André Luiz Fonseca Fernandes

Cinthia Nascimento Elias da Costa

O sistema multiportas de solução de conflitos tributários em construção no Brasil conta, no âmbito federal, com meio autocompositivo transacional que tem produzido resultados relevantes<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Tal meio configura instrumento de promoção do interesse público, como mostra o art. 1º, §1º da Lei nº 13.988/20<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> (regime jurídico federal da transação de créditos tributários e não tributários).
Limitado este artigo ao citado regime federal, nota-se que ele promove tanto o interesse público primário ligado ao acesso à justiça (redução de litigiosidade, razoável duração do processo, moralidade e eficiência) quanto o interesse público primário relativo à isonomia (capacidade contributiva, livre iniciativa, livre concorrência, transparência e publicidade, resguardado o sigilo fiscal). Além disso, o referido sistema transacional serve como instrumento de interesse público arrecadatório e, portanto, secundário<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Vê-la como instrumento de materialização de interesse público primário e secundário permite perceber que a transação federal constitui verdadeira política pública<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Como tal, demanda uma série de atividades, que incluem a avaliação dos resultados e impactos de sua implementação (para verificar se ela funciona a contento) e a respectiva fiscalização e controle (sociedade civil, Tribunais de Contas e Ministério Público).
Os debates realizados no Comitê Temático de Transação Tributária e Negócio Jurídico Processual do Instituto Brasileiro de Arbitragem e Transação Tributárias (IBATT) têm se preocupado em avaliar, exatamente, os resultados e os impactos da transação tributária federal, especialmente a transação individual<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. O que se quer é apresentar subsídios ao seu desenvolvimento e exercer o papel de fiscalização e controle que se espera da sociedade civil.
Neste sentido, aborda-se aqui ponto de extrema relevância no que diz respeito à sistemática geral (Lei nº 13.988/20 e Portaria PGFN n° 9.917/20, especialmente os arts. 32 a 47 desta última) da transação tributária individual: a sua publicidade e transparência.
Infere-se da Lei e da Portaria acima mencionadas que um dos principais objetivos da transação tributária na cobrança da dívida ativa é o de substituir os modelos de regularização que desconsideram as características econômico-fiscais do devedor e estimulam, em consequência, a figura do “mau pagador”, aquele que deixa de adimplir, tempestivamente, suas obrigações tributárias à espera de oportunidade vantajosa para liquidar os valores devidos com substancial redução de juros de mora e multa (às vezes, até do principal). Espera-se, na via transacional, evitar ou inibir a judicialização para recuperação dos mencionados créditos.
Tal objetivo é ainda mais acentuado na sistemática geral da transação individual<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, composta de elementos que demonstram a existência de real negociação entre o devedor e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), com concessões mútuas de ambos (tais como anistia e diferimento, do lado fazendário, e desistência de discussão judicial e apresentação de garantias pelo devedor) para encerrar o litígio e extinguir o crédito tributário.
O subsequente acordo tem por finalidade adequar as concessões estatais atinentes à regularização dos créditos tributários ao que configuraria, em tese, a real capacidade de pagamento dos sujeitos passivos (arts. 20 e 21 da Portaria PGFN n° 9.917/20). É a partir desta capacidade que os créditos são classificados em ordem decrescente de recuperabilidade, na qual o “tipo A” abrange aqueles com alta perspectiva de recuperação e o “tipo D” abrange os considerados irrecuperáveis (art. 23 da Portaria PGFN n° 9.917/20).
Chega-se, assim, ao critério principal a nortear a atuação da PGFN na transação individual: quanto mais difícil a recuperação do crédito, mais favoráveis ao sujeito passivo deverão ser as concessões oferecidas, dentro dos limites legais.
Mas não se pode esquecer que o interesse público primário ligado à isonomia e à livre concorrência está em jogo e deve ser materializado na transação. Assim, como evitar que as transações individuais ensejem privilégios a alguns devedores em detrimento de outros? Como garantir que os sujeitos passivos integrantes de determinados setores da economia tomem conhecimento das concessões feitas a seus concorrentes em transação individual?
