Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Esse sistema de guerras em cadeia só pode terminar de duas maneiras: ou resultará em horríveis destruições físicas e concomitantes mudanças revolucionárias da ordem social que irão além de suposições razoáveis; ou, com a mudança natural de gerações, levará ao abandono do sonho gnóstico antes que o pior aconteça.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Eric Voegelin</footer>
</blockquote>
Estamos vivendo em um mundo totalmente novo. As relações familiares, econômicas, sentimentais e até mesmo a forma com que nos relacionamos com a realidade já é absolutamente distinta da qual a maioria de nós se acostumou a passar a maior parte da sua vida. A humanidade está a atravessar um período de transição da ordem global, que se reflete nas mais mínimas atividades cotidianas de cada um de nós. O risco maior dessa transição é o de fragmentação, o da constituição não de uma nova ordem mundial, mas de uma miríade de ordens particulares, conflitantes entre si. O risco é o de que, em breve, tenhamos uma estadia no inferno.
A ordem global é a estrutura na qual operam as relações entre os Estados soberanos. Ela não existe no vazio, em abstrato, mas, tal qual um cristal de neve, compõe-se de um todo orgânico constituído pela geometria fractal dos diferentes níveis de ordens nacionais, regionais, municipais etc. No topo dessa estrutura global, e o que a mantém intacta, está o princípio de legitimidade, a famosa grundnorm kelseniana ou, como o define o embaixador Gelson Fonseca Jr., o elemento que faz a mediação entre o interesse e a regra, entre o poder e o direito.
Ao longo da história, a humanidade experimentou diferentes modelos de ordem, que, apesar de estruturados em espaços geográficos distintos, como a Europa, a América pré-colombiana e a Ásia, por exemplo, reconheciam os mesmos fundamentos de legitimidade em épocas mais ou menos simultâneas. O cientista político teuto-americano Eric Voegelin identificava três tipos civilizacionais principais, que correspondiam a três formas distintas de culturas jurídicas: as civilizações cosmológicas, que se estruturam em analogia à ordem cósmica, como na China Antiga; as civilizações antropológicas, que se estruturam em analogia à ordem da alma humana, como na Grécia Antiga; e as civilizações soteriológicas, que se estruturam com base na experiência da transcendência, separando a ordem espiritual da temporal, como na tradição judaico-cristã.
Esses três modelos principais de ordem mundial baseiam-se na experiência da transcendência, isto é, na experiência de uma realidade mais perfeita da qual os serem humanos poderiam participar ao se elevarem moral e espiritualmente. Para Voegelin, o grande dilema da ordem mundial contemporânea, pós-Revolução Francesa, é que, como é típico em momentos de crise moral e espiritual, ela se estrutura em torno de uma noção de direito natural que busca o fundamento da legitimidade não em uma ordem superior, mas em uma relação contratual entre os seres humanos. A ordem mundial assim, nesses períodos de crise, é sempre frágil, porque se fundamenta nos “mundos oníricos da paixão individual” de que já falava Heráclito. A ordem mundial contemporânea, que se esfacela diante de nós, padece, assim, de um vício de origem incurável: ela é irreal, porque nenhuma ordem pode se fundamentar em um acordo entre sonhos individuais distintos.
O resultado que estamos vivenciando neste momento histórico é o da culminância desse processo, em que a tecnologia e, principalmente, a inteligência artificial nas redes sociais, está fragmentando e potencializando cada vez mais os nossos sonhos e expectativas pessoais, ao ponto de experimentarmos a realidade mesma de uma maneira cada vez mais individual e intransferível. Basta tentar ler o feed de notícias da rede social de uma outra pessoa para atestar o fato. Já não experimentamos mais a realidade da mesma maneira que o vizinho ao lado.
A polarização e o radicalismo que estamos assistindo é uma consequência natural desse processo, que se manifesta agora na lógica de se realizar todo e qualquer desejo imediatamente e a qualquer custo. Sem negociar ou mesmo interagir com o outro. O outro passa a ser apenas um aborrecimento descartável na realização de nossos sonhos e objetivos particulares. O risco de incompreensão e, por conseguinte, de conflito, em todos os níveis, é talvez o maior da história conhecida.
No momento atual, a diplomacia, como a arte de ver o mundo pelo olhar do outro, nunca foi tão necessária. É somente pelo esforço do reconhecimento do outro, da aceitação de que o diferente, o oposto, o estranho vivem na mesma realidade que nós e que, por isso, são merecedores do mesmo respeito e da mesma dignidade que nos é nata é que poderemos evitar que a atual transição da ordem mundial descarrilhe para um conflito, interno e externo, de proporções jamais vistas na história. Na diplomacia reside o segredo. Inter arma enim silent leges<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Entre armas as leis se calam.

globo

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JOTA

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