Rafaela Coutinho Canetti

No dia 27/10/2019, domingo, por volta das 22h30min, equipes da prefeitura do Rio de Janeiro, munidas de retroescavadeiras, retiraram as cancelas e inutilizaram as cabines de cobrança de pedágio da Linha Amarela, uma das mais importantes vias expressas da cidade.
O pano de fundo dessa ação – no mínimo, inusitada – do Poder Público é uma disputa travada, judicial e administrativamente, entre o Município e a LAMSA, concessionária da rodovia, a respeito da modelagem adotada pelo contrato de concessão e pelos seus respectivos aditivos.
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Segundo alega a prefeitura, em razão da variação positiva no fluxo de veículos na via, haveria um desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, na monta de R$ 1.648.144.294,00, em desfavor do Poder Concedente, já que “[d]esde o início da cobrança de pedágio, em 1998, até o final de 2018, passaram pela via 151.282.630 veículos além do que havia sido projetado na modelagem financeira da concessão”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Esteado nessa avaliação, o Prefeito Marcelo Crivella fez publicar, em edição extraordinária do Diário Oficial do Município datada de 25/10/2019, expediente em que declarou “findo o contrato de concessão na presente data”. Invocou, como fundamento jurídico para tanto, a autotutela administrativa, nos termos do artigo 155, §2º da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Ato contínuo, determinou a realização da operação acima referida.
Não demorou para que a questão fosse judicializada.
A LAMSA, ao argumento de que inexistiria ilegalidade na previsão contratual que atribui à concessionária o risco sobre a variação (positiva ou negativa) do volume futuro de demanda – pleiteou a concessão de tutela provisória de urgência para que fosse determinada a suspensão dos efeitos da decisão do Poder Público, com a consequente retomada da cobrança do pedágio (Processo nº 0267825-08.2019.8.19.0001).
Na manhã do dia seguinte, já havia decisão liminar do juízo plantonista do TJRJ em favor da concessionária.
O episódio tem tudo para se tornar um case para os estudos da próxima geração de administrativistas, por representar, de forma quase didática, alguns dos maiores desajustes que afligem a Administração Pública brasileira: a reiteração de um discurso old school sobre a supremacia do interesse público e os poderes da Administração que pode representar, deliberadamente ou não, um desapreço pelo óbvio. Explico.
<blockquote class="jota-article__eye">Acadêmicos, gestores públicos e agentes políticos discordam, frequentemente, sobre temas de Direito Administrativo, como a categorização de um determinado instituto jurídico, a forma de atingimento de um determinado objetivo ou a interpretação de atos normativos. É normal – e desejável – que assim o seja.</blockquote>
No entanto, dificilmente haverá contendas sobre a necessidade de criação de um ambiente de segurança jurídica e institucional, no Brasil, que permita ao administrado planejar sua vida e seus investimentos com algum grau de previsibilidade e confiança.
Tampouco se veem vozes, na literatura especializada, apregoando a desnecessidade de submissão do Poder Público ao devido processo legal ou a possibilidade da completa desconsideração das consequências fáticas, jurídicas e econômicas das decisões administrativas.
Aceita a premissa da efetividade das normas constitucionais como paradigma interpretativo e integrativo do Direito, sua consequência inescapável é a constitucionalização do Direito Administrativo, i.e. a sujeição da Administração Pública aos objetivos e valores retratados na Constituição Federal, dentre os quais se destacam a segurança jurídica, a legalidade, a moralidade, a impessoalidade, a eficiência, a proporcionalidade e o devido processo legal. Noutras palavras, diz-se que a Administração Pública deve respeito aos princípios constitucionais conformadores da atuação administrativa, o que é, em síntese, reconhecer o óbvio.
<blockquote class="jota-article__eye">Nessa perspectiva, dentre os (muitos) pontos que mereceriam ser destacados a partir dos fatos narrados pela mídia, sobressaem três instâncias de aparente fuga do óbvio: (i) a evasão ao processo; (ii) o uso estratégico da surpresa; e (iii) a desatenção às considerações de cunho consequencialista.</blockquote>
Quanto ao ponto (i), percebe-se, pelo menos, duas particularidades do caso concreto que apontam para uma tentativa de a Administração evadir-se da processualização do Direito Administrativo e, até mesmo, da inafastabilidade e efetividade da jurisdição.
A primeira, mais clara, consiste no animus declarado do Poder Público de inviabilizar completamente a imediata retomada da cobrança do pedágio, ainda que esta, porventura, fosse reinstituída em razão de determinação do Poder Judiciário.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Foram adotadas medidas extremas para a retomada das instalações e do serviço pelo Município que, além de desproporcionais (porquanto desnecessárias à extinção do contrato de concessão), pretendiam atrasar o cumprimento de eventual provimento jurisdicional.
A segunda é mais sutil, mas nem por isso menos significativa. Cuida-se da forma como se procurou extinguir a concessão de serviço público.
