José Augusto Fontoura Costa

Conforme Carl von Clausewitz, os quatro elementos que compõem a atmosfera da guerra são o perigo, o esforço, a incerteza e o acaso. Não é diferente no caso do conflito entre Rússia e Ucrânia. Dessa maneira, é inevitável especular sobre as possíveis dimensões dos seus efeitos, inclusive no comércio internacional, nos órgãos e organismos internacionais e internos que o organizam e na institucionalidade da arbitragem internacional como meio adequado de solução de controvérsias. O presente artigo procura refletir sobre esse último aspecto, em especial sobre a importância da Convenção de Nova York de 1958 na preservação dos laços econômicos <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Antes de tudo, é preciso observar que a arbitragem é a mais resiliente das formas de solução de disputas mediante decisão de terceiro. Em sua forma mais simples, basta a intenção das partes e a indicação de um árbitro para constituir um tribunal, ainda que esse julgue ex aequo et bono e não disponha de sistema de execução: basta a boa-fé das partes em conflito e uma decisão procedimental e materialmente correta para levar a bons resultados. Ao contrário dos tribunais estatais ou de sistemas internacionais institucionalizados, como a Corte Internacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cij">CIJ</a>) ou o Órgão de Solução de Disputas da OMC, a arbitragem consegue sobreviver por si só, ainda que, evidentemente, seja bem mais forte na medida do apoio institucional recebido do Estado e de organizações privadas, como associações setoriais e câmaras de arbitragem.
Por ocasião da decadência do sistema colonial, capaz de organizar os fluxos econômicos ocidentais do século 17 até o início do século 20, encontrou-se na adoção da arbitragem internacional um apoio necessário para a reconstrução da segurança das operações econômicas, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Isso nas suas três versões: comercial, de investimento ou mista e entre Estados. Indiscutível, nesse cenário, a centralidade da aprovação da Convenção das Nações Unidas sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, mais conhecida como Convenção de Nova York de 1958, com impacto sobre os litígios comerciais e os de investimento.
Destaque-se: desde o princípio os países hoje em guerra apoiaram esse importantíssimo tratado internacional. Aos 24 de agosto de 1960 a República Soviética da Rússia foi o décimo país a ratificar a Convenção das Nações Unidas sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras; quase um ano antes da Alemanha e a mais de uma década dos Estados Unidos. As outras repúblicas soviéticas soberanas, Belarus e Ucrânia, ratificaram o acordo no mesmo ano, sendo que todas o fizeram de modo a estender os efeitos não apenas aos signatários, mas a todos os países garantidores de tratamento recíproco<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. A Rússia é, além disso, parte da Convenção Europeia sobre Arbitragem Comercial Internacional, desde 1962<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, e da Convenção sobre a Solução por Arbitragem de Disputas Cíveis que resultem de Relações Econômicas e de Cooperação Técnico-Científica, de 1972, ainda em vigor para alguns antigos membros da Comecon.
A União Soviética tivera uma importante atuação na negociação dessa convenção, tendo em vista a importância de maximizar a confiança dos parceiros comerciais estrangeiros na intenção de cumprir os contratos e se submeter a um juízo imparcial. Curiosamente, seu uso não se efetivou nos tribunais russos até 1992, mas não foi pela má-fé dos comunistas, pelo contrário: até então o instrumento havia se mostrado desnecessário, pois as empresas, todas estatais, cumpriam diligentemente as sentenças arbitrais. Com efeito, essa tendência a respeitar os laços econômicos internacionais e evitar o nascimento de desconfianças justificadas orientou os soviéticos desde os tempos de Lênin, considerando a efetiva compensação dos estrangeiros expropriados por ocasião da Revolução de Outubro.
A situação é bastante diversa a respeito da Convenção de Washington de 1965, a qual institui um sistema para as arbitragens internacionais entre investidores e Estados. Mesmo tendo assinado o documento em 1992, já após o período soviético, a Rússia jamais o ratificou. Além disso, embora seja parte em vários acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos, a Rússia denunciou, em 2009, o Tratado da Carta de Energia, dando mostras de sua crescente desconfiança em relação a esses instrumentos de proteção e, inclusive, à arbitragem mista. Nada disso, porém, chegou a impactar o tratamento da arbitragem comercial e, particularmente, o reconhecimento e eficácia das sentenças estrangeiras em território russo.
Além disso, o direito interno russo é também afeito à arbitragem, com um desenvolvimento legal que consolidou a aceitação da arbitragem internacional já no início dos anos 1990 e solidificou sua expansão para questões internas em período mais recente. O sistema é dualista, composto, inclusive, por instrumentos legislativos separados para o tratamento da arbitragem interna (Lei Federal 382-FZ, de 2015)<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, com inspiração expressamente reconhecida na Lei Modelo da UNCITRAL, e outra para a arbitragem comercial internacional (Lei Federal 5.338-1, de 1993)<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
