Guilherme Brenner Lucchesi

A preocupação do Supremo Tribunal Federal com a integridade, estabilidade e coerência de seus precedentes parece estar cada vez menor. A vítima mais recente da insegurança jurídica criada pela incessante revisão pela Corte de seu próprio entendimento é o crime de descaminho, que novamente tem o critério para definição de sua insignificância penal alterado pela jurisprudência do STF.
Para entender a questão, é preciso primeiro pontuar a formação da jurisprudência a respeito da insignificância penal dos crimes de descaminho. Com a edição da Lei Federal n.º 10.522, de 2002, foi estabelecido que a Procuradoria da Fazenda Nacional não ajuizaria execução fiscal contra devedores de tributos cujo montante do principal acrescido de juros e correção não ultrapassasse R$ 10 mil. A partir dessa determinação legal, ainda que houvesse a elisão do pagamento de tributos por ocasião da importação clandestina de mercadorias, atraindo a tipicidade objetiva do crime de descaminho (art. 334, CP), a cobrança judicial do montante devido não seria levado a termo por economicidade, entendendo a União que a sua atuação judicial demandaria um dispêndio de recursos superior a eventual recuperação judicial.
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A garantia de intervenção mínima é uma importante baliza do direito penal, segundo a qual a atuação do Estado pelo direito penal para a proteção de bens jurídicos deve ser fragmentária e subsidiária. O sistema penal somente pode se ocupar das ofensas mais graves aos bens jurídicos dotados de dignidade penal. Havendo outro mecanismo jurídico que possa atuar de modo adequado e suficiente para a proteção de um bem jurídico, não há como se invocar a proteção penal. Dito de outro modo, não havendo interesse do Estado na atuação em outra esfera jurídica menos invasiva – como é o âmbito da execução fiscal –, não seria legítima a incidência do direito penal. Assim, ainda que a legislação federal sobre a temática não tenha sido alterada, mantendo-se a definição formal do crime de descaminho, a jurisprudência aos poucos pacificou-se em torno da atipicidade material do crime de descaminho quando o montante elidido não ultrapassar o limite de R$ 10 mil colocado para a atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional na execução fiscal.
A discussão ressurgiu com a Portaria n.º 75/2012 do Ministério da Fazenda, que recalculou o custo da atuação judicial de sua Procuradoria, e administrativamente elevou o valor de piso da execução fiscal para R$ 20 mil. A partir dessa normativa, formaram-se dois posicionamentos na jurisprudência: o primeiro, baseado em uma análise principiológica do direito penal, elevou também o critério para reconhecimento da insignificância dos crimes de descaminho para R$ 20 mil; o segundo, baseado no argumento formal de que apenas lei federal em sentido material pode dispor sobre direito penal, manteve o critério da insignificância em R$ 10 mil. A primeira posição foi adotada pelos tribunais regionais federais, notadamente da 4.ª Região, e pelo Supremo Tribunal Federal. A segunda posição vinha sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Suscitada a questão na Terceira Seção do STJ em 2014, o Tribunal decidiu no REsp n.º 1.401.424 que, a despeito da jurisprudência do STF, o critério estabelecido a partir da Portaria 75/2012 não seria adequado. Segundo o acórdão, não caberia à conveniência administrativo-fiscal da Procuradoria da Fazenda Nacional determinar como deveria ser a atuação do Ministério Público Federal ou o julgamento pelo Poder Judiciário. Manteve o critério em R$ 10 mil.
Contudo, diante de sucessivos julgamentos sobre a temática no STF, por ambas as suas turmas (v.g. 1.ª Turma: HC 127.173, HC 136.984; 2.ª Turma: HC 136.843, HC 136.958), a Terceira Seção do STJ recentemente retomou a discussão, e em março de 2018 reviu seu precedente anterior no REsp n.º 1.688.878, passando a acolher o entendimento de que a elisão de tributos em montante inferior a R$ 20 mil não possui relevância jurídico-penal, conformando seu entendimento àquele do Supremo Tribunal Federal.
Contudo, pouco após este giro na jurisprudência do STJ, a 1.ª Turma do STF aparenta estar revendo o seu próprio entendimento. No julgamento do HC n.º 149.114/PR, realizado em 16/10/2018, denegando ordem de habeas corpus a acusado por crime de descaminho cujo montante de tributos elididos fora de R$ 10,5 mil, por ser superior ao limite de R$ 10 mil estabelecido por lei federal. Decisão semelhante também foi proferida pela 1.ª Turma no mês de abril no HC n.º 128.063.
Independentemente da análise quanto ao (des)acerto da nova posição recém adotada pela 1.ª Turma do STF – cuja dissonância com uma análise principiológica do direito penal analiso acima –, não é possível que em tão curto espaço de tempo um mesmo órgão da mais alta corte jurídica do país mudar radicalmente de posição, tornando insignificante sua própria jurisprudência. Ainda mais em se considerando que a sua própria jurisprudência orientou importante tomada de posição pelo tribunal superior responsável pela uniformização da jurisprudência no país. Em tempos de cada vez maior relevância à estabilidade, coerência e integridade dos precedentes judiciais, o direito permanece fadado a mudar de sabor conforme o gosto do julgador. Quem perde é o jurisdicionado, sempre.

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JOTA

Preocupação do Supremo com integridade, estabilidade e coerência de seus precedentes parece estar cada vez menor

A insignificância da jurisprudência do STF sobre descaminho

Preocupação do Supremo com integridade, estabilidade e coerência de seus precedentes parece estar cada vez menor