Aparentemente, ao argumento de que seria nula a cláusula contratual de alocação de riscos que exclui das hipóteses de reequilíbrio econômico-financeiro a variação no fluxo de veículos (Cláusula 2ª do 9º Termo Aditivo), o Poder Público concluiu que, considerada taxa interna de retorno (TIR) real, calculada com base na demanda efetivamente configurada, haveria rentabilidade excessiva da concessionária, a justificar a extinção do contrato.
Sem adentrar discussões quanto à existência ou não do desequilíbrio econômico-financeiro, à conveniência de eleição da TIR como elemento determinante do equilíbrio econômico-financeiro da concessão,<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> a solução alcançada pelo Município parece heterodoxa.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Não se buscou a encampação do contrato (medida que, segundo noticiado, pode vir a ser o desfecho do impasse)<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, nem se atribuiu à concessionária descumprimento apto a ensejar a caducidade do contrato. Nem mesmo, à toda evidência, houve a anulação de todo o contrato (o que tampouco escaparia do imperativo do devido processo legal e da observância do prazo decadencial para tal).
Em vez disso, não está claro se a Administração considerou o contrato irremediavelmente “irreequilibrável” ou se considerou que, à luz da discrepância entre a lucratividade real e a lucratividade projetada da concessionária, deveria haver a redução do prazo de duração da concessão.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Evidentemente, o Município não está vinculado de forma indelével a um contrato que, por falhas na sua modelagem ou alteração superveniente de circunstâncias fáticas, implique perdas para a Administração ou para a população. Nem se discute que o ente federativo pode e deve buscar alternativas mais vantajosas para a hipótese de variação positiva do tráfego, com a previsão de mecanismos de modicidade tarifária, de compartilhamento de ganhos de produtividade ou gatilhos de investimento.
Nada obstante, e ainda que o rol de hipóteses de extinção do contrato de concessão previsto no art. 35 da Lei nº 8.987/1995 não possa ser tomado como taxativo, as formas ali previstas deverão ter precedência, a ser afastada mediante especial motivação do Poder Público.
No que toca ao aspecto (ii) acima referido, é preciso apontar que a agilidade e surpresa que marcaram ação do Município – ocorrida, repita-se, num domingo à noite e às vésperas do feriado do dia do servidor público – não parecem proporcionais aos contornos do caso. Certamente, desvios no sinalagma contratual devem ser corrigidos, mas nada indica que havia imprescindível necessidade de destruição imediata da praça de pedágio da Linha Amarela.
A surpresa, no atuar administrativo, deve ser a franca exceção,<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> seja porque ao particular deve ser garantido o contraditório prévio (mitigável, é claro, nas hipóteses de medidas auto-executórias autorizadas em lei ou revestidas de caráter cautelar), seja porque é legítimo ao administrado (ainda que eventualmente inconveniente à Administração) socorrer-se do Poder Judiciário quando entender existir lesão ou ameaça de lesão aos seus direitos.
A publicidade e transparência oportunizam o controle dos atos administrativos, e é esse accountability que permite diferenciar a gestão pública eficiente e legítima daquilo que Marçal Justen Filho, apropriadamente, denomina de “direito administrativo de espetáculo” – isto é, “a proliferação de institutos e interpretações descolados da realidade, vinculados à produção de um cenário imaginário e destinado a produzir o entretenimento dos indivíduos antes do que a efetiva implantação dos valores fundamentais”.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">Finalmente, à luz do ponto (iii) acima elencado, deve-se lembrar que a busca pelo incremento da segurança jurídica se tornou um dos nortes do Direito Administrativo brasileiro contemporâneo. <a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a></blockquote>
Agravamentos nos riscos de contratação com o Poder Público, em geral, repercutem negativamente nos preços e na qualidade das propostas nas licitações, além de criarem um ambiente mais propício para a cartelização e a corrupção. Assim sendo, mesmo decisões que, em tese, beneficiariam o Poder Público e a população podem gerar efeitos adversos que devem ser, ao menos, objeto de ponderação.
Não se trata de impor ao gestor público a tarefa (impossível) de prever todas as consequências de uma determinada ação,<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> mas, novamente, de reconduzir a Administração para o óbvio: o reconhecimento de que mudanças súbitas no comportamento do Poder Público geram reações em potenciais ou atuais investidores – sobretudo em se tratando de contratos de concessão, cuja complexidade, incompletude, longevidade e custos irrecuperáveis (sunk costs) tem o condão de potencializar quaisquer atitudes inesperadas da Administração.
Sob essa perspectiva, a ideia de uma Administração Pública que opera na calada da noite para evitar reações do administrado e do Poder Judiciário deve ceder espaço para um exercício consciente e ponderado das potestades públicas.
