
Sabe-se que a fronteira terrestre brasileira possui cerca de 17 mil quilômetros e faz divisa com 10 países. Além disso, o Brasil conta com 11 Estados fronteiriços e com ao menos 33 “cidades gêmeas”[1], o que permite o livre fluxo de bens e pessoas, para fins lícitos e ilícitos.
Nos municípios fronteiriços, é usual que os nacionais de um país trabalhem ou desenvolvam outras atividades rotineiras no território do país vizinho. Entretanto, esse livre fluxo favorece a prática de crimes graves, estimula a atuação transnacional de organizações criminosas e, consequentemente, conduz ao aumento dos índices locais de violência.
A proximidade geográfica também facilita a evasão de divisas e a lavagem dos ativos ilícitos, por permitir que os criminosos escolham o local mais favorável para tal fim, e por possibilitar o rápido transporte de recursos em espécie entre os países.
Acrescenta-se ainda o fato de que alguns desses países fronteiriços – como Paraguai, Colômbia, Peru e Bolívia – são grandes produtores e fornecedores de parcela substancial das drogas ilícitas que abastecem o mercado global, inclusive o do Brasil, país com o maior número de consumidores de cocaína da América do Sul, conforme o Relatório Mundial sobre Drogas 2019 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC)[2].
No Relatório de 2020, o UNODC analisa possíveis variações nas rotas de tráfico entre a América do Sul e os países da Europa e África Ocidental, mas assevera que Brasil ainda é um dos principais pontos de partida da cocaína sul-americana, que chega aos demais continentes mediante a atuação de criminosos brasileiros, cruzando as estradas, rios, portos e aeroportos nacionais[3].
A conjugação desses fatores resulta em um cenário ideal para o fortalecimento e a capitalização de organizações e facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital, o Comando Vermelho e a Família do Norte, que disputam de forma brutal o domínio dessas regiões e das principais rotas brasileiras para o escoamento das drogas produzidas nos países vizinhos.
Nesse sentido, destaca-se o famoso caso do narcotraficante Jorge Rafaat – conhecido como o “Rei da Fronteira” – executado por membros do PCC com metralhadoras de calibre .50 (arma de guerra), no município paraguaio de Pedro Juan Caballero, na divisa com Ponta Porã[4].
O homicídio ocorreu em 2016, e está relacionado ao projeto “expansionista e monopolista do PCC”, que desde o ano de 2010 buscava a ampliação de sua presença no Paraguai, com a pretensão de assegurar o domínio de todas as etapas do ciclo de produção e comércio de drogas ilícitas[5].
Embora sejam menos discutidos, são igualmente relevantes os ilícitos ambientais praticados nas zonas de fronteira, nas quais se observa uma alta incidência de condutas criminosas relacionadas à exploração ilegal de madeira, recursos minerais (como ouro e manganês) e animais silvestres.
Altamente lucrativos, esses crimes são particularmente graves em razão dos danos ambientais irreversíveis que deles decorrem, e dos impactos causados sobre as comunidades locais.
E mais: não são raros os casos de associação entre crimes ambientais e outros ilícitos graves, como a produção e o tráfico de drogas ilícitas. É o que se vê, por exemplo, no caso de organizações criminosas que produzem cocaína na Amazônia colombiana, para fornecer a criminosos brasileiros que realizam o pagamento com ouro extraído ilegalmente de áreas da Amazônia brasileira.
Para assegurar a longevidade das variadas empreitadas delituosas, o crime organizado dispõe e utiliza meios e tecnologias avançadas[6], não podendo ser descartada a hipótese, mesmo que episódica, de ações cooperadas entre facções rivais[7].
Casos recentes demonstram o aperfeiçoamento do modus operandi e a sofisticação das organizações e facções criminosas, que passaram a utilizar técnicas mais complexas para a lavagem de ativos, e mecanismos mais elaborados para a prática de outros crimes, como o uso de submarinos para o transporte intercontinental de drogas ilícitas.
Diante desse contexto, parece claro que um enfrentamento da criminalidade organizada transnacional que se pretenda minimamente eficaz perpassa por um ágil intercâmbio de dados, como o proporcionado pelo Sistema de Intercâmbio de Informação de Segurança do Mercosul – SISME, criado pela Decisão CMC nº 36/04[8], no longínquo ano de 2004.
No plano interno, vale notar que nos idos de 2016 o Governo brasileiro instituiu o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras – PPIF, com o objetivo de fortalecer a prevenção, o controle, a fiscalização e a repressão aos delitos transfronteiriços (cf. Decreto nº 8.903/2016).
Não por acaso, o Planejamento Estratégico do PPIF, aprovado em 12 de abril de 2018[9], fixou plano de ação voltado à utilização integrada de sistemas estruturantes para a atuação na faixa de fronteira, como é o caso do Alerta Brasil, sistema de monitoramento de fluxo de veículos por meio de câmeras com leitor de placas, gerido pela Polícia Rodoviária Federal.
Outra iniciativa nacional relevante, que tem apresentado resultados expressivos, é o chamado Programa V.I.G.I.A. (Vigilância, Integração, Governança, Interoperabilidade e Autonomia), um projeto do Ministério da Justiça e Segurança Pública desenvolvido para o combate ao crime organizado e aos crimes transfronteiriços a partir de ações integradas e de inteligência[10].
