
Na última segunda-feira, a poucas horas da realização dos atos convocados para apoiar o presidente Jair Bolsonaro e atacar o Supremo Tribunal Federal (STF) e outras instituições democráticas, o presidente editou a Medida Provisória (MP) nº 1.068/2021, que altera o chamado Marco Civil da Internet (MCI). Apesar da justificativa nobre apresentada pelo governo – a defesa da liberdade de expressão nas redes sociais – a MP vai na direção oposta da Constituição e uma leitura atenta do texto não deixa dúvidas sobre o real propósito da medida: proteger Bolsonaro, seus ministros e apoiadores, para que possam seguir espalhando desinformação online. Sobre a pandemia do coronavírus e seu tratamento; sobre as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral brasileiro; ou, quem sabe, rumo às eleições de 2022, sobre o futuro da economia, da inflação e do desemprego no país.
De uma maneira bastante simplificada, o principal objetivo da proposta é enumerar, de forma restritiva, as hipóteses nas quais uma rede social – como o Facebook, o Twitter ou o Youtube – pode excluir, bloquear ou suspender um usuário ou um conteúdo, sem precisar recorrer a um processo judicial. Nesse sentido, inverte a lógica atual do MCI, que permite a livre moderação de conteúdo pelas redes sociais e possibilita que eventuais abusos ou omissões sejam solucionados pela via judicial. Uma análise jurídica do texto deixa claro que a MP não deveria prosperar, merecendo uma resposta rápida e definitiva que encerre a sua tramitação, seja por parte do Supremo Tribunal Federal, seja por parte do Congresso Nacional. Argumentos para isso não faltam.
Em primeiro lugar, a MP prescinde da urgência requerida pelo art. 62 da Constituição Federal. Qual a emergência que justifica tamanha interferência no funcionamento das redes sociais e empresas privadas do setor de internet? Vale lembrar que a base bolsonarista no Legislativo já havia apresentado inúmeros projetos de lei no mesmo sentido e que bastaria ao governo colocar peso político na tramitação de qualquer um deles. Embora o STF e o Congresso já tenham suspendido a tramitação de MPs em razão da ausência do requisito de urgência, essa não é uma prática comum na análise de medidas provisórias.
Contudo, nesse caso, a única justificativa para a urgência do governo é mais um motivo para a rejeição da MP: a sua edição um dia antes das referidas manifestações bolsonaristas só pode ser entendida como uma tentativa de evitar que as redes sociais excluíssem conteúdos antidemocráticos e fake newsrelacionadas aos atos. Ou seja, não só não há a urgência exigida constitucionalmente, como o timing da medida se choca com a Constituição: de um lado, porque busca proteger ataques contra o Estado democrático de direito, pilar fundamental de nossa ordem constitucional; de outro, porque revela claro desvio de finalidade e de poder, ao se distanciar do interesse público e utilizar o poder normativo do Presidente da República para fins particulares e ilícitos.
No dizeres de um Ministro do Supremo, “(…) nos casos de desvio de finalidade, o que se tem é a adoção de uma conduta que aparenta estar em conformidade com uma certa regra que confere poder à autoridade (regra de competência), mas que, ao fim, conduz a resultados absolutamente incompatíveis com o escopo constitucional desse mandamento e, por isso, é tida como ilícita“[1].
Quanto a este último ponto, é imprescindível recordar que a ideia de uma norma – que surgiu como decreto e se transformou nessa MP – que limitasse o poder de moderação de conteúdo das redes sociais só surgiu depois que práticas sistemáticas de desinformação se viram ameaçadas. Pela CPI da Pandemia do Senado, que passou a investigar o impacto da atuação do governo na propagação de fatos sem comprovação acerca da prevenção e do tratamento do coronavírus. Pelo STF, que já investigava as redes de fake news desde o ano passado, mas recentemente concentrou seu foco nos financiadores dessa rede e – com o apoio do TSE – nos ataques ao sistema eleitoral e à democracia brasileira. E, finalmente, pelas próprias redes sociais, que têm atuado contra usuários que violam sistematicamente suas políticas, suspendendo ou removendo conteúdos de contas que espalham desinformação – incluindo conteúdos gerados pelas contas do Presidente, de seus filhos e de alguns apoiadores próximos. Em outras palavras, trata-se de uma MP de autoproteção.
