Pedro Magalhães Batista
Professor de Direito Empresarial e Bancário da Faculdade de Direito da Universidade de Leeds e pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York

A posição do ministro Alexandre de Moraes, que parece adotar uma jurisprudência americana ultrapassada e mais intervencionista, como citada em sua decisão, corre o risco de sufocar o debate legítimo e pluralista, essencial para qualquer democracia. Embora existam preocupações legítimas sobre o uso das redes sociais para fins ilícitos, a resposta não deve ser uma repressão ampla e generalizada. Em vez disso, o foco deveria estar em como regular essas plataformas de maneira a garantir tanto a proteção contra abusos quanto a preservação da liberdade de expressão.
Neste comentário, argumento que a decisão do ministro Alexandre de Moraes falha ao se apoiar em uma doutrina ultrapassada da jurisprudência americana, ignorando as lições mais recentes sobre a liberdade de expressão e o princípio do dano de Mill.
A decisão de Moraes de suspender a rede social X ocorre em um cenário de crescente preocupação com o uso de plataformas digitais para disseminar desinformação e incitação à violência, especialmente após os eventos de 8 de janeiro de 2023 no Brasil. Naquela data, uma tentativa de golpe de Estado por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a intensificar suas ações contra discursos considerados antidemocráticos. Moraes, figura central na condução dessas investigações, enxerga as redes sociais como arenas onde ideias extremistas podem florescer e representar uma ameaça direta à democracia.
Ao justificar sua posição, Moraes cita pensadores liberais clássicos, como John Stuart Mill, para argumentar que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e pode ser limitada quando resulta em “dano injusto". Além disso, ele recorre à decisão no caso Schenck v. United States (1919) para sustentar sua argumentação sobre o perigo claro e iminente. Contudo, tanto a interpretação de Moraes da filosofia de Mill quanto seu entendimento da jurisprudência americana merecem uma análise crítica, especialmente à luz da evolução legal que revogou o precedente citado por ele.
John Stuart Mill, em sua obra seminal On Liberty (1859), faz uma defesa enérgica da liberdade de expressão, destacando sua importância como a melhor ferramenta para a busca da verdade e para o progresso intelectual e moral da sociedade. Para Mill, dado que os seres humanos são falíveis, é essencial estar sempre aberto à possibilidade de que uma opinião aparentemente errada possa conter algum elemento de verdade significativo. Mesmo quando uma ideia é claramente falsa, permitir sua expressão é importante para reforçar a compreensão da verdade, por meio do confronto de diferentes perspectivas.
Mill argumenta que os maiores benefícios da liberdade de expressão recaem sobre o público que acompanha o debate, mais do que sobre os debatedores em si. Ele afirma que “não é sobre o partidário apaixonado, mas sobre o espectador mais calmo e desinteressado, que essa colisão de opiniões exerce seu efeito salutar” (On Liberty, Capítulo 2). Nesse sentido, o objetivo do debate não é tanto convencer o adversário, que pode continuar sustentando opiniões incorretas, mas sim ajudar o público em sua busca pela verdade. Esse argumento é frequentemente associado ao conceito do “mercado de ideias”, citado por Moraes em sua decisão, onde o choque aberto de pontos de vista levaria à prevalência das ideias corretas.
Contudo, como pontuado por Jeffrey W. Howard, é importante lembrar que Mill não sugere que esse processo levará inevitavelmente à verdade, mas defende que ele é o mecanismo mais eficaz disponível, principalmente se comparado à alternativa de permitir que uma autoridade decida o que é verdadeiro e suprime o que julga ser falso, com todas as suas falhas e limitações humanas (Freedom of Speech, Stanford Encyclopedia of Philosophy).