Certo é que os dados e as informações colhidos na faixa de fronteira não esgotam sua utilidade no emprego em atividades da chamada “Inteligência de Estado”, sendo também indispensáveis para a formulação e implementação de políticas e programas de segurança pública para todo o território nacional e em todos os níveis federativos, bem como para orientar a atuação estatal nos planos da detecção, investigação e repressão a infrações penais.
Não se ignora que os órgãos estatais também passaram a dispor de ferramentas e mecanismos tecnológicos capazes de otimizar sua atuação, voltados não apenas à investigação e repressão, mas também à prevenção e detecção de ilícitos, compreendendo a vigilância das movimentações dos produtos de crime e a identificação de métodos de transferência, dissimulação ou disfarce destes produtos. Todavia, sem o compartilhamento de dados pessoais entre autoridades públicas, torna-se inviável a implementação de iniciativas voltadas ao desenvolvimento de todas essas linhas de atuação.
Não por acaso, em exposição realizada no Seminário Internacional promovido pela Câmara dos Deputados no mês de julho de 2020, o vice-chefe da Unidade de Fluxos de Dados Internacionais e Proteção na Comissão Europeia, Ralf Sauer, chamou a atenção para a necessidade de compatibilizar o direito à proteção de dados pessoais com os demais interesses jurídicos envolvidos[11].
Tal observação está em linha com o disposto no Considerando 4 da Diretiva nº 2016/680, do Parlamento Europeu e do Conselho, segundo o qual “a livre circulação de dados pessoais entre as autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, detecção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública a nível da União, e a sua transferência para países terceiros e organizações internacionais deverão ser facilitadas, assegurando simultaneamente um elevado nível de proteção dos dados pessoais” (destacamos).
É importante ressaltar que, tanto no plano interno quanto no plano da cooperação internacional, muito mais do que mera boa prática, o intercâmbio de dados e informações é dever estatal que emana da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo).
Nos termos do artigo 7º, 1, da referida Convenção, cada Estado Parte deverá garantir que as autoridades responsáveis pela detecção e repressão à lavagem de dinheiro “tenham a capacidade de cooperar e trocar informações em âmbito nacional e internacional”, inclusive mediante o emprego de “medidas viáveis para detectar e vigiar o movimento transfronteiriço de numerário e de títulos negociáveis”.
Ainda tendo em mira a necessidade de prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional, a Convenção de Palermo preconiza que “os Estados Partes procurarão reduzir, através de medidas legislativas, administrativas ou outras que sejam adequadas, as possibilidades atuais ou futuras de participação de grupos criminosos organizados em negócios lícitos utilizando o produto do crime”.
No próximo artigo abordaremos exemplos concretos para ilustrar como o texto do chamado “Anteprojeto da LGPD Penal” pode levar o Brasil a trilhar caminho diametralmente oposto ao preconizado pela Convenção de Palermo, comprometendo a utilização inteligente de dados pessoais e toda a lógica de prevenção e detecção de ilícitos não apenas nas regiões de fronteira, mas em todo o território nacional.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
[1] Exemplos: Tabatinga (AM) e Letícia (Colômbia); ou ainda Santa do Livramento (RS) e Rivera (Uruguai). Veja-se a definição contida na Portaria nº 125/2014, do Ministério da Integração Nacional.
[2] Disponível em: <https://wdr.unodc.org/wdr2019/prelaunch/WDR19_Booklet_4_STIMULANTS.pdf>. Acesso em: 22 de dezembro de 2020. p. 27.
[3] Disponível em: <https://wdr.unodc.org/wdr2020/field/WDR20_Booklet_3.pdf>. Acesso em: 22 de dezembro de 2020. p. 32.
[4] Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/17/politica/1466198112_870703.html>. Acesso em 19 de dezembro de 2020.
[5] DIAS, Camila Nunes; MANSO, Bruno Paes. A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018. p. 39.
[6] Vide proposta de aperfeiçoamento da cooperação internacional e policial em regiões de fronteira (MERCOSUR/XXII REMPM/P.REC.01/17). Disponível em <https://bitlybr.com/gnFOLQMr>.
[7] Facções fazem ações cooperadas de tráfico para dividir lucros e perdas. Folha de São Paulo, 7 de julho de 2016. Disponível em <https://bitlybr.com/w091BIQk>.
[8] O alcance do SISME compreende o intercâmbio amplo de dados pessoais, como os que demonstram a propriedade de veículos e até mesmo ocorrências policiais.
[9] Veja-se a Portaria nº 38/2018, do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, que deu publicidade ao Planejamento Estratégico do PPIF aprovado pelo Comitê Executivo do Programa de Proteção Integrada de Fronteiras – CEPPIF na Reunião Ordinária realizada no dia 12 de abril de 2018. Acessível em <https://bitlybr.com/COQg>.
[10] Para maiores informações, acesse <https://www.novo.justica.gov.br/sua-seguranca-1/operacoes-integradas/vigia>.
[11] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=f9VRTtlBlaY&t=5144s>. Acesso em: 18 de dezembro de 2020.