O art. 1º, §§2º e 3º da Lei n° 13.988/20 responde a estas questões e determina que as transações devem ser regidas pela transparência e pela publicidade, o que implica, entre outras ações, a “divulgação em meio eletrônico de todos os termos de transação celebrados, com informações que viabilizem o atendimento do princípio da isonomia, resguardadas as legalmente protegidas por sigilo.”
A transparência e a publicidade têm, assim, incontestável importância neste campo, o que é ratificado pelos arts. 2º, inciso IX e 6º, inciso IV da Portaria várias vezes mencionada. Este último dispositivo atesta ser obrigação da PGFN “tornar públicas todas as transações firmadas com os sujeitos passivos, bem como as respectivas obrigações, exigências e concessões, ressalvadas as informações protegidas por sigilo.”
<blockquote class="jota-article__eye">Mas esta obrigação vem sendo descumprida pela PGFN. É o que se percebe em vários termos de acordo de transação individual disponibilizados no site daquele órgão.</blockquote>
Naqueles casos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, não há indicação precisa da natureza e dos valores dos créditos transacionados, ou mesmo especificação das garantias ofertadas e de seu montante, do percentual de desconto concedido ou das ações judiciais envolvidas. Sem acesso a estes dados, fica inviabilizada a compreensão do que foi transacionado.
Saliente-se que os dados não divulgados nos casos anteriormente mencionados não envolvem informações protegidas por sigilo. Se assim fosse, eles não estariam presentes em outros termos de acordo de transação individual. Mas estão presentes, como se pode ver em alguns exemplos<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. E isto é salutar, porque permite avaliar e fiscalizar a atuação da PGFN e do devedor, de modo a verificar se tal atuação está em consonância com a isonomia e a livre concorrência.
Ademais, o sigilo fiscal, legalmente fixado como limitador da transparência e da publicidade do mecanismo transacional, não se confunde com discricionariedade reconhecida à PGFN. Tal sigilo deve ser “(...) resguardado apenas quanto ao estritamente essencial, levando-se, portanto, ao alcance do público os parâmetros utilizados para aferição da situação econômica e da capacidade de pagamento da empresa transatora, uma vez que esta informação será assaz importante para que se identifique a similaridade de situações a demandar tratamento isonômico.”<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
É somente por meio da concretização da transparência e da publicidade que o desenho de transação individual que vem sendo implementado contribuirá para o sucesso da política pública da qual faz parte. De outro modo, não se tornará conhecida a motivação de cada transação, e aí poderão advir duas consequências: ou (i) inexistirá mecanismo que garanta minimamente que os devedores em situação semelhante recebam o mesmo tratamento na transação individual<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>; ou (ii) se tornará comum que terceiros juridicamente interessados passem a buscar, em juízo, informações sobre as concessões aos devedores em transação individual<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Na hipótese (i) acima, há violação à isonomia e à livre concorrência, com desnaturação e transformação da transação individual em instrumento de concorrência desleal. Já na hipótese (ii), nota-se o contraditório estímulo à discussão judicial como resultado de uma política pública que pretende solucionar litígios, o que também desnatura a via transacional.
Conclui-se, portanto, que não se pode falar em transação individual sem transparência e publicidade, sem informações precisas acerca das obrigações, exigências e concessões estabelecidas nos respectivos termos de acordo. É obrigação da PGFN – limitada pelo sigilo fiscal, o que não se confunde com discricionariedade – demonstrar publicamente os critérios por ela adotados (patamar de desconto concedido em vista de determinada capacidade de pagamento, garantias aceitas e etc.) para celebrar transação individual.
É indispensável que a PGFN revisite o assunto e passe a tornar públicos, em todos os termos de acordo de transação individual (inclusive aqueles já disponíveis em seu site), os dados que permitam o conhecimento, tão amplo quando possível (limitado o sigilo fiscal ao estritamente essencial), das obrigações, exigências e concessões ali definidas, sob pena de desnaturar o instituto e impedir o seu desenvolvimento.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Cf. <a href="https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2021/pgfn-alcanca-a-marca-de-r-100-bilhoes-de-creditos-regularizados-por-meio-de-transacoes">https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2021/pgfn-alcanca-a-marca-de-r-100-bilhoes-de-creditos-regularizados-por-meio-de-transacoes</a>. Acesso em: 13/7/21.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “A União, em juízo de oportunidade e conveniência, poderá celebrar transação em quaisquer das modalidades de que trata esta Lei, sempre que, motivadamente, entender que a medida atende ao interesse público.”
