Eduardo Mendonça

O novo coronavírus induziu uma produção legislativa frenética, já se contando mais de dez mil atos normativos estaduais e municipais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. No plano federal, têm merecido destaque as medidas para atenuar os impactos econômicos da pandemia e do isolamento.
Nesse contexto, é importante manter a atenção quanto ao risco de que o ambiente de exceção facilite restrições desproporcionais a direitos fundamentais, sobretudo por meio de medidas baseadas tão somente em intuições.
O risco é maior para a liberdade econômica, tradicionalmente relegada no Brasil a uma proteção amplamente retórica, a despeito de formalmente constituir princípio fundamental da ordem econômica (CF/88, art. 170) e um dos fundamentos da própria República (CF/88, art. 1º).
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Um exemplo paradigmático desse risco é o art. 17 do recém aprovado <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8093441&amp;ts=1590407637639&amp;disposition=inline" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Projeto de Lei nº 1.179/2020</a>, que se encontra na presidência da República para sanção ou veto<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Concebido para regulamentar conflitos de direitos recorrentes na pandemia, o projeto foi emendado para incluir interferência injustificada na relação contratual entre motoristas e plataformas que fazem a intermediação da atividade de transporte individual privado e de entrega de refeições e encomendas.
De forma específica, o dispositivo força as plataformas a concederem um aumento linear de pelo menos 15% no valor repassado aos parceiros. Nos termos da <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8085082&amp;disposition=inline" target="_blank" rel="noopener noreferrer">exposição de motivos</a>, a medida seria justa para "apoiá-los e recompensá-los por seu incessante trabalho, que colabora sobremaneira com a mobilidade urbana em momento de difícil capacidade de locomoção"<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Ainda que essa pareça uma boa inspiração, não se pode admitir que a liberdade contratual seja limitada por fundamentos de pura conveniência política, menos ainda quando desacompanhados de exame dos seus impactos sobre as atividades reguladas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
No caso em exame, a inovação contraria a ratio dos demais artigos do próprio Projeto de Lei nº 1.179/2020 e, mais do que isso, também das demais medidas econômicas de combate à crise. Cada um desses aspectos justifica breve comentário.
Como referido, o Projeto de Lei nº 1.179/20 destina-se a instituir um regime jurídico transitório para disciplinar certas relações privadas afetadas de forma mais intensa pela pandemia.
Sem entrar na discussão quanto à validade de cada uma dessas medidas, é possível verificar alguns traços em comum na racionalidade que lhes é subjacente: o projeto identifica conflitos recorrentes ou inevitáveis no contexto da pandemia e efetua ponderações em abstrato, estabelecendo uma acomodação entre os direitos em conflito e buscando promover segurança jurídica.
A título de exemplo:
(i) permite que síndicos estabeleçam medidas de restrição na circulação em condomínios, antecipando-se aos impasses que surgiriam da divergência entre moradores;
(ii) estabelece que efeitos da crise sobre a economia em geral, como variações inflacionárias e cambiais, não constituirão causa de imprevisão para pedidos de reequilíbrio contratual, o que não impede discussões baseadas na especificidade de cada contrato; e
(iii) suspende a possibilidade de concessão de medida liminar de despejo em certas hipóteses. Aqui, considerando as inevitáveis dificuldades de muitos inquilinos e dos impactos drásticos de despejos no período de isolamento, o projeto opta por prestigiar o direito à moradia.
Como se vê, a tônica geral é de balanceamento entre direitos em situação de colisão, nas quais é inevitável efetuar compressões para chegar a uma solução. É possível questionar a proporcionalidade das restrições, mas não se pode deixar de reconhecer que algum balanceamento é necessário e que, em princípio, o legislador dispõe de legitimidade para efetuar juízos de preferência condicionada entre os interesses colidentes.
<blockquote class="jota-article__eye">Ademais, em se tratando de conflitos já instalados ou inevitáveis, a criação de uma baliza legislativa cria previsibilidade e uniformidade, contribuindo para que sejam observados os princípio da isonomia e da segurança jurídica.</blockquote>
Destoando dessa lógica, o art. 17 pretende interferir na fixação de preços privados para impor uma vantagem pecuniária adicional para uma das partes. O que se tem, portanto, é restrição a direito fundamental baseada em alegado juízo de conveniência, intrinsecamente incompatível com a natureza desses direitos.
Ainda que não fosse assim, um olhar mais atento demonstra que a medida vai na contramão dos esforços para minorar o impacto da crise sobre as atividades produtivas, no interesse de todos. Sob esse ponto de vista, a determinação é contraproducente por razões que se combinam.
Em primeiro lugar, a medida altera o equilíbrio contratual em favor dos motoristas e entregadores que continuam a exercer atividade remunerada, e não daqueles que se encontram afastados e seriam o foco natural de iniciativas de apoio.
Agravando a distorção, a interferência não é sequer acompanhada de elementos que demonstrem sua capacidade de atingir o objetivo. Deixa de considerar, por exemplo, o risco de reduzir a capacidade das empresas de otimizarem seus preços e aumentar a procura pelo serviço, reduzindo globalmente a renda de todos os motoristas e entregadores. Também não pondera que o ganho individual para cada beneficiado tende a ser baixo, sem prejuízo do impacto global elevado sobre as empresas.
Em segundo lugar, o projeto cria encargos adicionais para as empresas justamente no momento em que elas sofrem perdas expressivas de faturamento, prejudicando sua sustentabilidade.
Pode colocar em risco, igualmente, a manutenção de programas voluntários de apoio aos motoristas e entregadores, com foco nos que estejam impossibilitados de trabalhar<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Nesse ponto, também chama a atenção que, em meio às medidas de apoio às empresas em geral, um único setor da economia seja destinatário de um novo encargo, e com a justificativa já mencionada de impor "recompensa adicional" aos motoristas e entregadores que se mantém em atividade.
A impossibilidade de universalizar essa lógica já sugere que a medida é desprovida de base razoável na realidade e que, sendo restrita a um único setor, esbarra frontalmente no princípio da isonomia.
Em terceiro lugar, a imposição de uma interferência linear sobre todos os contratos desconsidera as circunstâncias de cada empresa e a própria dinâmica do mercado. Esse último ponto foi objeto de destaque em <a href="http://www.cade.gov.br/notas-tecnicas/nota-tecnica-21.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">nota técnica</a> do Cade que assinalou os potenciais efeitos negativos da medida sobre a concorrência caso o dispositivo em discussão seja sancionado<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Em especial, o sistema adotado desconsidera que o impacto da imposição será assimétrico em função de fatores como as margens de lucro anteriormente praticada e as reservas de caixa de cada empresa, sendo provável que o sacrifício seja maior para os empreendimentos menores.
Tampouco considera o incentivo para que outros custos sejam repassados em maior medida aos usuários, criando pressão para aumento de preços. E isso sem falar nos efeitos negativos para a percepção de segurança jurídica, passando a mensagem de que contratos podem ser alterados pela mera invocação de alegados bons propósitos, sequer testados.
Como visto, é sintomático que a exposição de motivos não seja acompanhada de qualquer dado empírico a respeito dos impactos da medida ou mesmo de suas premissas. Em lugar disso, limita-se a especular que o custo da determinação seria baixo e poderia ser facilmente absorvido pelas empresas<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Ao mesmo tempo, assume que uma espécie de bonificação aos motoristas e entregadores em atividade seria um fim legítimo para justificar uma medida de intervenção estatal sobre a liberdade de contratar.
O que se tem, portanto, é uma interferência baseada em intuições, inadequada, desnecessária e desproporcional para os fins a que se destina. E o exato oposto do que o Congresso Nacional sinalizou com a aprovação recente da Lei de Liberdade Econômica.
A pandemia gera por si mesma dificuldades institucionais desafiadoras. Não precisamos sacrificar também a promessa, ainda incipiente no Brasil, de conferir à liberdade econômica tratamento que não seja meramente retórico e protocolar.
&nbsp;
