Francisco Yukio Hayashi

A Lei 13.964/2019 traz alterações substanciais na estrutura normativa da persecução penal brasileira. A mais chamativa – mas, nem por isso a única digna de atenção – foi a instituição do juiz das garantias. As primeiras críticas se voltam para o incremento da burocracia do processo penal, com consequente aumento da morosidade, inclusive com temor de se paralisar a jurisdição penal até completa regulamentação e implementação<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>. Além disso, a própria constitucionalidade da lei é controvertida, com destaque para o problema do impacto financeiro da nova medida, determinado sem previsão orçamentária<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>.
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Essa, porém, é apenas uma das mudanças da Lei 13.964/2019. Há diversos outros pontos dignos de atenção, como a implantação de cadeia de custódia dos vestígios, o impedimento do juiz que conhecer de provas ilícitas e a explicitação de critérios de fundamentação para as decisões judiciais no processo penal. Entretanto, não se pretende discorrer, aqui, sobre todas as reformas promovidas.
Apenas se busca chamar atenção para a criação de novas “vias” com velocidades distintas de persecução penal, para emprestar a terminologia de Silva Sánchez<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>.
Primeiramente, é preciso relembrar como a Lei 9.099/1995 representou uma ruptura da rigidez teórica do nosso sistema processual, ao admitir a transação penal (art. 72) e a suspensão condicional do processo (art. 89), viabilizando a aplicação de sanções sem a formação completa da prova sob contraditório judicial e julgamento de mérito pelo juiz natural. 
Com sua lógica utilitarista, a Lei dos Juizados Especiais segregou a jurisdição penal, permitindo que os acusados de infrações de menor potencial ofensivo, com penas não superiores a 2 anos (art. 61, Lei 9.099/1995), e de “médio” potencial ofensivo, com penas mínimas iguais ou inferiores a 1 ano (art. 89, Lei 9.099/1995), renunciem às prerrogativas processuais, sujeitando-se a um procedimento mais que sumaríssimo. Para os acusados por crimes mais graves, essa possibilidade não existe.
Após a decisão do Supremo Tribunal Federal nas ADCs 43, 44 e 54, que vedou a prisão após julgamento em segunda instância, a diferença de velocidade entre os ritos se tornou ainda maior. A reforma da Lei 13.964 mantém o microssistema dos juizados intacto, excluindo a competência do juiz das garantias (inclusão do art. 3º-C, CPP).
Enfim, a Lei 9.099/1995 se consolidou e não há perspectiva de abandono do modelo brasileiro de justiça penal negociada ali inaugurado. Pelo contrário, ele está sendo ampliado, com a previsão em lei do acordo de não persecução penal, para crimes com pena mínima inferior a 5 anos (inclusão do art. 28-A, Código de Processo Penal) – além da regulação mais detalhada do rito para a colaboração premiada (inclusão do art. 3º-A e seguintes, Lei 12.850/2013).
Essa alteração restringe muito o grupo de infrações penais que obriga o Estado a garantir ao réu, previamente ao exercício do ius puniendi, um conjunto fixo e rígido de garantias. Para a maior parte dos crimes, a via negocial estará aberta (a diferença é que o acordo de não persecução penal exigirá a confissão formal e circunstanciada do ilícito, o que é dispensado na transação penal e na suspensão condicional do processo).
O maior rigor garantista volta-se, prima facie, às acusações da prática de infrações que envolvem violência ou grave ameaça. Nesses casos, além da repartição da jurisdição, atribuindo-se ao juiz das garantias o exame preliminar de justa causa e ao juiz da instrução o juízo condenatório (inclusão do art. 3º-C, CPP), há impossibilidade de celebração de acordo de não persecução penal.
A tutela mais rígida dos direitos fundamentais do acusado exatamente em casos de crimes mais graves traz consigo o receio de impunidade, de paralisia da ação punitiva do Estado. Porém, a Lei 13.964/2019 não parou por aí.
A lei permite a criação de varas colegiadas para julgamento de organizações criminosas (inclusão do art. 1º-A, Lei 12.694/2012). O novo dispositivo reforça essa possibilidade em relação a “organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição” e milícias (art. 288-A, CP), dispondo, no § 1º, que “as Varas Criminais Colegiadas terão competência para todos os atos jurisdicionais no decorrer da investigação, da ação penal e da execução da pena, inclusive a transferência do preso para estabelecimento prisional de segurança máxima ou para regime disciplinar diferenciado”.
Ou seja, nesses casos, tratando-se de lei especial, não haverá repartição da jurisdição e juiz das garantias. A vara colegiada atuará em todas as fases da persecução penal, desde a investigação até a execução da pena. Diferentemente de um rito voltado à proteção do acusado, o que se tem é a formalização de uma nova velocidade para o processo penal onde a mitigação de garantias visa à aplicação célere de penas privativas de liberdade – inclusive, sem prejuízo da via negocial por meio da colaboração premiada.
Com efeito, uma das bases da política criminal do Ministro Sérgio Moro consiste na concentração de esforços e recursos<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>. Esse princípio sofreu um revigoramento, com a inclusão do art. 1º-A na pouco aproveitada Lei 12.694/2012, reforçando a “guerra ao crime organizado”, conforme defendido pelo presidente da República Jair Bolsonaro<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a>.
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<a class="sdfootnotesym" style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> GABRIEL, Anderson de Paiva; LIMA, Larissa Pinho de Alencar. Um presente de grego no Natal de 2019: A Lei Anticrime (13.964/19) como um Cavalo de Troia na Justiça Criminal Brasileira. Jota, 27 dez. 2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juiz-hermes/presente-de-grego-garantias-27122019. MENGARDO, Bárbara. Especialistas temem paralisação de casos criminais após criação do juiz de garantias. Jota, 26 dez. 2019. Disponível em: https://www.jota.info/justica/paralisacao-juiz-de-garantias-26122019.
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<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADO BRASILEIROS. AMB e Ajufe ingressam com ADI no STF contra “juiz das garantias”. Disponível em: https://www.amb.com.br/amb-e-ajufe-ingressam-com-adi-no-stf-contra-juiz-das-garantias/?doing_wp_cron=1577498925.6865630149841308593750. 
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 3.ed. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> MORO, Sérgio Fernando. Preventing systemic corruption in Brazil. Daedalus: v. 127, issue 3, p. 157-168, summer 2018.
</div>
<div id="sdfootnote5">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> BRASIL. Presidente (Jair Messias Bolsonaro). Mensagem ao Congresso Nacional: 1ª sessão legislativa ordinária da 56ª legislatura. Brasília: Presidência da República, 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2019/02/04/mensagem-presidencial.
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