Vitor Souza Cunha

Em 1967, algumas semanas após o lançamento do oitavo álbum de estúdio dos Beatles, o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, tido como um dos discos de rock mais influentes da história, a cidade de São Paulo presenciou a irrupção de um intrigante movimento de “resistência”. Movidos pelo ideal de preservar a pureza da cultura musical brasileira, diversos artistas da MPB uniram-se em passeata contra o que consideravam uma indevida invasão estrangeira. Escolhida como o símbolo do imperialismo cultural, a guitarra elétrica foi alçada ao posto de vilã. O movimento ficou conhecido como “Marcha contra a Guitarra Elétrica”.
Por ironia do destino, poucos meses depois da passeata, Gilberto Gil, um dos manifestantes, apresentou, no icônico Festival de Música Popular Brasileira de 1967, a canção Domingo no Parque. Fosse apenas pela beleza poética da narrativa da trágica amizade entre José, o rei da brincadeira, e João, o rei da confusão, a música já teria sido um marco. Ela foi além. Em meio a sons de berimbau e arranjos de orquestra, solos de guitarra são ouvidos. O instrumento, tocado pelo então desconhecido Sérgio Dias, da banda Os Mutantes, invadia de forma definitiva a MPB.
Cinco décadas depois, no espaço não tão lúdico do debate jurídico, percebe-se o surgimento de movimento contra aquela que, com frequência, tem sido apontada como verdadeira ameaça estrangeira aos alicerces democráticos do sistema processual brasileiro: a plea bargaining.
Muito embora o tema esteja posto, no Brasil, há alguns anos, sobretudo em razão dos PL 236/2012 e PL 8045/2010<a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>, um novo fato levou a discussão a patamar nunca visto. Em seu discurso de posse, o novo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, sustentou que a adoção da plea bargain, “para que a Justiça possa resolver rapidamente casos criminais nos quais haja confissão”, presta-se a “enfrentar os pontos de estrangulamento da legislação penal e processual penal e que impactam a eficácia do Sistema de Justiça Criminal.”
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A repercussão, como previsível, foi imediata. Desde apoiadores entusiasmados a críticos pessimistas, o tema da incorporação da plea bargaining ao sistema jurídico-penal brasileiro vem sendo intensamente debatido. Ambos, críticos e entusiastas da incorporação do mecanismo de consenso, no entanto, pouco têm explorado uma questão decisiva.
Ao se proceder a um estudo comparativo, os benefícios da respectiva análise jurídica não devem ofuscar um aspecto de notável relevância: o risco de os institutos jurídicos estrangeiros serem compreendidos de forma descontextualizada. O potencial da análise comparativa, destarte, costuma depender menos do estudo das normas jurídicas estrangeiras do que se costuma supor. De fato, o atingimento dos anseios sociais e os objetivos legais da importação de normas processuais depende, fundamentalmente, da análise do contexto institucional dos países receptores, tanto quanto do contexto daqueles que serviram de inspiração.
Essa ressalva conduz a dois problemas que vem sendo negligenciados no debate. O primeiro é que fornecer uma definição precisa e categórica da plea bargaining é teoricamente impossível, considerando a quantidade de formas distintas que ela apresenta; o segundo, igualmente crucial, é que a plea bargaining foi desenvolvida no ambiente do sistema adversarial, no qual o processo penal é concebido como uma disputa ou competição entre duas partes, acusação e defesa, diante de um julgador passivo. Vejamos.
De modo a demonstrar a dificuldade de conceituar a plea bargaining, vale uma rápida exposição sobre a forma como ela é compreendida na experiência estrangeira.
Numa primeira perspectiva, a plea bargaining é vista como negócio jurídico, ou seja, ajuste de vontades entre as partes. De acordo com Cheesman (2014, p. 158, tradução nossa), a plea bargaining “assume a forma de um acordo entre a acusação e a defesa por meio do qual o acusado admite sua culpa em troca de uma redução na imputação ou na pena”.
Não é só. Merece destaque, também, a corrente que, ao buscar a conceituação da plea bargaining, dá ênfase aos efeitos que decorrem do acordo entabulado entre as partes. Nesse sentido, Howe afirma que a plea bargaining significa a criação de uma expectativa, de forma implícita ou explícita, pelo promotor ou pelo juiz, de que o acusado receberá um tratamento mais leniente como recompensa pela admissão da culpabilidade.
Por fim, em perspectiva mais recorrente, a plea bargaining é encarada não como o resultado das negociações - o ajuste de vontades - ou como os efeitos que dele decorrem, mas como as interações entre as partes para alcançar o acordo. Trata-se de concepção mais próxima da ideia de barganha. A primeira vez que o termo plea bargaining apareceu no Black’s Law Dictionary (1979, p. 1037, tradução nossa), por exemplo, tinha esta conotação: “um processo por meio do qual o acusado e a promotoria num processo criminal realizam uma disposição mutuamente satisfatória do caso, sujeitando-a à aprovação do judiciário”.