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Emerson Voltare, Estados e municípios criam 10 mil leis durante a epidemia do novo coronavírus. Conjur 1 o jun. 2020. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2020-jun-01/estados-municipios-">&lt;https://www.conjur.com.br/2020-jun-01/estados-municipios-</a>criaram-10-mil-leis-durante-epidemia?fbclid=IwAR36w-SXdq57xgSResmKPz0u76BUT6W3tSt1Ssv5-B7gCRkfxJ8rmtUGyb0&gt;. Acesso em: 3 de junho de 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> PL 1.179/2020, art. 17: "A empresa que atue no transporte remunerado privado individual de passageiros, nos termos da Lei nº 12587, de 3 de janeiro de 2012, inclusive por aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede, reduzirá, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020, sua porcentagem de retenção do valor das viagens em ao menos 15% (quinze por cento), garantindo o repasse dessa quantia ao motorista. § 1º. Fica vedado o aumento dos preços das viagens ao usuário do serviço em razão do previsto no caput. § 2º. As regras previstas no caput e no § 1º aplicam-se aos serviços de entrega (delivery), inclusive por aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede, de comidas, alimentos, remédios e congêneres".
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Para maior clareza, vale transcrever passagem maior da exposição de motivos: "Os motoristas de aplicativos de transporte têm, como todos os brasileiros e brasileiras, sofrido os impactos da Pandemia de coronavírus. Entretanto, tais motoristas têm sofrido adicionalmente, pois continuam a atuar independentemente das orientações de isolamento social. Estão sujeitos, portanto, a uma maior possibilidade de contaminação, haja vista a quantidade de SF/20801.71782-18 00085 PL 1179/2020 corridas que perfazem ao longo dos dias. De forma a apoiá-los e recompensá-los por seu incessante trabalho, que colabora sobremaneira com a mobilidade urbana em momento de difícil capacidade de locomoção, sugerimos temporariamente limitar o repasse que os motoristas estão hoje obrigados a fazer às empresas (cerca de 20% a 25% do valor da corrida). Pela presente emenda, portanto, pretende-se que reduzir tais repasses em ao menos 15%, nada impedindo que as empresas optem por valores maiores, inclusive como forma de fazer publicidade pelo comportamento elogiável de buscar auxiliar seus motoristas parceiros durante a crise".
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Tal premissa, inerente ao regime dos direitos fundamentais, foi explicitada pelo STF no julgamento da validade de leis municipais que pretendiam estabelecer restrições irrazoáveis ao transporte individual privado. V. STF, ADPF 449, DJe 08.05.2019, Rel. Min. Luiz Fux "(...) O sistema constitucional de proteção de liberdades goza de prevalência prima facie, devendo eventuais restrições ser informadas por um parâmetro constitucionalmente legítimo e adequar-se ao teste da proporcionalidade, exigindo-se ônus de justificação regulatória baseado em elementos empíricos que demonstrem o atendimento dos requisitos para a intervenção" (...).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> A título de exemplo, programas de apoio voluntário foram instituídos pelas empresas UBER (informação disponível em: &lt;<a href="https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/coronavirus/">https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/coronavirus/</a>&gt;) e 99 (informação disponível em: &lt;<a href="https://99app.com/coronavirus/">https://99app.com/coronavirus/</a>&gt;).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Disponível em: &lt;<a href="http://www.cade.gov.br/notas-tecnicas/nota-tecnica-21.pdf">http://www.cade.gov.br/notas-tecnicas/nota-tecnica-21.pdf</a>&gt;. Acesso em 04 de junho de 2020.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Segundo a exposição de motivos: "Entendemos que tais empresas possuem totais condições de ter uma ligeira redução em seu faturamento; destacamos na emenda que tais aplicativos não poderão repassar ao usuário o custo envolvido na redução do percentual do repasse por parte dos motoristas. Compreendemos que, em regra, deve-se prevalecer a livre negociação na relação contratual entre as partes; entretanto, como vivemos em momento excepcional, medidas emergenciais devem ser tomadas para alcançar os mais prejudicados com a crise".

Guilherme Gandolfi-71

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Inconstitucionalidade do art. 17 do PL 1.179/20, que pretende limitar preços privados com argumentos de conveniência

A liberdade econômica sob a mira das intuições

Inconstitucionalidade do art. 17 do PL 1.179/20, que pretende limitar preços privados com argumentos de conveniência