Garantir assistência farmacêutica integral para todos os cidadãos de um país com a dimensão, a diversidade demográfica e as diferenças socioeconômicas do Brasil é um dos maiores desafios enfrentados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A questão é agravada pelo ritmo de inovação característico da indústria farmacêutica, cujo reflexo é o surgimento de tratamentos cada vez mais complexos e, também, mais caros. Compete ao Estado, então, assegurar o abastecimento do SUS em períodos de normalidade e, especialmente, em momentos de adversidades graves.
Deveras, as lições da pandemia da Covid-19 indicam que a capacidade tecnológica nacional é fundamental para controlar os impactos de crises sanitárias sobre a população e a economia de um país. No Brasil, entretanto, o Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS) tem sofrido importantes reflexos da reorganização mundial de operações produtivas que busca o aproveitamento de vantagens competitivas por meio da realocação de investimentos no contexto global. Isso se verifica na migração de produtores para regiões do mundo com maior incentivo fiscal, oferta mais abundante de mão de obra qualificada e melhor estrutura logística.
Com isso, aumenta a dependência brasileira em face da produção estrangeira de medicamentos e, especialmente, de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA) ou princípios ativos). É por isso que vem em muito boa hora o PL 1505/2022, publicado no último dia 7 de junho no Diário do Senado Federal. De autoria do senador Eduardo Gomes (PL-TO), o Projeto de Lei busca resgatar e conferir estatura legal a mecanismos de estímulo ao desenvolvimento do CEIS que existiam apenas em âmbito ministerial (com previsão em portarias e no Decreto n° 9.245/2017). O status infralegal conferido atualmente a essas iniciativas retira-lhes o caráter de política de Estado, colocando em risco sua continuidade e deixando-as à mercê da simpatia dos governos de ocasião.
Dentre os aspectos que merecem destaque no PL 1505 está a maior segurança jurídica conferida às Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos (PDP). As PDP permitem a transferência de tecnologia, a baixo custo, da indústria privada para laboratórios públicos. Isso é possível com o emprego do poder de compra do Estado, que garante ganho de escala produtiva enquanto os parceiros público e privado operacionalizam a parceria tecnológica (que deve terminar com a independência produtiva do laboratório governamental).
Por conta da ausência de previsão legal expressa, as PDP valeram-se, desde o início (em 2009), de um mix de institutos tradicionais (como contrato administrativo e convênio) para ter viabilidade jurídica. Entretanto, as inovações trazidas pelo modelo, sem corresponde legal específico, deram ensejo a perplexidades no âmbito dos órgãos de controle e da comunidade de operadores do direito, causando insegurança jurídica para investidores privados e para gestores públicos. As PDP, de acordo com o ordenamento hoje vigente, são já válidas, mas a verificação de sua validade exige um esforço interpretativo significativo, tanto que foi este o objeto da tese de doutorado e do livro “Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos” (Londrina: Ed. Thoth, 2021) de autoria deste que subscreve, cuja conclusão exortou a necessidade de lei específica que regulasse esses ajustes.
Dada a necessidade dessa faina interpretativa, é natural que surjam divergências – e das divergências advém insegurança jurídica. O PL 1505 dá resposta a esse problema, acolhendo diversas propostas que apresentamos em “Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos” e vai além, definindo uma série de mecanismos de incentivo ao desenvolvimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, inclusive quanto a linhas de financiamento e incentivos fiscais.
Esses avanços podem ser percebidos já no caput artigo 1° do PL 1505 que aponta o objetivo a que a nova lei se proporá, afirmando que o diploma “estabelece os mecanismos de estímulo ao desenvolvimento e fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS) com vistas à redução da dependência tecnológica e produtiva do país para atendimento das demandas do sistema de saúde brasileiro”. O PL 1505 dá, de início, um indicativo importante para a interpretação do regime jurídico das PDP: o principal objetivo dessas parcerias é a redução da dependência estrangeira para o desenvolvimento de tecnologia e produção de insumos estratégicos para o SUS.
Portanto, trata-se de uma política com efeitos de longo prazo, pensada muito em função de suas externalidades positivas: retenção de cérebros no campo de pesquisa farmacêutica, redução do déficit da Balança Comercial da Saúde, diminuição da dependência estrangeira e diminuição dos custos do SUS (no longo prazo). Esse ponto é importante porque, tratando-se de mecanismo que utiliza o poder de compra do Estado, a comunidade do direito administrativo tende a interpretar que o seu objetivo será principalmente a redução do custo unitário da aquisição de medicamentos. Entretanto, isso deve ser visto apenas como uma possível e desejável consequência, mas não como um requisito obrigatório para a celebração dessas parcerias.