Como se pode perceber, não é sem razão que as propostas de conceito para a plea bargaining são marcadamente específicas ou genéricas. Elas parecem pretender abarcar todas as experiências que recebem essa designação. Na prática, as tentativas de elaboração de conceitos para o instituto ora resultam em propostas muito específicas e que deixam de fora elementos essenciais de alguns tipos de acordos, ora são excessivamente genéricas e pouco contribuem para a função precípua dos conceitos, que é exatamente reduzir a complexidade da realidade, tornando-a apreensível.
Pondera-se, portanto, que a referência genérica à plea bargaining, quando no exercício do Direito Comparado, pode produzir incompreensões e provocar equívocos, já que existem práticas diversas e, não raro, inconciliáveis, que podem ser assim designadas<a href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>. Quando se critica a plea bargaining norte-americana, o que se está, afinal, a criticar?
À impossibilidade de se atribuir um conceito consensual ao termo soma-se a questão da diferença do contexto entre os sistemas processuais brasileiro e norte-americano, o segundo grande problema relacionado ao debate sobre a incorporação da plea bargaining.
A respeito desse tema, não é exagero afirmar que as diferenças estruturais entre a concepção “adversarial” dos Estados Unidos e a concepção “inquisitorial”<a href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a> da Europa continental e da América Latina do processo penal são tão profundas que reformas individuais, inspiradas em modelos estadunidenses, são totalmente incapazes de empurrar os processos penais inquisitórios em direção ao sistema adversarial (LANGER, 2005).
Para ficar em um único aspecto, diferentemente do que ocorre no modelo norte-americano, no qual promotores possuem ampla discricionariedade para formular acusações e delas desistir imotivadamente, sem submeter sua decisão a controle judicial, o Ministério Público, nos sistemas de tradição continental, possui espaço muito mais restrito de negociação. No caso do modelo de justiça criminal consensual continental, isso se reflete não apenas na necessidade de os acordos serem minudentemente disciplinados pela legislação, mas, sobretudo, no papel mais destacado do Judiciário na homologação da avença, requisito, via de regra, indispensável para a produção de seus efeitos.
Sendo o processo penal adversarial anglo-saxão uma disputa, caso um dos contendores, por entender que o oponente tem razão, decida não duelar, o processo deixa de fazer sentido. É nesse contexto que deve ser entendida a guilty plea, um instituto tipicamente adversarial que pode ser considerado o componente central da plea bargaining.
A guilty plea não é um elemento de prova ou uma confissão, mas possui a mesma força e produz os mesmos efeitos do veredito dos jurados<a href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>. Diante da guilty plea, resta à corte apenas a tarefa de proferir a sentença condenatória para aplicar a pena. Por essa razão, comumente se diz que admissão de culpabilidade da guilty plea não é uma prova da qual se pode valer a acusação, senão uma declaração formal, por meio da qual o acusado aceita como verdadeira a imputação e renuncia a determinados direitos processuais, entre os quais o direito ao julgamento pelos jurados.
Considerando as especificidades da guilty plea, os países de tradição continental, mesmo aqueles que adotaram os mecanismos consensuais, têm resistência em relação ao instituto, de modo que permanecem se valendo da confissão ou de um terceiro gênero, a admissão de culpa. Realmente, por ser mais detalhada e não eliminar a necessidade de avaliação judicial, a confissão – ou a admissão de culpa - é mais consistente com a missão tradicional dos países da civil law, que é a de controlar a conduta do acusado e de descobrir a verdade do caso.
Como era de se esperar, o projeto de lei apresentado pelo Ministério da Justiça, em nenhum momento, apresenta nada sequer próximo da guilty plea. Segue, com algumas adaptações, o modelo consensual de acordos de admissão de culpa dos países de tradição romano-germânica, a exemplo da Alemanha, Itália, Espanha e Argentina. Diga-se, aliás, que os acordos de admissão de culpa foram incorporados pelo sistema processual de inúmeras democracias consolidadas, passando, também, pelo crivo de diversas Cortes Constitucionais. Digna de registro, por ser paradigmática, é a decisão do caso Natsvlishili and Togonidze v Geórgia, no qual o Tribunal Europeu de Direitos Humanos afirmou a compatibilidade de alguns aspectos dos acordos penais com a norma da Convenção Europeia de Direitos Humanos que assegura a todas as pessoas o direito a um julgamento justo (fair trial).
