José Augusto Fontoura Costa

Uma das jabuticabas legais é, sem dúvida, o artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Sua redação, histórico e contexto não deixam muita margem à interpretação: o ordenamento jurídico brasileiro não autoriza a escolha da lei aplicável aos contratos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Não autoriza a menos que as questões sejam levadas à arbitragem...
Com efeito, o artigo 2º da Lei de Arbitragem admite às “partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem”. Destarte, não apenas atribui a mais plena eficácia às cláusulas contratuais de escolha da lei aplicável, mas confere às partes na arbitragem a livre escolha das regras a serem aplicáveis a litígios de qualquer origem, com grande destaque para as obrigações ex lege, mas atendendo a quaisquer temas em matéria de direitos subjetivos patrimoniais e disponíveis.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Desnecessário reiterar que também outros conjuntos de preceitos, como princípios gerais de Direito e regras internacionais do comércio, podem ser apontados pelas partes como fundamento normativo para a arbitragem.
Coloca-se, porém, a questão das normas a serem aplicadas quando inexistir pacto de escolha da lei aplicável.
Embora seja recomendável, é verdade que nem sempre os contratos têm cláusulas de escolha de lei. Em alguns contextos é possível questionar a validade e a extensão da eficácia de cláusulas de lei aplicável, como, por exemplo, em alguns contratos padronizados ou negociados sem paridade de forças. É raro encontrar tais situações, mas não é impossível. O que, então, devem os árbitros fazer?
A tendência dos mais açodados poderia ser a busca do artigo 9º da LINDB como celeiro de nutrícias normas suplementares. Estão, ali, o critério conectivo da lex loci celebrationis e, para relações em que a firma se dá por meio remoto, a regra da residência do proponente.
Tal opção, porém, mostra-se tóxica por duas razões simples: indica critérios disfuncionais e é tecnicamente errada. Por partes.
O Direito Comparado indica uma clara predominância de sistemas de indicação da lei aplicável aos contratos nos quais se privilegia a escolha voluntária e, apenas na sua falta, indica modos de suplementação.
Embora não exista uma convergência perfeita, há um alinhamento geral bastante robusto entre o escalonamento de critérios existente nas legislações da tradição romano-germânica, quanto na doutrina da proper law empregada em sistemas do common law.
É um arranjo relativamente simples: (1) aceita-se a escolha expressa das partes, (2) se ausente ou inválida, buscam-se elementos capazes de revelar a vontade presumida e (3) não sendo possível resolver nos dois primeiros passos, busca-se um critério objetivo pautado por regras que buscam refletir a maior proximidade.
<blockquote class="jota-article__eye">A propósito, em relação a operações internacionais, muitas vezes é possível identificar, nos interstícios da estrutura do negócio, a tendência a vinculá-la à lex mercatoria e aos usos setoriais.</blockquote>
A regra da LINDB, porém, toma caminho bastante diverso: não aceita a escolha expressa e, por corolário, a vontade presumida. Utiliza critérios antigos e, sobretudo em um mundo de tecnologias de comunicação sofisticadas, bastante arbitrários.
Veja-se, por exemplo, o lugar da celebração do contrato. Parece ter um vínculo material forte, afinal diz respeito ao território onde as partes se encontram. Não é. Já não o era em 1942, onde muitas vezes o encontro das partes ou de seus representantes apontavam para conveniências de viagem ou de localização das partes ou seus representantes. Em tempos de internet e aviação a jato isso se torna bem mais complicado.
Casos hipotéticos para reflexão: um argentino e um brasileiro se encontram em uma feira setorial na Alemanha e, lá, firmam o contrato. Faz sentido aplicar o Direito alemão? Um contrato de construção foi celebrado no Brasil e, mais tarde, modificado em vários aspectos essenciais em uma reunião na Holanda. O novo ajuste negocial segue, conforme a LINDB, o Direito brasileiro ou o neerlandês? A despeito das soluções técnicas, não é difícil perceber a toxidade escondida embaixo da aparentemente inócua lex celebrationis.
