Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Muitas vezes vemos que nesta cidade se age em relação às pessoas honestas como se agia a respeito da moeda antiga. Ela era sem ligas, a melhor de todas, a única bem cunhada, a única que tinha curso tanto entre os gregos como entre os bárbaros; mas em vez de usá-las, preferimos estas moedas de cobre de má qualidade cunhadas recentemente, e de má liga”.
<footer class="jota-article__quote-cite">- Aristófanes, As Rãs (c. 405 A.C.). Trad. Mário da Gama Kury.</footer>
</blockquote>
Thomas Gresham (1519-1579) era um gênio. Primeiro “mago das finanças” da era moderna, Gresham teve uma vida repleta de realizações. Foi o padrinho da City de Londres como centro financeiro global, fundando a sua bolsa de valores, a Royal Exchange, e salvando a libra esterlina do colapso. Com uma vasta folha de serviços como diplomata e financista de três reis Tudor, Thomas Gresham terminou seus dias como um dos homens mais ricos do mundo, fundou uma faculdade e deixou seu nome para uma das leis da ciência econômica, a “Lei de Gresham”. Talvez a lei econômica mais importante nestes tempos de pandemia.
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Vindo de uma tradicional família de Norfolk, Thomas Gresham iniciou sua carreira como agente financeiro e diplomático de Henrique VIII nos Países Baixos. A partir de 1551, adotou uma série de manobras financeiras e diplomáticas para apreciar o valor da libra esterlina na bolsa de Antuérpia, permitindo que o rei Eduardo VI sanasse as contas da Inglaterra. Já no reinado de Elizabeth I, serviu em uma série de postos diplomáticos, notadamente como embaixador à corte da duquesa Margarete de Parma, Governadora da Holanda. A eclosão da Revolta Neerlandesa (1566-1648) contra a inquisição do rei Filipe II da Espanha obrigou Gresham a retornar para Londres em 1567, levando consigo o centro financeiro do mundo. A Royal Exchange de Londres foi inaugurada oficialmente em 1571, conferindo à City o título de capital financeira do mundo, o que se mantém até os dias atuais.
Thomas Gresham era tão influente que consta que tenha sido a última pessoa a visitar o santuário de São Thomas à Becket, em Canterbury, antes de sua destruição por Henrique VIII quando da dissolução dos monastérios. Gresham foi a mente e os braços por trás do plano de ressuscitar a libra esterlina, no início do reinado de Elizabeth I, conduzido por William Cecil, então Lorde High Tresurer. A libra esterlina passava por uma severa crise de confiança nos mercados financeiros, devido às sucessivas desvalorizações de Henrique VIII e Eduardo VI. Naquela época, o dinheiro circulante era em moedas de metal, cuja desvalorização se dava por adicionar metais de baixa qualidade à liga, produzindo moedas que não eram mais de ouro ou prata puras. Como consequência dessa política, a Inglaterra via-se em pesadas dificuldades de financiamento externo. Ninguém aceitava a libra esterlina, porque todos saibam que ela não valia nada além de fugazis. Gresham, então, bolou um plano tão genial quanto audacioso.
Gresham, diante desse desafio, articulou a lei que leva o seu nome, cuja proposição é muito simples: quando há dinheiro bom e dinheiro ruim circulando ao mesmo tempo, o dinheiro bom tende a sair de circulação e somente ser comercializado por um ágio. Ou seja, as pessoas passam a querer se livrar do dinheiro ruim e buscar receber e guardar apenas o dinheiro bom, que, assim, some de circulação. O resultado é uma desvalorização acelerada do dinheiro ruim (inflação) e uma consequente apreciação do ágio do dinheiro bom. Para salvar a libra esterlina do colapso, Gresham advogava que a moeda da Inglaterra deveria ter o grau mais alto de pureza metálica, de modo que nenhum mercador em Lombard Street ou Antuérpia ousaria recusar a sua aceitação. Para isso, seria necessário recolher todas as moedas de libra esterlina em circulação no mundo, recunhá-las no mais alto grau de pureza e reintroduzi-las no mercado, sem, com isso, destruir a economia da Inglaterra. Era um plano que requeria um nível de sofisticação logística e inovação tecnológica desconhecidos da humanidade até então. Era uma saída altamente arriscada. Uma jogada, em suma, de gênio.
O plano Gresham foi um sucesso estrondoso, que muito contribuiu para a mudança do eixo do centro financeiro global de Antuérpia para Londres. Segundo o historiador John Guy, o fato de a Inglaterra ter se mantido como um estado independente nesta época deve muito ao gênio de Thomas Gresham. Ao lado de uma moeda pura e forte, Gresham advogava, também, o fortalecimento financeiro do mercado interno inglês e a revitalização do seu exército e de sua força naval. Desnecessário dizer que a visão de Gresham pautou a política britânica até o final da Segunda Guerra Mundial.
Guardadas as devidas proporções, o sistema financeiro internacional vive, nos dias atuais, uma situação bastante similar à observada por Gresham na bolsa de Antuérpia: há dinheiro ruim e dinheiro bom circulando ao mesmo tempo. O dinheiro ruim são os papéis-moeda nacionais, que não possuem lastro em ativos reais da economia, como já explicamos anteriormente neste espaço.<a href="applewebdata://CEC23FDC-93E0-4100-9ECA-832FE80F46B3#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> São tecnicamente fiat money, ou, popularmente, dinheiro do banco imobiliário. Já o dinheiro bom em circulação são as commodities metálicas e as criptomoedas. Se a Lei de Gresham continua em vigor, com a maior injeção de liquidez da história da humanidade conduzida pelos bancos centrais para entorpecer os efeitos econômicos da pandemia de COVID-19, as moedas nacionais tendem a uma rápida desvalorização (inflação) ao passo em que os ativos reais, como ouro, prata e criptomoedas tendem não somente a se apreciarem (valorização), mas a saírem mesmo de circulação. Quem estima que as criptomoedas terão uma valorização exponencial na próxima década tem não somente a Lei de Gresham ao seu lado, como também uma ajudinha da política de quantitative easing dos bancos centrais.