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Isto é comprovado, na lei federal de transação, por dispositivos como o art. 1º, §2º e o art. 3º, inciso I. Cf. GOMES, Daniel de Paiva e GOMES, Eduardo de Paiva. A Transação Tributária e sua (Obrigatória) Utilização em Situações de Calamidade Pública: o Caso da Pandemia da COVID-19. In: CONRADO, Paulo Cesar e ARAÚJO, Juliana Furtado Costa (orgs.). Transação Tributária na Prática da Lei nº 13.988/2020. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, pp. 87 a 92.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Cf. DUARTE, Clarice Seixas. O Ciclo das Políticas Públicas. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio e BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins (orgs.). O Direito e as Políticas Públicas no Brasil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 17 e 25/26.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Estes debates têm levado à publicação de artigos sobre o assunto. Cf. MASCITTO, Andréa e COSTA, Jardes. A Corresponsabilidade nas Transações Tributárias: Breves Reflexões. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/corresponsabilidade-transacoes-tributarias-breves-reflexoes-21052021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/corresponsabilidade-transacoes-tributarias-breves-reflexoes-21052021</a>. Acesso em: 14/7/21.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Cf., considerando apenas os créditos de natureza tributária, as hipóteses do art. 32, incisos I a IV da Portaria PGFN n° 9.917/20.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Cf., por exemplo, <a href="https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/divida-ativa-da-uniao/painel-dos-parcelamentos/termos-de-transacao/termo-de-transacao-individual-diniz-engenharia">https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/divida-ativa-da-uniao/painel-dos-parcelamentos/termos-de-transacao/termo-de-transacao-individual-diniz-engenharia</a> e <a href="https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/divida-ativa-da-uniao/painel-dos-parcelamentos/termos-de-transacao/termo-de-transacao-individual-grupo-trombettas">https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/divida-ativa-da-uniao/painel-dos-parcelamentos/termos-de-transacao/termo-de-transacao-individual-grupo-trombettas</a>.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Cf. <a href="https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/divida-ativa-da-uniao/painel-dos-parcelamentos/termos-de-transacao/termo-de-transacao-individual-cruzeiro-esporte-clube">https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/divida-ativa-da-uniao/painel-dos-parcelamentos/termos-de-transacao/termo-de-transacao-individual-cruzeiro-esporte-clube</a> e <a href="https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/divida-ativa-da-uniao/painel-dos-parcelamentos/termos-de-transacao/termo-de-transacao-individual_grupo-ruas.pdf">https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/divida-ativa-da-uniao/painel-dos-parcelamentos/termos-de-transacao/termo-de-transacao-individual_grupo-ruas.pdf</a>.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> CATANHEDE, Luís Cláudio Ferreira. Transação Tributária na Dívida Ativa – A Isonomia como Critério de Restrição da Discricionariedade na Avaliação de Propostas de Transação Individual. In: CONRADO, Paulo Cesar e ARAÚJO, Juliana Furtado Costa (orgs.). Transação Tributária na Prática da Lei nº 13.988/2020. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 156.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Breves Notas sobre a Transação Tributária no Âmbito Federal (Lei 13.988/2020). In: SEEFELDER, Claudio et al. (coords.). Comentários sobre Transação Tributária: à luz da Lei 13.988/20 e Outras Alternativas de Extinção do Passivo Tributário. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, pp. 261/262.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> RODRIGUES, Marco Antonio. Curso de Processo Administrativo e Judicial Tributário. Salvador: JusPodivm, 2021, pp. 384 a 386.

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Transação federal constitui verdadeira política pública

A importância da publicidade e da transparência na transação individual

Transação federal constitui verdadeira política pública