Jarbas Ricardo Almeida Cunha

Acontecimentos recheados de preconceitos acendem a luz de alerta sobre a constante necessidade de luta pela efetivação dos direitos dos autistas. Uma luta para além das datas comemorativas.
A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) definiu o dia 2 de abril como “World Autism Awareness Day” (Dia Mundial de Conscientização do Autismo)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, aprovado por unanimidade em janeiro de 2008, mesmo ano em que entrou em vigor a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é um dos signatários<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Antes, em 2005, também houve um movimento – inicialmente nos EUA – que se estendeu para outros países, ratificando o “Dia Mundial do Orgulho Autista”, comemorado em 18 de junho.
Essas datas têm proporcionado importantes reflexões pelo mundo, inclusive com destaque em nosso país, com participação conjunta da sociedade civil organizada, mercado e Estado em prol da conscientização de todo o conjunto da população em torno do autismo. Presenciamos eventos de rua por meio de protestos e passeatas, eventos institucionais por meio de debates e palestras, e até eventos de massa com clubes de futebol entrando em estádios com camisas alusivas às respectivas efemérides. Especificamente nessas duas datas comemorativas, realmente, tudo parece ser muito lindo.
Mas, com exceção desses dias, os casos de capacitismo, ou seja, preconceitos dirigidos a qualquer pessoa que apresenta uma deficiência, se acumulam vultosamente. Lembrando que, conforme o art.1º, §2º da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm">Lei 12.764/2012</a>, a pessoa diagnosticada com autismo é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.
Somente neste ano de 2023, no Brasil, já houve vários casos que preocupam e merecem nossa atenção. Preconceitos nas escolas, hospitais e até em lanchonetes, academias de ginástica e em conduções por aplicativo. Vamos destacar apenas dois casos, por sua inegável importância.
O primeiro ocorreu em fevereiro, quando o Executivo paulista, assessorado pela sua própria Secretaria de Saúde, vetou o PL 665/2020 que estabelecia a validade indeterminada do laudo médico sobre autismo. Contextualizando, o laudo médico diagnosticando Transtorno do Espectro Autista (TEA) não pode ter prazo determinado, pois esta condição (autismo) acompanhará o indivíduo para o resto de sua vida, sendo desgastante e inútil a atualização periódica de um diagnóstico permanente.
Mas o que mais causou espanto na justificativa do veto do Executivo estadual foi a argumentação de que o autismo, caso tratado precocemente, poderia simplesmente ser curado. A boa notícia é que, depois de vários alertas de profissionais de saúde sobre a condição permanente do autismo, o governador voltou atrás e sancionou a agora Lei Estadual 17.669, de 6 de abril de 2023, que dispõe que o laudo que atesta o TEA apresenta validade indeterminada.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Outro caso impactante de capacitismo ocorreu em sessão realizada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), em maio de 2023. Ao analisar requerimento de teletrabalho por parte de um juiz, que justificava sua solicitação baseada nos cuidados demandados por seu filho diagnosticado com TEA, um desembargador insinuou que pessoa com filho autista – em suas palavras: “filho com problema” – não deveria prestar concurso para a magistratura. Após várias notas de repúdio de entidades como Defensoria Pública da União (DPU), Associação dos Magistrados Estaduais (Anamages) e perante análise de falta disciplinar pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o desembargador também se desculpou, afirmando que sua fala foi retirada do contexto.
Esses dois casos podem ser classificados como “preconceito institucional”, quando a instituição que deveria desenhar e consolidar um arco protetivo para as pessoas com deficiência atenta justamente contra elas.
Apesar de sermos um país exemplar em normativas sobre os direitos das pessoas com deficiência – autistas entre estas – tais como a Constituição Federal, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146, de 2015), a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei 12.764, de 2012), a instituição da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei 13.977, de 2020) e a recente Lei 14.626, de 2023, aprovada em julho último e que amplia o atendimento prioritário a pessoas com TEA, precisamos ainda avançar bastante no reconhecimento e efetivação dos nossos direitos.
É como o grande jurista Rudolf von Ihering abre o seu clássico Der Kampf ums Recht (A Luta pelo Direito), de 1872: “o fim do Direito é a paz, o meio de que serve para consegui-lo é a luta". E complemento com a também clássica Hannah Arendt em seu Elemente und Ursprünge Totaler Herrschaft (As Origens do Totalitarismo), de 1951: “... o direito a ter direitos, ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria humanidade".
Mesclando Ihering e Arendt, nós – autistas – devemos lutar pelo nosso direito a ter direitos, lastreando nossa batalha nas normativas, doutrinas e jurisprudência visando sempre atingir a completude de um efetivo Estado democrático de Direito, com inclusão e respeito às diferenças. Somente a luta – seja jurídica, política ou econômica – pode transformar esse cenário e mobilizar a sociedade por mais tolerância e compreensão. Aux armes, citoyens!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1] </a>Disponível em <a href="https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N07/472/11/PDF/N0747211.pdf?OpenElement">https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N07/472/11/PDF/N0747211.pdf?OpenElement</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm">https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em <a href="https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2023/lei-17669-06.04.2023.html">https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2023/lei-17669-06.04.2023.html</a>

autismo

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JOTA

Somente a luta, jurídica, política ou econômica, pode mobilizar a sociedade por mais tolerância e compreensão

A luta dos autistas pelo direito a ter direitos

Autistas ainda precisam lutar por seus direitos, para ir além de datas comemorativas como a estabelecida pela ONU