As principais críticas que têm surgido a respeito das criptomoedas parecem, elas também, uma paródia da situação da libra esterlina na época de Gresham. Argumentam, alguns de seus opositores, que as criptomoedas não teriam liquidez, isto é, não são universalmente aceitas e que isso lhes seria fatal. Bem, o ouro e a prata também não têm liquidez corrente, e nem por isso tem deixado de servir, ao longo de toda a história da humanidade, de reserva de valor. A maior utilidade das moedas boas está, na verdade, não em servirem de meio de pagamento corrente, mas, sim, de colateral para endividamento em moeda ruim, cujos juros principais são corroídos pela inflação inerente à má qualidade do dinheiro. E, para isso, como ativos de proteção e reserva, as criptomoedas parecem desempenhar muito bem seu papel.
<blockquote class="jota-article__eye">Outros opositores levantam a questão de que as criptomoedas não têm legal tender, isto é, não tem sua aceitação legalmente validada pelos governos nacionais. Este argumento parece um pouco mais forte, principalmente pelo seu corolário de que as autoridades nacionais poderiam restringir ou mesmo proibir a utilização de criptomoedas privadas.</blockquote>
Há vários indícios de que estaríamos adentrando em um tal cenário. O resultado, contudo, parece contraproducente para as autoridades nacionais. Em caso de quebra de confiança de uma ou mais moedas de referência, como o dólar, por exemplo, a economia tenderia a buscar refúgio em outras moedas mais sólidas, além de se criar um incentivo à constituição de um mercado paralelo de criptomoedas. O risco seria o de se gerar uma competição monetária internacional para ver quem tem a moeda mais sólida. El Salvador, por exemplo, tornou-se o primeiro país a reconhecer legalmente a bitcoin, vendo as transferências para a sua jurisdição explodirem em 400% no último mês.<a href="applewebdata://CEC23FDC-93E0-4100-9ECA-832FE80F46B3#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>Tanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) quanto a Moody´s reagiram, exprimindo preocupação com a estabilidade econômica e jurídica de El Salvador.<a href="applewebdata://CEC23FDC-93E0-4100-9ECA-832FE80F46B3#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Uma guerra monetária internacional, contudo, não é um bom presságio. O resultado imediato seria uma hiperinflação global.
Isso inexoravelmente levaria a um cenário, que já se divisa no horizonte, de transformação das moedas nacionais de dinheiro do banco imobiliário em criptomoedas publicamente administradas, as chamadas “Govcoins”, cuja notoriedade já lhes rendeu mesmo uma capa da Economist. Ironias da história à parte, esse movimento é praticamente o mesmo do plano Gresham na Inglaterra dos Tudor: recunhar a moeda nacional em um grau de pureza superior. Segundo a Lei de Gresham, essa seria a única maneira de as moedas nacionais poderem concorrer com as criptomoedas privadas, sem sofrerem o risco de cair em uma espiral inflacionária que lhes seria, em última análise, fatal. A competição das moedas públicas com outras moedas privadas, contudo, permaneceria como tem sido o padrão histórico universal. Em suma, cara leitora, nada há de novo sob o sol.
Há, ainda, uma terceira linha de objeções às criptomoedas que é particularmente interessante: a de que a sua mineração digital, por consumir muita energia elétrica, traria danos ao meio-ambiente. Esse foi, precisamente, o argumento usado por Elon Musk para suspender a aceitação da bitcoin pela Tesla. Seria interessante, neste quesito, conduzir uma análise comparativa de impacto ambiental entre a mineração digital, a mineração real e a produção de papel-moeda. Não parece claro quem sairia perdendo. De todas as maneiras, quem sai ganhando é quem tem energia barata, como o Brasil. Nosso país conta com uma das matrizes energéticas mais limpas e baratas do mundo, o que poderia, em tese, transformar o Brasil em uma potência mineradora digital de criptomoedas eco-friendly. Quem viver verá.
Thomas Gresham, apesar de sua incontestável genialidade, não inventou a lei que leva o seu nome. Ele apenas articulou uma constante na estrutura deste mundo condenado. Aristófanes mesmo, na citação que serve de epígrafe para este artigo, já havia notado a generalidade do fenômeno na Antiguidade Clássica. Aquilo que é ruim, quando entra em circulação, espanta o que é bom. Seja nas finanças, seja na política, seja no amor. Ignore a Lei de Gresham, cara leitora, por sua conta e risco.
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<a href="applewebdata://CEC23FDC-93E0-4100-9ECA-832FE80F46B3#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Idem.

criptoativos

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A Lei de Gresham, as govcoins e as criptomoedas

Uma Guerra Monetária Mundial?