Raquel Scalcon

Com a proximidade das <a href="https://www.jota.info/eleicoes">eleições</a>, debates acerca da competência criminal da Justiça Eleitoral começam a se intensificar<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Motivos não faltam. Em um intervalo inferior a um mês, tivemos tanto a introdução de delitos no Código Eleitoral (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14192.htm">Lei 14.192/2021</a>) quanto a de crimes contra o Estado democrático de Direito no Código Penal (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14197.htm">Lei 14.197/2021</a>).
Não fosse o bastante, algumas das novas figuras inseridas no Código Penal chamam a atenção por integrarem o capítulo “dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral”. Tudo a instigar urgente reflexão: afinal, qual deve ser a Justiça competente para processar e julgar cada um dos diversos crimes contra o Estado democrático de Direito? Seria a Eleitoral, a Federal ou a Estadual? E por quê?
Como ponto de partida para construir uma resposta minimamente consistente, pensamos ser indispensável avaliar a natureza dos delitos introduzidos pela Lei 14.197/2021, isto é, perquirir se seriam crimes políticos ou não. Estamos cientes de que o conceito de crime político é tormentoso e dotado de opacidade. Sabemos, também, que nossa Constituição, quando emprega o termo “crime político”, parece concebê-lo quase como um ato de “resistência” perante um Estado autoritário. Noção incomum que se explica, seguramente, por razões históricas.
Contudo, do ponto de vista dogmático-penal, adotaremos a ideia já clássica de que crime político é aquele identificável pelo cumprimento de um requisito objetivo (capacidade de abalar direta ou indiretamente a ordem política vigente – democrática ou não — e as respectivas instituições estatais que a sustentam) e de outro subjetivo (a motivação política, não bastando um dolo “genérico”)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Sobrará discordância relativamente ao conceito de crime político acima brevemente apresentado.
Mesmo assim, não iremos aqui justificá-lo. Iremos tão somente usá-lo para avaliar se os delitos da Lei 14.197/2021 seriam, ou não, à luz dessa específica concepção, crimes políticos. Nossa resposta, adiantamos, é positiva. Ora, o legislador, ao introduzir tais modalidades delitivas, preocupou-se claramente em evitar que o sistema/ordem político vigente — hoje, um <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/estado-democratico-de-direito">Estado democrático de Direito</a> — fosse potencialmente abalado. Também o aspecto subjetivo do conceito de crime político, ao que tudo indica, estaria legalmente exigido para a consumação dessas figuras delitivas — em algumas, aliás, de modo explícito.
Significa dizer que, se a conduta for incapaz de minimamente gerar algum risco, ao menos reflexo, à ordem política vigente, ou se o agente possuir apenas um dolo “genérico”, não haveria que se falar em crime contra o Estado democrático de Direito. Sem dúvida, tais exigências tornarão mais rarefeita a consumação dos delitos ali dispostos, mas parecem necessárias para prevenir o seu oposto, a saber, a banalização do uso de tais figuras típicas.
Pois bem, se estamos diante de crimes classificáveis como políticos, caberá à Justiça Federal processá-los e julgá-los, nos termos do art. 109, inc. IV, da Constituição Federal. Contudo, será que absolutamente todos os delitos introduzidos pela Lei 14.197/2021 seriam efetivamente políticos no sentido acima referido, inclusive aqueles que integram o capítulo “dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral”? Será que não estaríamos diante de alguns crimes materialmente políticos e de outros materialmente eleitorais, a atrair, neste último caso, a competência da Justiça Eleitoral, afastando, também por razões constitucionais, a competência da Justiça Federal?
A questão não é simples, mas precisa ser enfrentada, de preferência, o quanto antes, dada sua enorme relevância no atual contexto político-social do país. Nesse sentido, somos favoráveis à adoção de um tratamento uniforme, definindo-se a competência para processamento e julgamento dos crimes contra o Estado democrático de Direito como se fossem um bloco único. Portanto, partindo da premissa de que os delitos inseridos no Código Penal pela Lei 14.197/21 são, de fato, crimes políticos, temos que o seu exame caberá sempre e exclusivamente à Justiça Federal.
Apesar disso, não nos parece possível ignorar a proximidade de certas figuras típicas trazidas pela Lei 14.197/2021 com determinados crimes eleitorais. É o caso daquela prevista no art. 359-P (Código Penal — violência política), que apresenta inegável similitude com o novo tipo penal do art. 326-B (Código Eleitoral — violência política contra a mulher). Trata-se, ao que tudo indica, de diferentes espécies de “violência política”. Vejamos suas redações (grifo nosso):
