
Entre os diferentes focos de atenção dos observadores dos tribunais brasileiros, dois merecem destaque. O primeiro é o alto número de ações judiciais decorrentes das crises econômica e de saúde pública causadas pela pandemia. A segunda é o retorno da inflação à agenda política e econômica do país.
Começo pelo primeiro problema. Desde o avanço da Covid-19 e da subsequente queda no nível de atividade econômica, o número de ações nas varas especializadas em recuperação de empresas cresce significativamente. O mesmo também vem ocorrendo nas varas trabalhistas. Como o que cresce em quantidade muda de qualidade, não é só o aumento quantitativo de processos que chama a atenção, mas, também, as questões jurídicas que eles envolvem.
Uma dessas questões, por exemplo, é relativa a uma nova prorrogação das medidas emergenciais. Se isso ocorrer, até que ponto o que foi pensado como medida de caráter excepcional não pode acabar sendo perenizado, colidindo desse modo com a legislação que estava em vigor antes da eclosão da pandemia?
Outra questão diz respeito à interpretação das normas que os juízes têm de aplicar. Como devem lidar com demandas urgentes e problemas jurídicos inéditos criados pela pandemia, aplicando leis que foram concebidas para tempos normais?
No caso das varas de recuperação judicial, vem aumentando o número de empresas com dificuldades financeiras que invocam nos tribunais o princípio da força maior para justificar o não cumprimento das obrigações contratuais. O problema é que, se a Justiça acolher esse argumento de modo indiscriminado, o descumprimento dos contratos pode provocar um efeito dominó, travando as cadeias produtivas e desorganizando o setor privado.
O mesmo poderá ocorrer no âmbito das concessionárias de serviços públicos, dependendo do modo como os tribunais interpretarem o princípio da força maior. Se uma distribuidora de energia não pagar a geradora, todo o setor elétrico será afetado.
No caso das varas trabalhistas, do início da pandemia até agora elas já receberam cerca de 138 mil reclamações, no valor global de R$ 15 bilhões. A maioria dessas ações envolve a Medida Provisória 936 e a Lei nº 14.020/2020, dela originada, que permitiram às empresas suspender contratos de trabalho ou reduzir jornada e salário de seus empregados. Em troca, elas se comprometiam a não demiti-los por um período igual ao da vigência da suspensão de contrato ou da redução salarial, sob pena de pagar indenização extra.
Quase 1,5 milhão de empregadores assinaram acordos desse tipo. No entanto, como a pandemia foi se prolongando, essa medida já foi prorrogada três vezes pelo governo. Com isso, empregados que firmaram o acordo no começo da pandemia e acabaram ficando com contrato de trabalho suspenso ou a jornada reduzida até dezembro deste ano, por causa dessas prorrogações, terão garantia de emprego até agosto de 2021.
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O problema é que, entre o primeiro e o segundo semestres deste ano, várias empresas tiveram suas dificuldades aumentadas, perdendo a condição de bancar essa garantia. Por falta de alternativa, estão sendo obrigadas a demitir e a dúvida agora é calcular a indenização extra.
Assim, o que começou como uma importante medida de natureza social converteu-se, com a duração da pandemia por mais tempo do que se esperava, num problema de sobrevivência das empresas e, por consequência, da própria manutenção dos empregos.
Vejamos agora o segundo problema, relativo ao regresso da inflação à agenda política. Como, desde o advento do Plano Real, há 26 anos, a inflação tem sido mantida sob controle, as novas gerações de juízes não têm ideia dos problemas que ela pode acarretar. Esses problemas, que travaram por anos o crescimento da economia brasileira, podem ser vistos em três dimensões – a econômica, a política e a social.
No plano econômico, por exemplo, uma inflação alta tende a reduzir a capacidade de geração de recursos das empresas, corroer o poder de compra dos assalariados, inibir investimentos, provocar fuga de capitais e gerar impasses entre interesses empresariais de curto prazo e interesses públicos de longo prazo. Também costuma reduzir a capacidade de investimento do poder público e prejudicar o papel do Estado de planejador, organizador e indutor da atividade econômica.
No plano político, uma inflação alta tende a desorganizar a máquina governamental. Entre outros motivos, porque a desvalorização da moeda, a perda de capacidade de arrecadação e o déficit fiscal afetam o orçamento da União, deflagrando uma competição por recursos escassos entre os diferentes setores da administração pública e das diversas corporações do funcionalismo, bem como comprometendo a eficiência do Estado na oferta de serviços essenciais.
O resultado, como foi evidenciado em toda a década de 1980, especialmente nos governos Figueiredo e Sarney, é a paralisia do processo decisório. Para tentar destravá-lo, os presidentes lançaram pacotes econômicos que, além de não terem dado os resultados esperados, intervieram em atos juridicamente perfeitos, disseminando insegurança jurídica e acarretando uma enxurrada de ações de ressarcimento impetradas por cidadãos e empresas.
No plano social, uma inflação leva ao descompasso entre os anseios e as expectativas da população, por um lado, e o que o poder público consegue oferecer, por outro. Também tende a acarretar concentração de renda e, por consequência, aumento da desigualdade social, abrindo com isso caminho para acirramento ideológico, para comportamentos oportunistas e para o risco do populismo.
Todos esses problemas podem ser agravados ainda pelo fato de o governo vir agindo de modo confuso em matéria de política econômica.
Em meio a um quadro de pandemia, deterioração fiscal, ausência de prioridades e conflitos entre a área econômica “ultraliberal” e a chamada ala “desenvolvimentista”, ele parece perdido. Sem propostas consistentes de reformas estruturais, limita-se a defender a criação de um imposto nos moldes da antiga CPMF, que desorganiza as cadeias produtivas.
E também não vem conseguindo destravar investimentos que ainda permanecem viáveis em setores importantes da economia. Por fim, por não ter conseguido deter o crescimento da dívida pública, o Tesouro vem enfrentando problemas para emitir títulos de longo prazo a juros aceitáveis.
É por isso que, depois de quase duas décadas e meia, o aumento da inflação e a subsequente lembrança dos graves problemas que ela costuma causar estão retornando à agenda da vida política e a dúvida é saber como a atual geração de magistrados lidará com essa simbiose entre aumento expressivo do número de ações judiciais, questões jurídicas novas que exigem conhecimento mínimo dos fundamentos econômicos e compreensão do potencial corrosivo da inflação para o cumprimento das obrigações contratuais.
Evidentemente, em tempos de pandemia não se pode exigir da Justiça o que, considerados sua arquitetura institucional, sua lógica decisória e o nível de desconhecimento do potencial disruptivo da inflação pelos operadores jurídicos, ela não tem condições de produzir no curto prazo. Em tempos normais, os tribunais já enfrentam problemas para combinar estabilidade jurisprudencial com adaptabilidade às mudanças econômicas e sociais.
Esse é um desafio difícil, pois, se os juízes privilegiarem a estabilidade, a ordem jurídica é ultrapassada pelo tempo. E, se priorizarem a adaptabilidade, mudando incessantemente as leis em vigor ao reinterpretá-las num período de crescimento da inflação, elas correm o risco de perder suas referências normativas e de balizar as expectativas da sociedade.
O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça: