André Luiz Freire

Marina Anselmo Schneider

Renato Di Dio

O governo federal publicou na última quarta-feira (5) os Decretos <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-11.466-de-5-de-abril-de-2023-475499576">11.466/2023</a> e <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-11.467-de-5-de-abril-de-2023-475399864">11.467/2023</a>, que regulamentam a Lei do Saneamento (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm">Lei 11.445/2007</a>). O setor privado reagiu a essas publicações com perplexidade. E com razão: seu conteúdo evidencia um preocupante retrocesso em relação aos fundamentos da Lei do Saneamento após sua reforma pela <a href="http://planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm">Lei 14.026/2020</a>.
O primeiro pilar da Lei do Saneamento é assegurar competitividade ao setor, que hoje é majoritariamente composto por empresas estatais não sujeitas a critérios de qualidade, capacidade ou sustentabilidade financeira. Como fazer isso? Com a escolha dos prestadores de serviço por meio de licitações públicas promovidas pelos seus titulares diretamente, e não pelas empresas estaduais de saneamento. Para tanto, a lei restringiu os contratos de programa, arranjos inconstitucionais que permitem a contratação de empresas estatais sem licitação pública, sem metas de qualidade e eficiência e sem penalidades claras em caso de descumprimento. Buscando fazer uma transição adequada, a Lei do Saneamento permitiu que os contratos existentes sejam mantidos até seu vencimento, mas exigiu que as empresas estatais comprovem que possuem condições econômicas para prestar um serviço de qualidade durante a vigência desses contratos.
Somente com o fim dos contratos de programa será possível estruturar concessões que exijam maior eficiência dos prestadores e imponham metas de qualidade e universalização. Serviço adequado, conforme prevê a Constituição Federal, é uma combinação de eficiência, abrangência, atualidade tecnológica e tarifas que sejam, em vista disso, as menores possíveis.
Os decretos recentes não só acolheram, ilegalmente, os contratos de programa, como possibilitaram a “regularização” de contratos confessamente irregulares e extintos, além de criarem mecanismo para a utilização de estruturas que gerem efeito similares (art. 6º, § 14). O Decreto 14.466 criou ainda uma espécie de repescagem para as empresas estatais sem condições econômicas de prestar o serviço de saneamento por meio de uma “prorrogação” do já extinto prazo para adequação aos critérios mínimos. Diante desse gesto, é possível confiar que o termo final do novo prazo para comprovação da capacidade econômico-financeira das empresas estatais não será novamente prorrogado?
O segundo pilar da Lei do Saneamento está no tratamento da esquizofrenia regulatória. A titularidade dos serviços de saneamento, incluindo a sua regulação, é dos municípios, o que resulta em disparidade na regulação de serviços similares, diminuindo a previsibilidade e sujeitando a execução dos contratos a influências políticas. O saldo é insegurança, mais risco e maiores custo e tarifa. Buscando uma uniformização dessa regulação, a Lei do Saneamento criou o conceito de normas de referência, ou seja, diretrizes para o setor cuja adoção pelos titulares é voluntária. Tais normas são editadas pela a Agência Nacional de Águas (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ana">ANA</a>).
A ANA tem feito um processo longo e criterioso de diálogo com os interessados para a construção das normas de referência. Aqui cabe comentar que a competência da ANA para editar normas de referência decorre de lei, e que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ser constitucional a existência de regulação administrativa diretamente infralegal pelas agências, sem submissão aos regulamentos editados pelo presidente da República (ADI 1668). Trata-se, portanto, de entendimento pacífico e com efeitos vinculantes para todos, inclusive para os que dele discordem.
O terceiro pilar da Lei do Saneamento é a prestação regionalizada dos serviços, que busca trazer escala ao prestador ao mesmo tempo em que assegura que municípios ou regiões menos atraentes, do ponto de vista econômico, sejam também contempladas com serviços de melhor qualidade e, quiçá, com a universalização.
Para incentivar a adoção das normas de referência e a regionalização, a Lei do Saneamento condicionou o acesso a recursos públicos federais para custeio e financiamento dos serviços de saneamento à adoção das normas editadas pela ANA e à adesão dos municípios a uma estrutura de regionalização.
O Decreto 11.467 estipulou que a exigência da participação em estrutura de prestação regionalizada para acesso a recursos federais somente será aplicável a partir de 31 de janeiro de 2025, postergando o incentivo à regionalização. Isso pode dificultar o acesso a melhores serviços por localidades menores e permite a licitação segregada de áreas com potencial de contribuir para a regionalização. A partir de 1º de janeiro de 2026, segundo o decreto, os titulares dos serviços deverão aderir a uma estrutura de regionalização em até 180 dias como condição ao acesso a recursos públicos federais e financiamentos. Contudo, essa condicionante será considerada atendida ainda que adesão ocorra fora do prazo estipulado. Na prática, portanto, o incentivo não deve ter o impacto esperado.
Com o advento dos decretos, altera-se por ato do Poder Executivo a política de incentivo à regionalização e à adoção de normas uniformes para a regulação do saneamento que havia sido definida pelo legislador ao alterar a Lei do Saneamento. A nosso ver, trata-se de medida inconstitucional.
Esse tipo de solução não é novidade no Brasil. Mas o fato de haver precedentes não reduz o potencial de judicialização de temas importantes para a continuidade dos investimentos no setor de saneamento.
Por fim, vale ressaltar a afirmação do governo federal de que buscou, com a edição dos decretos aqui tratados, dar um “voto de confiança” às empresas estatais estaduais. Parece lógico que não se deva considerar a iniciativa privada como único caminho possível para a solução dos problemas de saneamento básico no Brasil, como tem sido propagado. É também lógico que as empresas estatais não deveriam ter prerrogativas que não são oferecidas aos demais participantes do mercado, em particular considerando que, em 40 anos desse modelo, não tenham conseguido transformar o setor que é capaz de oferecer dignidade e saúde às pessoas e a qualidade ao meio ambiente.

marco legal do saneamento

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JOTA

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A implosão da Lei do Saneamento

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