<blockquote class="jota-article__citation">Código Penal, Art. 359-P. Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional:</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Código Eleitoral, Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.</blockquote>
Estamos, inequivocamente, diante de um conflito aparente de normas penais, cuja resolução a favor de um ou de outro delito gerará impactos relevantes no âmbito da competência. Além disso, o encerramento desse conflito não é simples<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Há elementos que tornam especial o art. 326-B do Código Eleitoral relativamente ao art. 359-P do Código Penal (a saber, ser a vítima mulher candidata ou mulher já no exercício de cargo eletivo), mas também elementos que tornam o art. 359-P especial em relação ao art. 326-B do Código Eleitoral (a saber, a intensidade da violência).
Em outras palavras, pensamos que, a partir de um determinado limiar de violência empregado contra uma mulher candidata ou já no exercício do cargo eletivo (que se transforma em violência física ou sexual), não estaremos mais diante do crime eleitoral (art. 326-B, Código Eleitoral), mas propriamente do crime político (art. 359-P, Código Penal). Desde que, é claro, a conduta cumpra os aspectos objetivo e subjetivo referentes à sua qualificação enquanto crime político.
Ademais, não consideramos acertado pensar em qualquer espécie de deslocamento da competência, neste último caso, da Justiça Federal para a Eleitoral, pelo simples fato de a vítima da violência física ou sexual em questão ser candidata ou detentora de cargo eletivo. Ora, nesse caso hipotético, ou estamos diante da consumação apenas do crime eleitoral do art. 326-B (cabível à Justiça Eleitoral) ou apenas do crime político do art. 359-P (cabível à Justiça Federal).
Em outras palavras, a qualidade da vítima mulher (ser candidata ou ser detentora de cargo eletivo) não teria o condão, pensamos, de alterar a competência nestes casos, porque ou o delito tem natureza de crime eleitoral ou de crime político em essência. Não haveria, aqui, flexibilidade no que diz respeito à matéria da proibição e ao bem jurídico tutelado, ainda que se admita que mais de um bem jurídico possa acabar sendo violado no caso concreto, dada a peculiar configuração que a conduta delitiva tomou.
Parece-nos inconsistente, pois, a ideia de que uma única conduta possa gerar a consumação concomitante de ambos os crimes contra a mesma vítima, havendo aqui um conflito aparente de normas penais, que, no caso de violência física e sexual, será resolvido por especialidade em favor do crime político, que absorverá o delito eleitoral. De outro lado, revela-se plausível o concurso de crimes se tivermos pluralidade de condutas e, sobretudo, de vítimas.
Os que aceitarem esta última possibilidade terão de lidar, todavia, com um problema interessante: se a Justiça Eleitoral é competente para julgar os crimes eleitorais e os comuns conexos (art. 35, inc. II, Código Eleitoral), atrairia para si também o julgamento de um crime político (Lei 14.197/2021), caso conexo a um eleitoral? Estariam os crimes políticos englobados pela regra de conexão acima referida? Pensamos, de imediato, que não, porque o crime político não é facilmente enquadrável na noção de delito “comum” que admite a conexão e o deslocamento da competência, mas a questão ainda merece maior reflexão.
Como se observa, o tema é instigante e de inadiável enfrentamento. Fica o alerta: competência é “medida de poder”. Não deixemos que quaisquer das Justiças exceda a sua medida, pois exercício de poder sem competência é, como ensinou Hannah Arendt, simplesmente violência.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Tive a alegria de participar de webinar promovido pela Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo, no qual o tema foi objeto de debate. As reflexões aqui compartilhadas foram, em sua maioria, desenvolvidas para aquela ocasião. O encontro está disponível no Youtube &lt;https://www.youtube.com/watch?v=rnwArC8AZyM&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Trata-se da clássica lição de Aníbal Bruno (BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Vol. I, Tomo II, Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 224 ss).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ver, no ponto, a posição de Procurador Regional da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, em artigo sobre o tema (<a href="http://genjuridico.com.br/2021/09/20/crimes-de-violencia-politica/">http://genjuridico.com.br/2021/09/20/crimes-de-violencia-politica/</a>).

Fachada do edifício sede do STF

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

O crime político não é facilmente enquadrável na noção de delito 'comum'

A (in)competência da Justiça Eleitoral para crimes contra o Estado de Direito

A qual Justiça compete julgar crimes contra o Estado democrático de Direito: Eleitoral, Federal ou Estadual?