Não bastasse isso, a proposta viola a livre iniciativa, princípio fundamental do Estado brasileiro e de nossa ordem econômica, conforme os arts. 1º e 170 da Constituição. A medida interfere de maneira desproporcional na liberdade econômica das empresas de internet, limitando sua capacidade de gerir seus próprios negócios e de zelar pelo conteúdo veiculado em suas plataformas. Como qualquer princípio constitucional, também a livre iniciativa não é absoluta e comporta limitações, em particular quando entra em conflito com outro princípio previsto na Constituição. Contudo, tais limitações devem atender à chamada regra da proporcionalidade – verificada a partir da análise da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito da medida adotada. De saída, a MP não parece efetivamente adequada a proteger o direito à liberdade de expressão, pois – como dito acima – a finalidade almejada é outra; e nem se constitui, como a via necessária, menos gravosa, para assegurar a proteção daquela liberdade. Nesse sentido, o STF vem reiteradamente considerando inconstitucionais normas que restringem de forma irrazoável a livre iniciativa – como afirmou o Ministro relator da paradigmática ADPF 449, “À luz do sistema de freios e contrapesos estabelecidos na Constituição brasileira, compete ao Poder Judiciário invalidar atos normativos que estabeleçam restrições desproporcionais à livre iniciativa e à liberdade profissional“[2].
No que diz respeito a essa interferência desproporcional nos negócios das empresas de internet, vale destacar que não é apenas o combate à desinformação que fica prejudicado pelas amarras impostas pela MP. Outros conteúdos tradicionalmente combatidos pelas redes sociais – como algumas modalidades de discurso de ódio, como assédio e bullying, ou como conteúdos relacionados a armas de fogo – também passam a gozar de uma proteção especial e exigiriam um processo judicial para serem removidos.
A depender da interpretação dada aos arts. 8º-B e 8º-C da MP, até contas criadas para aplicar um golpe ou uma fraude aos usuários – desde que isso não ocorra de forma reiterada – poderiam estar protegidas.
Por fim, vale abordar o direito à liberdade de expressão, alegadamente a razão por trás da edição da MP. Será que esse direito fundamental está mesmo sob ameaça quando as redes sociais atuam na moderação de conteúdo? Novamente, nenhum preceito constitucional é absoluto. E a defesa do direito à liberdade de expressão parece incompatível com a proteção a ações orquestradas sistematicamente para espalhar desinformação, em especial quando tais iniciativas contribuem para o crescimento do número de pessoas doentes e mortas por conta de uma pandemia; visam desacreditar o sistema eleitoral e as eleições, espalhando boatos sem qualquer indício; ou buscam incitar a população contra as instituições democráticas ou o Estado democrático de direito.
A ação das empresas contra tais iniciativas parece proporcional e justificada. A análise dos termos de uso e políticas das principais redes sociais revela que atitudes mais severas – como a exclusão de um conteúdo ou a suspensão de um usuário – somente ocorrem após alguns avisos, alertas ou outras medidas de caráter pedagógico. Não há que se falar em decisões repentinas ou abusivas. E mesmo assim, como já foi afirmado, a legislação vigente já oferece mecanismos para que os cidadãos se insurjam contra o que venham a considerar abusos das plataformas[3].
Não deixa de ser irônico que o governo que se elegeu com forte campanha nas redes sociais e com base em um ideário econômico liberal – quem lembra da Lei de Liberdade Econômica? – venha agora promover essa intervenção nas empresas de internet. Não deixa de ser irônico que o Presidente que usualmente bloqueia o acesso de jornalistas e críticos de sua gestão às suas contas nas redes sociais, venha agora restringir a moderação exercida pelas empresas. Como no clássico de Orwell, em que o Ministério da Verdade é responsável por proteger a desinformação propagada pelo regime, no Brasil de 2021, o governo, a pretexto de defender a liberdade de expressão online, edita a MP da Mentira. Seu propósito parece estar mais relacionado às eleições de 2022 e o caminho que o Presidente quer percorrer até lá, do que propriamente com a defesa do interesse público e do imprescindível direito à liberdade de expressão.
[1] Ministro Gilmar Mendes, relator na Medida Cautelar no Mandado de Segurança 34.070 – DF.
[2] Ministro Luiz Fux, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 449.
[3] Veja-se o recente exemplo da disputa judicial entre o canal Terça Livre e o Youtube: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/07/22/canal-bolsonarista-terca-livre-volta-ao-ar-no-youtube-apos-decisao-judicial.ghtml