José Augusto Fontoura Costa

Já não é nova a notícia do adensamento do comércio na bacia do Pacífico e a perda de uma absoluta liderança atlântica nos fluxos econômicos internacionais. Em boa parte das discussões jurídicas, porém, a quase completa ausência dos direitos asiáticos começa a soar estranha.
Um tema recorrente, no entanto, é o da constatação do crescente papel das instituições de solução de controvérsias sediadas em países asiáticos, com ênfase nos hubs arbitrais de Hong Kong e Singapura, assim como na criação de instâncias judiciais voltadas à solução de controvérsias internacionais. São movimentos importantes, capazes de colocar questões fundamentais a respeito dos destinos da nova lex mercatoria.
Há, nesse sentido, duas hipóteses básicas: (1) a de uma plena convergência capaz de formar, a partir dos alicerces já lançados por uma lex mercatoria ocidental, um único sistema internacional dos comerciantes e (2) a da fragmentação das jurisdições, acompanhada por uma diferenciação do direito material aplicado, passível de, no limite, separar um direito do Pacífico de um do Atlântico. Evidentemente, inúmeras hipóteses intermediárias podem ser traçadas, mas a identificação dessas duas possíveis tendências radicais é importante para orientar o raciocínio.
Encontram-se, contudo, algumas dificuldades para apresentar uma resposta clara e consistente. Uma delas deriva do caráter incidental e generalista com que os estudos ocidentais de direito comparado abordam os sistemas jurídicos asiáticos. Os estudos mais correntes, na linha da descrição das tradições e sistemas jurídicos, tendem a apresentar os direitos asiáticos de modo episódico e estereotipado. Há, nesse sentido, duas narrativas constantemente retomadas: a japonesa e a chinesa.
A primeira se inicia com a política isolacionista do Xogunato Tokugawa (1603-1868) e a abertura da era Meiji (1868-1912), na qual o Japão buscou o desenvolvimento por meio da adoção de técnicas e formas organizacionais ocidentais. Nesse contexto, houve a adoção de um Código Civil em 1896, o qual foi elaborado a partir de estudos dos direitos ocidentais, com destaque para o alemão e o francês, resultando em um instrumento inspirado no BGB. O desenvolvimento posterior é, normalmente, percebido como de continuidade da tradição romano-germânica associada às transformações econômicas e sociais assemelhadas àquelas dos países ocidentais.
A segunda tende a se pautar pelo foco na tradição filosófica confucionista, de maneira a destacar aspectos referentes a uma concepção geral do direito como vinculada a atitudes cultivadas e virtuosas, inclinadas a reduzir ao máximo possível a necessidade de qualquer imposição externa ou sanção. Embora elaborando o tema com diferentes graus de detalhe e sofisticação, a imagem arquetípica da juridicidade chinesa tende a ser a de um sistema em que a virtude do direito humano (li) é central em relação às estruturas jurídicas penais e administrativas de normas postas pelo Estado (fa). A fragilidade da noção abstrata de titularidade de direitos subjetivos, a pouca importância do direito privado e a tendência à baixa litigiosidade, compartilhada, aliás, pelo Japão, completam um quadro em que os possíveis impactos da recente adoção de um Código Civil de feições romano-germânicas (2020) ainda estão por ser produzidos, compreendidos e avaliados.
Ainda que interessantes e capazes de despertar a curiosidade de qualquer pessoa interessada em direito, as narrativas e imagens ideais dos sistemas japonês e chinês estão bem longe de ofertar um quadro suficiente para a compreensão do que acontece na região da Ásia e do Pacífico. Obviamente, aliás, a própria noção geográfica de asiático não tem como corresponder a uma imagem cultural ou histórica unitária: trata-se de um continente composto por países tão diferentes como Camboja, Singapura, Emirados Árabes Unidos, Geórgia, Índia, Irã, Israel, Nepal e Quirguistão. Se a ideia de um Código Civil unificado tende a não vingar nem na Europa, imagine-se nesse contexto…
Daí a importância da nova lex mercatoria para compreender possíveis construções jurídicas de estruturação do comércio internacional na Ásia e Pacífico. Em outros termos, como a via da comparação e harmonização normativa parece difícil de ser efetivamente trilhada, em razão das inúmeras diferenças, a ideia de uma solução mais pragmática, em torno do comércio, se apresenta como caminho possível.
Até por isso, os principais movimentos não vêm das organizações e organismos internacionais dedicados à harmonização e uniformização do direito, como UniDroit e UNCITRAL. Tampouco decorre de estudos comparatistas sobre os diversos sistemas nacionais. O passo mais significativo, inclusive em termos da clivagem entre o tratamento das ordens jurídicas internas e as questões comerciais internacionais, é a estruturação de importantes e ativos centros arbitrais, bem como a oferta de cortes judiciais especializadas.
Dois dos mais importantes centros arbitrais da atualidade se localizam em Hong Kong e Singapura. Nesta, também se estabeleceu a Corte Comercial Internacional de Singapura (SICC), em funcionamento desde 2015. Criou-se na China, em 2018, a Corte Comercial Internacional da China (CICC), composta por duas divisões, em Shenzhen e Xi’an.
Singapura é, decerto, a jurisdição que mais apoia a formação de uma jurisdição internacional asiática baseada em padrões ocidentalizados, com forte ênfase na tradição de common law, herdada da dominação britânica. Não é necessário, aqui, repassar as características desse Estado insular com fortíssimos laços culturais com a China, mas é evidente que seu papel central se beneficia de sua situação geográfica e política, bem como a base econômica em serviços internacionalizados e sem produção agrícola ou industrial relevante.