Embora Mill reconheça que discursos podem, em alguns casos, causar danos, ele argumenta que, na maioria das situações, os benefícios de permitir a livre expressão superam seus possíveis prejuízos. Mill admite a necessidade de restringir discursos que representem um perigo imediato, quando não há tempo para debate antes que o dano ocorra. Um exemplo clássico apresentado por Mill é o de uma multidão furiosa em frente à casa de um comerciante de cereais, onde palavras inflamadas poderiam incitar violência imediata:
“Uma opinião de que os comerciantes de cereais são responsáveis pela fome dos pobres, ou de que a propriedade privada é um roubo, deve ser deixada sem interferência quando simplesmente circulada pela imprensa, mas pode justificadamente incorrer em punição quando expressa oralmente para uma multidão excitada reunida em frente à casa de um comerciante de cereais, ou quando distribuída entre a mesma multidão na forma de um cartaz. Atos, de qualquer tipo, que, sem causa justificável, prejudiquem os outros, podem e, nos casos mais importantes, absolutamente requerem ser controlados pelos sentimentos desfavoráveis e, quando necessário, pela interferência ativa da humanidade” (On Liberty, Capítulo 3).
A interpretação de Moraes sobre Mill parece ignorar essa distinção crítica. O princípio do dano de Mill não concede licença para suprimir discursos impopulares ou ofensivos por causarem desconforto e repulsa. Pelo contrário, Mill argumenta que o confronto de ideias, mesmo quando envolve discursos prejudiciais, é essencial para o avanço da sociedade, a menos que o discurso apresente um perigo iminente que não possa ser mitigado através do debate público.
De fato, a citação de Mill imediatamente anterior à escolhida por Moraes em sua sentença aborda mais diretamente a sua ardente defesa da liberdade de expressar e publicar opiniões:
“Esta, então, é a região apropriada da liberdade humana. Ela compreende, em primeiro lugar, o domínio interno da consciência; exigindo a liberdade de consciência no sentido mais amplo; liberdade de pensamento e sentimento; liberdade absoluta de opinião e sentimento sobre todos os assuntos, práticos ou especulativos, científicos, morais ou teológicos. A liberdade de expressar e publicar opiniões pode parecer estar sob um princípio diferente, uma vez que pertence àquela parte da conduta de um indivíduo que diz respeito a outras pessoas; mas, sendo quase tão importante quanto a liberdade de pensamento em si, e fundamentando-se em grande parte nas mesmas razões, é praticamente inseparável dela” (On Liberty, Capítulo 1).
A famosa analogia de “gritar fogo em um teatro lotado” é uma referência comum para discursos ou ações cujo propósito principal é criar pânico, e é frequentemente associada ao conceito de “perigo claro e iminente”, introduzido pelo juiz Oliver Wendell Holmes Jr. no caso Schenck v. United States (1919), também citado por Moraes. Nesse caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que o governo poderia restringir a liberdade de expressão se as palavras proferidas representassem um perigo claro e presente de incitação a atos ilegais.
No entanto, essa doutrina não permaneceu imutável. Poucos meses após Schenck, Holmes revisou sua posição em uma dissidência célebre no caso Abrams v. United States (1919). Nesse caso, Holmes argumentou que o teste do “perigo claro e iminente” não havia sido corretamente aplicado, defendendo que o governo só deveria intervir quando houvesse uma ameaça imediata e concreta de ação ilegal.
Essa mudança no pensamento de Holmes foi fundamental para a evolução da interpretação da liberdade de expressão nos Estados Unidos, culminando no caso Brandenburg v. Ohio (1969), em que a Suprema Corte dos EUA abandonou o teste de “perigo claro e iminente” em favor de um teste mais protetor da liberdade de expressão — o teste de incitação. Segundo Brandenburg, a incitação ao uso da força ou à violação da lei só pode ser restringida se estiver “direcionada a incitar ou produzir uma ação ilegal iminente e provável de ocorrer".
Mais recentemente, o caso Twitter v. Taamneh (2023) é um exemplo de como a Suprema Corte dos EUA lida com a responsabilidade das plataformas digitais em relação à propagação de conteúdo extremista. A Corte decidiu, de forma unânime, que empresas de tecnologia não poderiam ser responsabilizadas por não conseguirem impedir que a facção terrorista Estado Islâmico usasse suas plataformas para recrutar, arrecadar fundos e organizar suas atividades.
Essa decisão mostra a cautela da Corte em expandir a responsabilidade das empresas de tecnologia, ressaltando a importância de proteger a liberdade de expressão, mesmo em ambientes online que podem ser usados para disseminar conteúdos controversos.
