direito de defesa

‘A mulher da casa abandonada’ e a condenação em praça pública

Sem processo, ninguém pode ser considerado culpado de crime

a mulher da casa abandonada
Crédito: Unsplash

“A mulher da casa abandonada” – título misterioso de um podcast que despertou a atenção de muita gente e desvelou uma história desconhecida da vizinhança de Higienópolis (onde fica a casa), mas não das autoridades.

O ser humano é curioso e intransigente com as diferenças. Como pode um casarão situado num bairro nobre ser tão descuidado a ponto de parecer abandonado? Como pode, num imóvel como esse, residir apenas uma senhora, que se apresenta sempre com uma pasta branca no rosto e vestida com roupas que denotam falta de asseio?

Essas perguntas estão entre muitas outras que serviram de gatilho para a história narrada com maestria no podcast.

A história por trás da mulher da casa abandonada é horripilante: a redução de uma menina à condição análoga à escravidão, a doação desta pessoa (já adulta) quase como uma herança; a mudança aos Estados Unidos; os relatos de anos de agressão moral e física, restrição da liberdade, desrespeito a direitos trabalhistas, à dignidade, falta de atendimento médico. Enfim, um balaio de horrores que choca qualquer um.

No início, a história já me incomodou. Não apenas pela gravidade do fato, mas pelo julgamento que se fez de Margarida Bonetti, segundo o podcast, a mulher da casa abandonada: julgada pelas roupas que usava enquanto tentava impedir a poda de uma árvore, pela pasta que usava no rosto, pela máscara cirúrgica empapada dessa substância oleosa, pelo modo como falou com os encarregados da poda da árvore ou como se dirigiu à atendente de farmácia.

A gravidade do fato e o mistério, por sua vez, aguçaram minha curiosidade e, ser humano que sou, ouvi todos os episódios subsequentes.

Esse incômodo cresceu na mesma toada do avanço da história. Não consigo me despir do que me motiva a ser advogado criminal. Os mestres que tive e a prática profissional me ensinaram que o pior dos criminosos sempre traz consigo uma explicação, às vezes aceita judicialmente, mas raras vezes aceita socialmente.

De uma coisa eu tenho certeza. A única justiça que haveria de nos importar é a institucionalizada, a mesma que não permite que pessoas sejam apedrejadas em praça pública.

E a justiça teve sua chance com Margarida Bonetti. Diz o podcast que ela era procurada pelo Federal Bureau of Investigation (FBI), a famosa Polícia Federal norte-americana. O Brasil, por seu turno, instaurou um inquérito policial, arquivado por falta de prova depois de cinco anos de investigação.

Não é preciso dizer muito. Quisessem as autoridades americanas e brasileiras realmente encontrar a suspeita de um crime tão grave e isso teria acontecido. Recursos não faltam, até porque encontrar uma mulher de muitas posses morando num local diminuto como é o bairro paulistano de Higienópolis não demanda nenhuma inteligência policial para além do, digamos, feijão com arroz.

Acontece que, nos regimes democráticos, o Estado tem um tempo limite para punir pessoas, sem o que o crime prescreve. É uma espécie de sanção imposta ao Estado por não cumprir seu papel num tempo razoável. Há quem ache isso injusto. Há quem diga que a vítima não é amparada. Esse aspecto é até plausível, mas pensemos, numa sociedade do século 21, o real propósito do direito penal.

Natural que a vítima queira vingança. É humano. Mas essa é uma faceta da punição institucionalizada na Babilônia, na Lei de Talião. Lembram-se do “olho por olho, dente por dente”? Não faz mais sentido.

Os dois outros propósitos da punição são o educativo, segundo o qual procura-se fazer com que a pessoa pense no que fez ao expiar seus pecados, uma herança do direito canônico. O último é mais adequado ao patamar de evolução social a que chegamos: a reinserção de uma melhor “versão” do indivíduo na sociedade.