Isso porque, tratando-se a redução do preço unitário como requisito de validade das parcerias, algumas delas, relativas a produtos de alta relevância estratégica, se tornarão economicamente inviáveis. Para compreender isso, é preciso observar que o objeto das PDP é a prestação de serviço de transferência de tecnologia: capacitação do laboratório público nos âmbitos técnico e regulatório (com a cessão do dossiê do produto) e licenciamento de propriedade industrial, se for o caso. O fornecimento do bem ao longo da parceria é um dos elementos constitutivos desse tipo de contratação (PDP) e até serve como índice de precificação (a remuneração variará de acordo com o volume faturado), mas isso não significa dizer que se trata de contrato de fornecimento de medicamentos.
É por isso que os preços de Atas de Registro de Preço dos mesmos medicamentos objeto de PDP podem até servir como referência, mas não necessariamente como teto do preço unitário nas PDP. Daí a importância fundamental dos incisos XIV do § 1° do art. 1° do PL 1505 para conferir segurança jurídica aos parceiros privados: garante-se o “preço adicional pago pelo desenvolvimento, transferência e incorporação de tecnologia como uma escolha mais vantajosa perante o interesse público para as compras governamentais no âmbito do Complexo Econômico e Industrial da Saúde”.
Outro avanço fundamental, também na seara do preço, é a inclusão, no art. 19 do projeto, de elementos mínimos para a delineamento do equilíbrio econômico-financeiro das PDP. Encontra-se ali, por exemplo, a exigência de inclusão em contrato da estimativa de demanda anual pelo Ministério da Saúde e os investimentos necessários para que os parceiros viabilizem a transferência de tecnologia (com indicação dos prazos). Indefinições com relação a esses pontos (especialmente o último) são responsáveis por alguns dos problemas que dificultaram a implementação de certas parcerias.
O PL vai além e prevê expressamente solução para situações de impasse decorrentes de alteração das circunstâncias iniciais da parceria: previu-se o reequilíbrio econômico-financeiro. O reequilíbrio, segundo prevê o art. 23, poderá se dar mediante: i) acréscimo ou supressão do prazo de conclusão do processo de transferência de tecnologia; ii) acréscimo ou supressão do escopo de tecnologia objeto da parceria; iii) aumento ou redução do preço unitário do produto objeto da parceria e constante no Contrato; ou iv) aumento ou redução do volume estimado no contrato.
Como as parcerias são ajustes complexos e de longo prazo (5 a 10 anos), não é raro que situações imprevisíveis (ou simplesmente não previstas) criem circunstâncias de impasse que travam o desenvolvimento regular dessas parcerias. Se as parcerias não chegam ao final, há um “desperdício” do poder de compra do Estado, enquanto instrumento de desenvolvimento. É razão suficiente para que isso seja evitado, sempre que possível. O estabelecimento de critérios claros para reequilíbrio e instrumentos diversificados para isso permitirá a superação desses impasses.
Dentre os avanços, merece menção também a previsão da chamada “corrida tecnológica”. Nos termos do art. 20, § 2° do PL 1505, para as PDP relativas ao mesmo produto, a parceria que primeiramente tiver capacidade de fornecer o produto acabado será responsável pelo atendimento da demanda total do Ministério da Saúde, nas mesmas condições estabelecidas em seu contrato, até que as outras parcerias cumpram os requisitos para o início da fase de fornecimento. Trata-se de mecanismo que incentiva fortemente a eficiência das parcerias e que já estava previsto no art. 52, §1° da Portaria/MS n° 2.531/2014, cuja aplicação, entretanto, não vem sendo admitida pelo próprio Ministério da Saúde.
Os avanços no campo das PDP representam apenas uma das facetas positivas do PL 1505. O projeto, que apenas inicia sua tramitação, certamente sofrerá melhorias propostas pela sociedade civil, mas é possível afirmar, desde já, que ele representa uma chance concreta de elevar o patamar de segurança jurídica das parcerias tecnológicas no campo da saúde. O PL 1505 merece, portanto, a máxima atenção da indústria farmacêutica e das diferentes esferas de governo porque representa um novo horizonte para investimentos públicos e privados no Complexo Econômico e Industrial da Saúde brasileiro.