Finalmente, as observações feitas não devem conduzir a uma conclusão equivocada. Apesar das notáveis diferenças apontadas entre a plea bargaining e os acordos de admissão de culpa, nunca se quis dizer que os modelos de justiça consensual ao redor do mundo, incluindo o brasileiro, podem ser pensados à margem da influência do sistema norte-americano. Pelo contrário: é reconhecido que o modelo da plea bargaining influenciou e vem influenciando debates e reformas em diversos sistemas processuais, sobretudo naqueles que enfrentam graves problemas de sobrecarga de trabalho. Como bem observa Barbosa Moreira, afinal, “raro é o povo – se algum existe – que permanece imune à influência dos padrões norte-americanos”.
Pretende-se, com essas breves ponderações, apenas demonstrar que, a despeito da relevância das discussões relativas à plea bargaining, esse modelo, em razão das suas agudas diferenças estruturais, está longe de ser transplantado para o sistema brasileiro ou para qualquer sistema continental (LANGER, 2005). Por isso, deve-se ver com ressalvas as críticas ou as reflexões que se aplicam mais propriamente à plea bargaining do que aos acordos de admissão de culpa como existem nos sistemas de tradição continental. Isso não significa, vale reafirmar, que a análise comparativa do modelo norte-americano seja irrelevante.
Como cediço, os detratores da guitarra elétrica perderam a guerra. O instrumento não apenas foi incorporado de forma definitiva à MPB, mas legou ao mundo estilos musicais inovadores, como a Tropicália de Gil, o samba-rock dos Novos Baianos e, mais recentemente, a mistura de sons do BaianaSystem.
Da mesma forma que a guitarra elétrica não destruiu a MPB, considera-se exagerado o temor de que a adoção dos acordos de admissão de culpa colocará em risco o sistema processual pátrio. Para resolver os graves problemas político-criminais brasileiros, um dos quais a morosidade do sistema de justiça criminal, há muito a se fazer, o que inclui discutir e aprimorar instrumentos de consenso no processo penal. Seguramente, porém, nenhuma das soluções passa sequer perto de uma nova passeata contra inimigos imaginários.
Referências bibliográficas
ALKON, C. Plea Bargaining as a Legal Transplant: A Good Idea for Troubled Criminal Justice Systems? Transnational Law and Contemporary Problems, v. 19, p. 355-418, 2010. Disponivel em: &lt;https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1660469&gt;. Acesso em: 10 abr 2018.
BLACK, H. C. Black's Law Dictionary. 5. ed. St. Paul: West Publishing, 1979.
BOVINO, A. Procedimiento Abreviado y Juicio por jurados. In: MAIER, J. B.; BOVINO, A. El procedimiento abreviado. Buenos Aires: Del Puerto, 2001.
CHEESMAN, S. J. A Comparative Analysis of Plea Bargaining and the Subsequent Tensions with an Effective and Fair Legal Defence. Tese (PHD em direito) - University of Szeged. Szeged. 2014.
DAMASKA, M. Evidentiary Barriers to Conviction and Two Models of Criminal Procedure: A Comparative Study. University of Pennsylvania Law Review, p. 506, 1973. Disponivel em: &lt;https://scholarship.law.upenn.edu/penn_law_review/vol121/iss3/10/&gt;. Acesso em: 27 jul 2018.
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<div id="sdfootnote1">
<a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Respectivamente, Projeto de Código Penal, que prevê a barganha penal, e Projeto de Código de Processo Penal, que propõe o procedimento sumário.
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Somente quanto ao conteúdo do acordo, Garoupa e Stephen [CITATION Nun08 \n \t \l 1046] apresentam os seguintes tipos de plea bargaining: charge bargaining, que pode envolver retirada de uma das acusações ou da acusação mais grave em troca da admissão da culpa; fact bargaining, acordo que permite a seletiva imputação como recompensa pelo acordo; nolo contendere pleas, acordo por meio do qual o acusado aceita a sanção sem, no entanto, assumir a culpa; alford pleas, que, por sua vez, é a aceitação da sanção nas hipóteses em que o acusado sustenta a inocência; sentence bargaining, que é o acordo por meio do qual o acusado recebe um desconto em decorrência da assunção da culpa.
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> A utilização da categoria inquisitorial se dá menos pela concordância com seu uso do que pela recorrência com que é utilizada. Em razão dos problemas epistemológicos da dicotomia acusatório-inquisitorial, é preferível falar em modelos de disputa e investigação oficial, como propõe Damaska [CITATION Dam73 \n \t \l 1046].
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> No caso United States v. Bialkin, a Suprema Corte norte-americana deixou consignado que o papel do Júri é verificar a culpa do acusado, de modo que se ele próprio a admite, não resta função para o Júri executar.
</div>

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JOTA

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