Ainda nos Estados Unidos, a Seção 230 do Communications Decency Act é vista como uma das principais proteções para a liberdade de expressão nas plataformas digitais, ao limitar a responsabilidade das empresas pelo conteúdo postado por terceiros. Embora haja debates sobre a reforma dessa seção, o receio de uma intervenção mais pesada é que ela possa levar à autocensura generalizada nas plataformas, o que ameaça a liberdade de expressão. Em contraste, a decisão de Moraes reflete uma abordagem mais intervencionista, que corre o risco de silenciar debates legítimos e pluralistas nas redes sociais.
Por lá, uma distinção importante é feita entre censura estatal e censura privada. Enquanto o governo está sujeito a rigorosos limites no que diz respeito à restrição da liberdade de expressão, as plataformas privadas têm maior latitude para moderar conteúdo de acordo com suas próprias diretrizes. Isso cria uma tensão entre a liberdade de expressão protegida pela Constituição e as políticas de moderação privadas.
A decisão de Moraes de intervir diretamente no funcionamento da plataforma X no Brasil sugere um modelo em que o Estado exerce uma influência mais direta, o que seria visto como uma violação do princípio constitucional nos EUA.
A dissidência de Holmes no caso Abrams e a subsequente evolução da jurisprudência americana sublinham a importância de proteger a liberdade de expressão, especialmente em contextos em que o discurso político está em jogo. As plataformas de mídia social, como o X, tornaram-se os novos espaços públicos onde o debate político ocorre em escala global. Nesse cenário, aplicar uma interpretação dilatada do conceito de “perigo claro e iminente” pode ter efeitos devastadores sobre a liberdade de expressão.
É importante ressaltar que a decisão de Moraes pode estar, de fato, amparada pela legislação brasileira, como o Código Penal, modificado pela Lei 14.197/2021, que criminaliza certas formas de crime contra o Estado democrático de Direito, incluindo incitação à violência e à subversão da ordem institucional. Essas normas são, sem dúvida, mais restritivas à liberdade de expressão, especialmente em comparação com o entendimento mais liberal encontrado na jurisprudência americana.
No entanto, o que não parece legítimo é o uso da doutrina de John Stuart Mill e da jurisprudência americana para justificar essa abordagem. A citação desses elementos, sem levar em consideração o contexto histórico e a evolução legal dos Estados Unidos, parece visar a conferir uma legitimação mais ampla, quase global, a uma decisão que se alicerça em parâmetros legais internos, mas que não encontra respaldo nas tradições mais recentes da liberdade de expressão no liberalismo clássico ou no direito comparado.
Assim, a tentativa de ancorar a decisão em uma jurisprudência americana ultrapassada distorce o debate ao evocar fundamentos que já foram amplamente superados.
A interpretação de Moraes sobre o pensamento liberal clássico, que justifica a suspensão do X com base em uma suposta confusão entre liberdade de expressão e liberdade de agressão, é problemática. O liberalismo clássico, representado por John Stuart Mill, defende a liberdade de expressão como um pilar central da sociedade, enfatizando a importância de permitir que até mesmo ideias controversas sejam debatidas abertamente. Mill oferece uma leitura muito mais restritiva do princípio do dano do que a sugerida por Moraes, limitando a intervenção estatal a casos de dano claro, direto e imediato.
Ao considerar a dissidência de Oliver Wendell Holmes no caso Abrams e a evolução posterior da jurisprudência americana, torna-se evidente que a proteção à liberdade de expressão deve ser vigorosamente defendida, especialmente em contextos políticos. Qualquer tentativa de restringir esse direito fundamental deve ser abordada com extrema cautela, sob pena de comprometer a vitalidade do debate democrático e os princípios liberais que o sustentam.
Ao fazer essas observações, não defendo, de forma alguma, o conteúdo de algumas das falas repugnantes que acabaram protegidas pela jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, ou que são compartilhadas na plataforma X. O que proponho aqui é uma correção quanto à atual posição da Corte americana sobre a liberdade de expressão, negligenciada na citação de Moraes.
Por fim, outro liberal clássico, Friedrich Hayek, em um ensaio inspirado por John Stuart Mill, notoriamente afirmou: “Liberdade concedida somente quando se sabe de antemão que seus efeitos serão benéficos não é liberdade” (The Creative Powers of a Free Civilisation, 1958).