Ainda pior é a regra da residência do proponente. Eivada de incertezas e truques enseja, até aos mais atentos, bastante desconfiança. Em primeiro lugar, a noção de residência deixa em aberto, para o comércio internacional, a questão das empresas que contam com estabelecimentos, representantes, agentes e representantes em mais de um país; por exemplo, se uma empresa brasileira compra um equipamento de uma empresa chinesa por meio de sua filial no Chile, qual seria a conexão relevante?
Além disso, mas não com menor importância, pode ser bastante difícil identificar quem seria o proponente. Pode haver circunstâncias fáticas cujos registros não permitem identificar quem fez a proposta e quem a aceitou. Além disso, Ordenamentos jurídicos diferentes estabelecem momentos diferentes para a constituição do contrato, exigindo maior ou menor determinação e determinabilidade de elementos essenciais e acidentais dos contratos. Definitivamente, não se trata de uma dieta rica em certeza e previsibilidade.
Ficam, portanto, apresentadas as razões pelas quais a regra da LINDB é ruim: pouco respeito à vontade das partes, fixação de critérios conectivos capazes de levar a Direitos potencialmente aleatórios, já que alheios ao princípio da proximidade, e grande incerteza quanto à lei indicada em razão. Falta, portanto, explicar a inadequação técnica de buscar no artigo 9º da LINDB um complemento Às regras do artigo 2º da Lei de Arbitragem.
Em primeiro lugar, não são normas que tratem do mesmo objeto. Uma explicita o critério de identificação da lei aplicável para as obrigações; a outra, para a lei aplicável na arbitragem, o que vai bem além do campo obrigacional e admite, i. a., regras procedimentais e regras sobre direitos reais.
Além disso, uma possibilita apenas a aplicação de normas pertencentes a Ordenamentos estatais, enquanto a outra dá acesso a um campo muito mais amplo, de modo a incluir os princípios gerais de Direito, os usos e costumes e a lex mercatoria.
Por conseguinte, não se deve falar de uma aplicação necessária, dada a divergência quanto à hipótese normativa, sem prejuízo de se levar em conta, também, as profundas diferenças de tratamento da matéria.
Não se pretende, aqui, desenvolver a complexa questão de se o artigo 2º da Lei de Arbitragem é lex specialis em relação à LINDB. Há bons argumentos tanto para afirmar, quanto para negar essa relação. Importa ressaltar, inobstante, o integral afastamento do artigo 9º da LINDB: (1) se é lex specialis afasta as normas gerais e, por conseguinte, não faria sentido reapresentar aquele prato que já foi, por inadequado, retirado da mesa pelo próprio Legislador e (2) se não é, em razão da integral novidade da norma sobre arbitragem (e a LINDB não trata de arbitragem), então a aplicação do artigo 9º apenas poderia decorrer de aplicação por analogia. Ocorre que a analogia não é adequada para normas de conflito, até porque o princípio da legalidade é suficiente para dar espaço à utilização do critério da vontade presumida.
Portanto, sendo indesejável e tecnicamente equivocada a pretensão de extensão da cobertura do artigo 9º da LINDB a contratos sem cláusula de escolha de lei aplicável, resta saber como lidar com esta questão a partir do próprio artigo 2º da Lei de Arbitragem.
O primeiro passo é no sentido de retomar a interpretação gramatical, sistemática e teleológica do dispositivo legal para compreender sua exata extensão. Quando se lê e relê o texto legal observa-se a inexistência de qualquer exigência de que exista escolha expressa do Direito aplicável.
