Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">"Como sempre, a ideia de sua própria morte o acalmava tanto quanto a dos outros o perturbava: seria talvez porque, no fim das contas, sua própria morte significaria em primeiro lugar a morte do mundo inteiro?"
<footer class="jota-article__quote-cite">Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Il Gattopardo</footer>
</blockquote>
Em “Il Gattopardo”, Giuseppe Tomasi di Lampedusa retrata as profundas mudanças sociais que a transferência do padrão da aristocracia para o da nascente burguesia importava para a vida, o cotidiano e o futuro de uma decadente família tradicional siciliana de meados do século XIX.
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O romance foi transformado em um belíssimo filme por Luchino Visconti, em 1963, com Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale, que se a leitora não teve ainda a oportunidade de assistir, recomendo fortemente.
Divago, contudo. O fato é que o caso da quebra da incorporadora chinesa ironicamente chamada de “Evergrande” – o nome da empresa chega a parecer justiça poética – fizeram-me lembrar do Gattopardo e de que, talvez, estejamos assistindo um episódio-chave na evolução do sistema financeiro internacional, a marcar a transição do sistema de Bretton Woods para um novo padrão ainda nascente. Seria o dólar norte-americano um leopardo agonizante?
O sistema de Bretton Woods, de fato, está baseado em dois frágeis pilares: as moedas fiduciárias – ou fiat currencies, na designação em inglês, e o crescimento econômico baseado na expansão constante do crédito, particularmente do crédito imobiliário.
<blockquote class="jota-article__eye">Em outras palavras, cara leitora, o atual sistema é uma grande bolha fictícia, que para não explodir precisa crescer para sempre. Evergrande? Mais cedo ou mais tarde, vai explodir. De novo.</blockquote>
O caso da incorporadora chinesa Evergrande, que tomou o noticiário de assalto na última semana, pode ser mesmo um sinal do esgotamento desse modelo, que foi levado às suas últimas consequências pelas estratégias de contenção dos efeitos econômicos do combate à pandemia de Covid-19.
O modelo baseado na expansão constante do crédito imobiliário já havia se esgotado em 2008, quando da eclosão da crise financeira internacional causada pela quebra do Lehman Brothers. Era necessário, naquele momento, um ajuste estrutural que reconectasse a economia financeira à economia real.
Desnecessário relembrar que o ajuste não foi feito e que a decalagem entre o imaginário e o real foi na verdade expandida, agora ad absurdum com a maior injeção de liquidez da história financeira internacional.
O possível default da Evergrande não pegou os analistas financeiros mais atentos de surpresa. Desde a implementação, pelo Governo chinês, da “política das três linhas vermelhas”, ainda em 2020, para conter o crescente endividamento do setor imobiliário – que representa cerca de 29% do PIB do país asiático, o mercado vem antecipando uma possível quebra com efeitos sistêmicos.
No ano passado, por exemplo, o Credit Suisse, que já foi o principal investidor na Evergrande, reduziu drasticamente a sua exposição à incorporadora, por temor mesmo de um colapso financeiro da empresa.
Ou seja, estava claro que havia um excesso de oferta no mercado imobiliário local, impulsionado por uma bolha de crédito da ordem de 300 bilhões de dólares. Bom se fosse um negócio só da China. Há excesso de oferta e alavancagem financeira em todos os mercados imobiliários ao redor do globo.
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Na última segunda-feira, dia 27/09, o Governo chinês fez uma injeção de liquidez da ordem de 15,5 bilhões de dólares para conter os efeitos sistêmicos de uma eventual quebra desordenada da empresa. A maioria das análises aponta para uma possível estratégia do Governo de nacionalizar a incorporadora, evitando um contágio internacional pelo colapso da empresa e mantendo o nível de crescimento do crédito.
Obviamente haveria um impacto no PIB e na demanda chinesa deste ano, com a aniquilação dos investidores mais expostos, mas não uma crise internacional das proporções daquela sofrida pela quebra do Lehman Brothers em 2008. Essa parece ser uma estratégia de “Gattopardo”: “se vogliamo che tutto rimanga com’è, bisogna che tutto cambi”.
A visão alternativa, cara leitora, e que me parece mais interessante, seria a de que o episódio se apresenta como uma oportunidade para que a China tome a dianteira internacional, e faça o tão sonhado ajuste estrutural, diminuindo o abismo entre a economia financeira e a economia real.
Há um certo consenso de que uma tal reforma em escala global é necessária desde, pelo menos, a crise financeira de 2008, mas que não fora realizada em lugar algum. As possibilidades e os métodos de um tal ajuste devem ser lidos em conexão com os planos do Governo chinês de implantar uma moeda digital, o “e-yuan”, já durante as Olimpíadas de Inverno de 2022, previstas para ocorrer em fevereiro em Pequim.
A adoção de uma “govcoin” pode se apresentar como uma opção mais estável do que a circulação de uma moeda fiduciária. Ao implementar um sistema monetário digital com uma base quantitativa mais rígida, o Governo poderia ter um controle mais firme da quantidade de moeda em circulação, aumentando e restringindo o crédito para setores específicos de acordo com a demanda real da economia, sem precisar do sistema de intermediários financeiros, que tiveram sua participação no sistema aumentada pela eclosão das fintechs nos últimos anos.
Ou seja, uma govcoin estável evitaria o processo inflacionário que um multiplicador monetário descontrolado poderia gerar por uma proliferação desordenada de empresas de pagamentos. O sistema, ao menos em tese, seria menos propenso a gerar bolhas de crédito, ajudando, também, a recompatibilizar preço, produção e renda. A China seria, assim, o primeiro país a adotar um novo modelo financeiro, que poderia se apresentar como um padrão internacional alternativo ao agonizante sistema de Bretton Woods.
O teste de fogo, virá, contudo, somente a partir de fins de 2022, quando se poderá avaliar o nível aceitação internacional do “e-yuan”. Esse é o aspecto fundamental, cara leitora: se os operadores do comércio internacional confiam e aceitam negociar com base no “e-yuan”.
Se a nova govcoin chinesa se tornar a moeda de referência para os pagamentos internacionais dentro da chamada “Nova Rota da Seda”, um novo sistema financeiro internacional terá surgido, em um espaço geopolítico claramente delimitado, capaz de fazer face ao sistema de Bretton Woods e à preponderância do dólar-norte americano e do “SWIFT” no comércio internacional. A maioria dos analistas financeiros, entretanto, estão atualmente “longos” no dólar. Este que vos escreve, cara leitora, não está tão seguro.
A história financeira recente demonstra que a transferência de um sistema monetário internacional para outro não é um fenômeno nem simples nem trivial. No final dos anos 1990, com a adoção do EURO, muitas análises vaticinavam o fim da hegemonia do dólar norte-americano e a transição para um padrão financeiro internacional baseado em uma cesta de moedas.
Niall Ferguson ressalta que essa mudança não ocorreu principalmente porque os operadores do comércio internacional não pareciam então, como não parecem agora, dispostos a trocar uma moeda fiduciária por outra igualmente fictícia. Se o “e-yuan” for capaz de passar no difícil teste da confiança internacional, então um novo capítulo da história financeira da humanidade pode ter-se aberto. Noi siamo i gattopardi...

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JOTA

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