O Centro de Arbitragem de Singapura funciona, grosso modo, como as demais instituições estabelecidas nos principais hubs internacionais. Seu roster arbitral é bastante amplo e variado, o que aponta para a ideia de facilitar a adaptação às leis escolhidas e às diferentes tradições jurídicas. Não obstante, concentra-se em atender a região do Pacífico, ressaltando-se a importante presença de árbitros de Austrália, China, Hong Kong e Índia, bem como de outras jurisdições asiáticas.
A atuação do Centro de Arbitragem Internacional de Hong Kong (HKIAC) apresenta traços muito similares e também merece destaque. Não é claro se as tensões políticas e o incremento do controle da China continental no antigo enclave britânico terão efeito sobre a grande popularidade de sua arbitragem. Até o momento, inclusive em face do aumento da importância relativa de Pequim e Xangai como centros arbitrais, não se observa impacto sensível.
Já as cortes internacionais são menos flexíveis. A SICC aplica o direito do foro, o qual é bastante semelhante ao inglês, e se destaca como um sistema bem desenvolvido e adequado ao comércio. Respalda-se em um corpo misto, com juízes nacionais e estrangeiros, sendo esses últimos quase exclusivamente oriundos de jurisdições de common law. A disponibilidade de um sistema de apelação, que pode ser afastado consensualmente pelas partes, é apresentado como uma das vantagens, assim como os custos e a celeridade.
Já a CICC nasce como um instrumento para dar esteio jurídico à Nova Rota da Seda (Belt and Road Iniciative). Ao contrário da SICC, não se destina a potencializar a oferta de serviços para empresas estrangeiras, pois é claramente formada para julgar casos em que uma das partes é chinesa, a despeito de também ter competência para causas envolvendo apenas partes estrangeiras. A própria composição do tribunal, apenas por juízes chineses, aponta nessa direção.
Por fim, para delinear um quadro asiático mais completo e consistente, é preciso mencionar três outros aspectos relevantes: (1) o esforço de Dubai em se converter em um centro internacional de serviços jurídicos, com destaque para o Centro de Arbitragem Internacional de Dubai (DIAC) e as Cortes do Centro Financeiro Internacional de Dubai (DIFC Courts); (2) a posição complexa de Taiwan em razão da dura oposição chinesa, de maneira a depender de instâncias e sistemas sem vínculo com as principais instituições asiáticas e (3) a posição japonesa, tendente a levar os casos para suas próprias estruturas legais e institucionais.
Desse modo, retomando as questões iniciais, revela-se haver uma robusta dificuldade em se identificar a possível formação de um sistema único de tratamento das questões comerciais internacionais na região do Pacífico. O destaque das instituições de Singapura e Hong Kong poderia, em princípio, ser interpretado como indício da convergência em torno de formas jurídicas e common law, mas é difícil contar com uma adesão bovina das maiores economias asiáticas. Nesse sentido, a reflexão parece apontar para a necessidade de compreender e considerar novas e importantes hipóteses.
Por partes.
O direito comparado aponta para um quadro muito complexo na Ásia e Pacífico. Uma primeira avaliação mostra que inexiste uma concepção jurídica comum e as diversas composições existentes são difíceis de conciliar em termos filosóficos, teóricos, normativos ou práticos. Apesar disso, parece não haver qualquer intenção generalizada de receber alegremente transplantes jurídicos ocidentais. Nesse quadro é muito improvável a uniformização do direito, ainda que exclusivamente no campo mercantil.
Do ponto de vista da arquitetura institucional dos centros de solução de controvérsias comerciais internacionais, a esperança de unificação e uniformização em torno das instituições de Singapura e Hong Kong vem se relativizando. Contanto, a ideia de um amplo sistema ancorado na tradição inglesa de uma common law bastante favorável aos negócios internacionais, inclusive a ponto de reunir Ocidente e Oriente, vai se convertendo de previsão razoável em uma configuração desejada, mas improvável, pelo menos sem muitas exceções e concessões.
Dessa perspectiva, parece ser provável a composição do sistema de direito do comércio internacional da região da Ásia e Pacífico a partir da cisão entre dois grandes elementos. De um lado, uma concepção jurídica de matriz sino-japonesa, marcada por traços da concepção confucionista e da opção pela adoção de leis civis codificadas de cariz ocidental e, também, apoiada por duas das três maiores economias do mundo. Do outro, o modelo arbitral de Singapura e Hong Kong, altamente adaptável às idiossincrasias de cada operação negocial, sem negar a base tradição do direito inglês.
É possível que essa divisão se aprofunde e descambe em uma rivalidade aberta; também pode ser que a tensão se resolva em síntese dialética de um novo e único sistema harmônico. Bem mais provável, porém, é a divisão da atuação das jurisdições arbitrais e estatais em nichos setoriais e ajustados à nacionalidade e outras características das partes, em uma estrutura caracterizada pelo convívio normalmente pacífico de instituições e grupos instalados em ótimos de Nash.
Para além do exercício de futurologia, a observação prática que deriva da reflexão sobre a possível extensão ou reajustamento da nova lex mercatoria na região da Ásia e Pacífico é a necessidade da busca cautelosa da compreensão e das soluções para as questões jurídicas do comércio internacional em um ambiente complexo e, para a imensa maioria dos juristas ocidentais, desconhecido.

Hong Kong

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JOTA

Sistema na região se divide entre matriz sino-japonesa e modelo arbitral de Singapura e Hong Kong

A lex mercatoria no Pacífico

Nova lex mercatoria: Direito do comércio internacional no Pacífico se divide entre matriz sino-japonesa e modelo de Singapura e Hong Kong