De maneira geral, a sistemática jurídica do tratamento da arbitragem na Rússia é bastante similar ao que se encontra nos direitos internos favoráveis à arbitragem. O ponto mais discrepante em relação ao que se conhece no Brasil e no Ocidente é a necessidade de autorização para a atuação de instituições arbitrais permanentes (IAPs), a qual depende do cumprimento de exigências legais a respeito de seu funcionamento e parâmetros do regulamento arbitral. Atualmente, cerca de dez centros de arbitragem são reconhecidos pelo Ministério da Justiça russo, inclusive entidades estrangeiras como o Centro Arbitral Internacional de Viena, o HKIAC, o SIAC e a ICC. Isso não significa que a arbitragem internacional realizada por outras instituições, inclusive com grande destaque para o Instituto de Arbitragem da Câmara de Comércio de Estocolmo e a LCIA, não tenha suas sentenças reconhecidas na Rússia, embora existam vantagens significativas para as IAPs.
Por fim, mas com grande importância no contexto do conflito entre Rússia e Ucrânia, deve-se chamar a atenção a um fundamento de inexigibilidade do cumprimento da convenção arbitral em razão da limitação do acesso à arbitragem internacional em razão de sanções estrangeiras, implementado por meio do Artigo 248.1 do Código de Processo Comercial russo. Conforme tal regra, estabeleceu-se a competência exclusiva dos tribunais russos sempre que as disputas envolvam pessoas sob sanções que impeçam ou dificultem excessivamente a apresentação do caso no exterior, o que pode incluir uma ampla gama de circunstâncias, como, por exemplo, a dificuldade de pagar as taxas arbitrais ou contratar advogados estrangeiros em razão de restrições sobre pagamentos. Criada na esteira das sanções que perduram desde a anexação da Crimeia em 2014, é obviamente relevante no contexto atual.
Observe-se, de qualquer modo, que eventuais sentenças proferidas em procedimentos arbitrais afetados por tal regra estariam cobertas pelo Artigo V, 2, b da Convenção de Nova York, conforme o qual o reconhecimento e a execução podem ser denegados, ex officio ou por provocação de uma parte, se houver contrariedade à ordem pública; no caso, a determinação de competência judicial russa exclusiva pode ser caracterizada como tal.
Retomando-se, aqui, a preocupação com as incertezas da guerra, deve-se, claro, ter em conta as inevitáveis contingências, assim como o surto de descumprimentos contratuais e situações que exigem revisão. Tudo isso já começou a aparecer. Às consequências imediatas da guerra, como as restrições da navegação no Mar Negro e o redirecionamento de recursos para o esforço militar, somam-se as sanções econômicas, com especial destaque para a interrupção do uso dos sistemas de pagamentos e circulação de divisas. Setores como energia, petróleo, alimentos e fertilizantes vêm sendo fortemente impactados pelas restrições impostas ao comércio com a Rússia, quando não em razão das próprias ações militares. Multiplicar-se-ão as arbitragens na mesma medida. Mas será que esse cenário leva, de algum modo, a um interesse russo em abandonar a cobertura da Convenção de Nova York?
Ao que tudo indica, não. Em primeiro lugar, a denúncia da Convenção de Nova York seria ineficaz no curto prazo, pois ela própria garantiria sua aplicação aos pedidos de reconhecimento iniciados no Judiciário russo até um ano contado da data da comunicação formal da intenção de deixar o tratado (Convenção de Nova York, Artigo XIII).
Além disso, considerando que na arbitragem é mais comum buscar resultados compensatórios e indenizatórios do que o cumprimento específico de obrigações, é sempre possível ir atrás dos ativos tidos por empresas e empresários russos no exterior, inclusive eventuais dachas na Turquia, contas em Londres ou instalações comerciais no Brasil. Por outro lado, essas mesmas empresas e empresários russos perderiam o suporte convencional à eventual busca de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais que os favoreçam nos mais de 160 outros Estados-Partes. Não é uma álgebra de resolução muito complicada...
Por fim, mas não com menor importância, o histórico da arbitragem na Rússia, desde o pioneirismo no apoio a essa forma de solução de litígios no campo internacional, dá maior solidez aos compromissos firmados na Convenção de Nova York. Assim, tudo indica que as notáveis resiliência e eficiência da arbitragem têm potencial para alavancar ainda mais o instituto nesse momento crítico, até porque se necessitam meios para lidar com a incerteza e o acaso.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Agradeço a Frederico Favacho e aos colegas da CIArb a provocação para tratar do tema em webinar ocorrido no dia 30 de março de 2022. Aceso para eventuais interessados em <a href="https://www.youtube.com/watch?v=_oY-3u1meX0">https://www.youtube.com/watch?v=_oY-3u1meX0</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Dados em <a href="https://uncitral.un.org/en/texts/arbitration/conventions/foreign_arbitral_awards/status2">https://uncitral.un.org/en/texts/arbitration/conventions/foreign_arbitral_awards/status2</a>, acessado aos 27 de março de 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://treaties.un.org/pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&amp;mtdsg_no=XXII-2&amp;chapter=22&amp;clang=_en">https://treaties.un.org/pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&amp;mtdsg_no=XXII-2&amp;chapter=22&amp;clang=_en</a> consultado em 27 de março de 2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Para o texto legal em inglês, <a href="https://www.acerislaw.com/wp-content/uploads/2021/07/Federal-Law-On-Arbitration_as-amended.pdf">https://www.acerislaw.com/wp-content/uploads/2021/07/Federal-Law-On-Arbitration_as-amended.pdf</a> , consultado em 31 de março de 2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em <a href="https://www.acerislaw.com/wp-content/uploads/2021/07/Federal-Law-On-Arbitration_as-amended.pdf">https://www.acerislaw.com/wp-content/uploads/2021/07/Federal-Law-On-Arbitration_as-amended.pdf</a>, consutlado aos 31 de março de 2022.

vladimir putin

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JOTA

Como o conflito com a Ucrânia pode afetar a participação da Rússia na arbitragem?

A guerra e a lex mercatoria

Guerra entre Ucrânia e Rússia: a arbitragem é a mais resiliente das formas de solução de disputas mediante decisão de terceiro