contexto. Previsto no artigo 4° Lei n° 7.492/86, o crime tem como órgão julgador a Justiça Federal, em todas as suas instâncias, e sua pena varia entre dois a 12 anos, a depender das circunstâncias e atos que compõem a conduta.
Outra descrição dada à mesma conduta pelo direito brasileiro é “realizar operações que não atendam aos princípios de seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos”. Vedada expressamente por norma do Conselho Monetário Nacional (CMN)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, a prática configura ilícito administrativo passível de punição pelo Banco Central e pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN – segunda instância nos julgamentos de processos administrativos sancionadores no âmbito do SFN) com as sanções cominadas no artigo 44 da Lei n° 4.595/64.
Existe, ainda, um terceiro ponto de incidência do ato de concessão imprudente de empréstimos nas normas de proteção ao mercado de capitais administradas pela CVM: violação aos deveres legais dos administradores de sociedades anônimas (tipos societários obrigatórios das instituições financeiras). Tais obrigações estão previstas de forma ampla nos artigos 153 e 155 da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades por Ações). São os chamados deveres de diligência e lealdade dos administradores, respectivamente. Entende a CVM que a concessão de empréstimos sem observância da boa técnica bancária constitui violação a tais deveres e, por força do artigo 11 da Lei n° 6385/76, é punível pela autarquia com as penas nele previstas. Tal entendimento também é adotado pelo CRSFN em segunda instância.
Cria-se uma aparente contradição: se um mesmo ato se encaixa no direito de três formas diferentes, e todas geram consequências punitivas distintas a estes atos, qual delas deve prevalecer? A resposta largamente aceita é: as três.
Um ato pode ser punido por um tribunal judicial e também em esfera administrativa. Tal “dupla punição” é muito comum nos casos em que uma conduta constitui tanto crime quanto ilícito administrativo. Trata-se da conhecida autonomia das esferas penal e administrativa, tese adotada pelos tribunais superiores.
Pode também ocorrer a incidência do ato em mais de uma esfera administrativa, além da esfera penal. Nesse caso, entende o CRSFN que as duas autoridades administrativas podem aplicar as respectivas punições para o mesmo ato. A razão para esse fenômeno, segundo o colegiado, é a existência de mais de um bem jurídico protegido: enquanto o Banco Central protege a estabilidade do Sistema Financeiro Nacional e os credores das instituições financeiras de modo preventivo, a CVM tutela o mercado de valores mobiliários e os acionistas dos bancos, também de modo preventivo (a tutela reparatória cabe à esfera civil).
Logo, o complexo fenômeno da incidência de múltiplas normas punitivas no ato de gestão irregular pela concessão de maus empréstimos praticado dentro do sistema financeiro pode sujeitar (como tem sujeitado) os administradores de instituições financeiras a até três sanções aplicadas cumulativamente. Num cenário de aumento expressivo das sanções aplicáveis às condutas ilícitas no âmbito dos mercados financeiros e de capitais, é essencial que os agentes regulados estejam atentos a essa possibilidade.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Item IX, a da Resolução do Conselho Monetário Nacional n° 1.559, de 22 de novembro de 1988: “É vedado às instituições financeiras: a) realizar operações que não atendam aos princípios de seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos;”.

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JOTA

Um ato pode ser punido por um tribunal judicial e também em esfera administrativa

A multiplicidade punitiva nos mercados de capitais

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