Sobre a reinserção há um dado alarmante. O podcast registra um certo descontentamento com o fato de Renê Bonetti, o marido de Margarida, depois de ter cumprido pena nos Estados Unidos, ter voltado a trabalhar numa empresa de importância estratégica àquele país. Qual o problema? Um condenado pela Justiça, após cumprir pena, não pode retomar a vida, a profissão?

Pois bem. Deixando a vingança de lado e voltando a Margarida: faz sentido, hoje, mais de 20 anos depois do alegado fato, submetê-la a julgamento? Que bem isso fará a ela e à sociedade? Desde que voltou ao Brasil, o podcast não registrou notícias de que ela tenha reincidido na conduta da qual teria sido acusada nos EUA, então, repito, por que julgá-la agora?

O jornalista que protagoniza a entrevista com Margarida perguntou a ela por que não se submeteu a julgamento nos Estados Unidos. Ela respondeu que passava por um problema grave de saúde, ao que ele retruca dizendo que agora ela tem plenas condições físicas de ir até lá e mesmo assim não o fez.

Para qual finalidade? Pergunto. Para expiar um pecado simplesmente? Qual o sentido de que isso aconteça senão uma vingança tardia ou uma inspiração canônica no juízo final?

Compreendo a indignação com a impossibilidade de julgamento diante da prescrição. Ela passa pela sensação de ter o fato passado impune. Entretanto, não cabe a nós, cidadãos comuns, a missão de, à margem da atuação do Estado, forçar terceiros a entregar à sociedade aquilo que acreditamos ser justo. Isso não é justiça; é justiçamento.

Ouvi no podcast, com todo respeito aos profissionais encarregados de produzi-lo, um julgamento numa praça pública digital, mas que trouxe seus efeitos físicos. Margarida Bonetti, embora não julgada pelo Poder Judiciário, foi condenada e vem tendo sua condenação executada.

Sua vida virou um inferno. A calçada de sua casa (não) abandonada tem sido bem movimentada. Uma legião de curiosos vai ao local como se fosse um ponto turístico. Ela não tem tranquilidade para, ao anonimato, sair às ruas. Até um inquérito policial foi instaurado a pretexto de “protegê-la” de um possível crime de abandono de incapaz!

A curiosidade de saber o que havia dentro da casa é tão corrosiva que nos autos desse recente inquérito policial foi determinada uma busca e apreensão contra a pessoa alegadamente “protegida”, medida cautelar claramente invasiva, usualmente deferida contra os suspeitos do cometimento de crimes.

Houve uma subversão do propósito oficial do inquérito. Na capa se vê uma vítima; em seu interior uma investigada. Não porque houve um crime recente, mas porque a partir do podcast, o Estado, tão omisso na época do fato, viu-se numa espécie de obrigação de dar uma resposta pública.

Sem processo, ninguém pode ser considerado culpado de crime. Isso quem diz é a nossa Constituição, ao estabelecer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII). E esta sentença só se alcança com o “devido processo legal” (artigo 5º, LIV).

Ah! E o fato de ela ser considerada foragida nos Estados Unidos não tem nenhuma importância para que se alcançasse uma punição em solo brasileiro. Aqui, a presença do réu nos atos da investigação ou do processo é, sobretudo, um direito individual, mas o processo não para se o acusado desaparece. Quando para, a lei prevê a possibilidade de suspender a prescrição (artigo 366, Código de Processo Penal), mas não foi isso o que aconteceu com Margarida Bonetti.

Como não houve nem processo, nem sentença, a mulher da casa (não) abandonada é inocente e merece tratamento que parta dessa premissa.

Portanto, independentemente da gravidade dos fatos a ela atribuídos – e são graves mesmo –, Margarida tem o direito constitucional de seguir com sua vida sem ser importunada ou submetida a publicidade opressiva. Ela tem o direito de ir e vir e de reivindicar o que quiser e a quem quiser, com pasta na cara e tudo.