Em síntese, o que se propõe, despretensiosamente, é que o direito administrativo do espetáculo dê lugar, ao menos, para um direito administrativo do óbvio.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> São as informações colhidas de notícias jornalísticas. 
Veja-se <a href="http://noticias.prefeitura.rio/transportes/prefeitura-vai-recorrer-contra-liminar-que-impede-fim-de-cobranca-de-pedagio-na-linha-amarela/">http://noticias.prefeitura.rio/transportes/prefeitura-vai-recorrer-contra-liminar-que-impede-fim-de-cobranca-de-pedagio-na-linha-amarela/</a>. Acesso em 30/10/2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Art. 155 - A explicitação das razões de fato e de direito será condição de validade dos atos administrativos expedidos pelos órgãos da administração direta, indireta e fundacional, excetuados aqueles cuja motivação a lei reserve à discricionariedade da autoridade administrativa, que, todavia, fica vinculada aos motivos na hipótese de os enunciar.
<ul>
<li>1º - A administração municipal tem o dever de declarar nulos os próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, bem como a faculdade de revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados, neste caso, os direitos adquiridos e observado o devido processo legal.</li>
<li>2º - A autoridade que, ciente de vício invalidador de ato administrativo, deixar de saná-lo incorrerá nas penalidades da lei pela omissão, sem prejuízo das sanções previstas no art. 37, § 4º, da Constituição da República.”</li>
</ul>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Segundo noticiado em <a href="https://oglobo.globo.com/rio/crivella-sobre-linha-amarela-tomamos-medidas-para-que-pedagio-nao-fosse-cobrado-24047090">https://oglobo.globo.com/rio/crivella-sobre-linha-amarela-tomamos-medidas-para-que-pedagio-nao-fosse-cobrado-24047090</a> e <a href="https://oglobo.globo.com/rio/com-custo-estimado-em-3-milhoes-lamsa-comeca-recuperar-praca-do-pedagio-da-linha-amarela-1-24047935">https://oglobo.globo.com/rio/com-custo-estimado-em-3-milhoes-lamsa-comeca-recuperar-praca-do-pedagio-da-linha-amarela-1-24047935</a>. Acesso em 30/10/2019.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Sobre o tema, veja-se GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O Equilíbrio Econômico-Financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. In: Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público-privadas. Fórum, 2016. p. 104 e seguintes.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5"></a> [5] A Lei nº 8.987/1995 elenca, em seu artigo 35, as principais formas de extinção das concessões. Em regra, constatada a ausência de interesse público na manutenção do contrato de concessão, dever-se-á proceder à respectiva encampação, precedida de lei autorizativa específica e do pagamento da indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis ainda não amortizados ou depreciados. Existindo inadimplemento da concessionária, a lei prevê processo específico voltado à declaração da caducidade, nos termos do seu artigo 38. Ainda, verificada a nulidade do contrato ou da licitação que o antecedeu, é possível à Administração Pública, de ofício, declará-la, observados, sempre, o devido processo legal e a proporcionalidade, bem como as necessárias mitigações à autotutela decorrentes da proteção à segurança jurídica e à confiança legitima do administrado (BAPTISTA, Patrícia. Os limites constitucionais à autotutela administrativa. Revista da Procuradoria‐Geral do Município de Juiz de Fora ‐ RPGMJF Juiz de Fora, ano 1, n. 1, jan. / dez. 2011).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Veja-se <a href="https://oglobo.globo.com/rio/apos-reuniao-sobre-linha-amarela-vereadores-devem-aprovar-encampacao-da-via-24053979">https://oglobo.globo.com/rio/apos-reuniao-sobre-linha-amarela-vereadores-devem-aprovar-encampacao-da-via-24053979</a>. Acesso em 31/10/2019.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Nos contratos de concessão, em geral, as receitas excedentes não são atribuídas a apenas uma das partes (Poder Público ou concessionária), devendo haver algum mecanismo contratual de compartilhamento destes.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p. 86.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> JUSTEN FILHO, Marçal. O direito administrativo de espetáculo. In ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 68).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Exatamente por isso, o dever de sopesamento e explicitação de questões de ordem consequencialista-pragmática nas decisões administrativas, controladoras e judiciais foi expressamente inserido no ordenamento nacional, mediante a aprovação da Lei nº 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro. Em especial, veja-se o que dispõe o art. 20 da LINDB: “Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> JUSTEN FILHO, Marçal. Art. 20 da LINDB-Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas decisões públicas. Revista de Direito Administrativo, p. 13-41, 2018, p. 29-30.

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JOTA

Efeitos óbvios da constitucionalização do Direito Administrativo ainda não foram internalizados pelo gestor público

A Linha Amarela e o Direito Administrativo do óbvio

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