Fala-se, simplesmente, em “escolher livremente”, o que, por óbvio, pode ser feito mediante pacto de escolha da lei aplicável, mas pode, também, resultar de uma vontade presumida. Do ponto de vista sistemático e teleológico, faz sentido ter um regime especial para a vontade no campo arbitral, o que é particularmente consistente com a possibilidade de escolher a o Direito aplicável a muitos aspectos e, inclusive, lançar mão de fontes não estatais.
Também é necessário levar em conta que a doutrina e os principais instrumentos internacionais sobre a matéria tratam da vontade das partes como elemento conectivo, da qual as modalidades expressa e tácita são as faces da mesma moeda.
Essa continuidade entre as formas expressa e tácita da vontade aparece nos Princípios sobre a Escolha do Direito nos Contratos Comerciais Internacionais da Conferência da Haia para o Direito Internacional Privado, editados em 2015. Já estava consagrada, porém, no sistema europeu do Regulamento Roma I, artigo 3º, e da Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais, Artigo 3º.
É verdade que parte da doutrina conserva a percepção de ser necessária a escolha expressa, como era no artigo 13 da Introdução do Código Civil de 1916: “salvo estipulação em contrário”. Difícil, porém, defender posicionamento equivalente ao da mais do que centenária regra.
Ao que parece, aliás, outros eventuais argumentos no sentido da interpretação restritiva do artigo 2º, de modo a admitir apenas a vontade expressa, são bastante frágeis. Isso a ponto de não justificar uma discussão detalhada neste artigo.
O qué é bem mais interessante, decerto, procurar compreender a dinâmica da avaliação e utilização do critério da vontade presumida pelos árbitros. Apenas para apontar quatro itens desse rico cardápio de sobremesas:
<ol>
<li>A vontade descoberta pelos árbitros implica a necessidade de empregar um único Direito ou é possível um dépeçage presumido?</li>
<li>Pode-se empregar a lex mercatoria, princípios gerais e usos setoriais, ou é necessário empregar um Direito estatal?</li>
<li>Em matéria de lei aplicável, estão os árbitros limitados ao que peticionem as partes, ou podem decidir indicando outras normas?</li>
<li>Em que medida é possível empregar, como extensão da vontade presumida, critérios orientados pelo princípio da proximidade ou pelo centro de gravidade objetivo do contrato?</li>
</ol>
Em respeito à livre escolha dos leitores, não caberia servir, sem demanda, qualquer desses itens. Talvez alguma curiosidade se aguce...
Cabe, ainda, alertar a necessidade de atentar aos regulamentos das instituições arbitrais às quais as partes tenham levado seus litígios, pois aí há regras importantes a respeito do que os árbitros podem, devem ou não devem fazer no exercício de suas funções. Como, obviamente, as partes consentem com tais regulamentos, os limites e procedimentos aí existentes poderão ser fundamentais para a determinação, pelos árbitros, do Direito aplicável.
Por exemplo, o artigo 21 (1) das Regras de Arbitragem da CCI determinam que, na falta de escolha expressa “o tribunal arbitral deve aplicar as regras de direito que ele determinar como sendo apropriado”. Já o artigo 9.4 das Regras de Arbitragem da CAM-CCBC determinam que em caso de omissão ou divergência cabe ao Tribunal decidir sobre esta matéria. Ressalte-se inexistir nessas regras qualquer referência ao método de determinação, dando relevo à predominância doutrinária e das convenções e princípios internacionais no sentido de chamar à atenção a busca da vontade presumida.
No que se refere à aplicabilidade da regra da vontade presumida para suprir eventual ausência de pacto sobre lei aplicável, a robustez de um correto sentido técnico aliado às características do comércio internacional é bem difícil de derrubar. Quanto ao artigo 9º da LINDB, norma já quase octogenária e claramente inadequada às exigências atuais, seria muito bem vinda uma alteração atualizadora, capaz de favorecer a liberdade, segurança e previsibilidade.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O tema tem seus meandros e me comprometo a escrever, aqui, sobre o tema.

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JOTA

Emprego da vontade presumida no Direito brasileiro

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