Rodrigo Maia Rocha

O federalismo brasileiro contemporâneo – marcado pela ausência de concertação e pelo antagonismo nas relações entre as diferentes estruturas político-institucionais integrantes da nossa forma de organização do Estado que se intensificaram em grande medida durante a pandemia do coronavírus – parece entrar em uma nova fase de acirramento nas disputas interfederativas em decorrência da (legítima) pressão social diante das notícias alvissareiras de que vários países do mundo estão iniciando a imunização massiva de suas populações contra a Covid-19, com a previsão da vacinação de milhões de pessoas ainda em 2020 ou já em janeiro de 2021 mediante planos traçados de acordo com as orientações científicas e através da aquisição de diferentes tipos de vacinas já certificadas ou em fase de certificação pelos seus respectivos órgãos sanitários[1].
Ao contrário da estratégia adotada pela maioria dos países, o governo brasileiro, por meio do Ministério da Saúde, concentrou seus esforços para a obtenção de vacinas contra a Covid-19 em um número restrito de protocolos de intenção – o principal relacionado à vacina produzida pela empresa Astrazeneca em parceria com a Universidade de Oxford, cujos estudos exigidos para a sua aprovação sequer foram concluídos e têm enfrentado problemas técnicos, prejudicando assim a aquisição de outras modalidades de vacinas disponíveis globalmente, como a produzida pelo laboratório Pfizer, já em fase de utilização pelo Reino Unido, o que tem gerado dúvidas quanto à capacidade do Ministério da Saúde em adquirir uma quantidade suficiente de vacinas para a imunização da população brasileira dentro do horizonte temporal que a urgência da calamidade sanitária exige, considerando que até o momento sequer foi apresentado concretamente um plano nacional de imunização[2].
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Diante da gravidade do quadro da pandemia no país e da incerteza quanto à efetividade da atuação federal – sublinhada pela inércia na adoção de providencias elementares como a formulação do plano nacional de imunização – diversos Estados-membros já planejam a aquisição direta de vacinas aprovadas por agências internacionais para a imunização de suas respectivas populações, suscitando um intenso debate na sociedade e especialmente na comunidade jurídica em relação à legitimidade dos entes subnacionais para a adoção de providências dessa natureza à revelia do governo central, tema que mais uma vez desafiará a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) enquanto árbitro dos conflitos federativos, pois até o momento da elaboração deste texto já existem pelo menos três ações naquela Corte em que se discute tal possibilidade[3].
Com efeito, faz-se necessário o reconhecimento de que as regras constitucionais de divisão de competências em matéria de saúde e os precedentes do próprio STF durante a pandemia evidenciam a existência de autonomia dos Estados-membros para a implementação de seus próprios planos de imunização contra a Covid-19.
Nesse sentido, o comando contido no art. 23, inciso II, do diploma constitucional dispõe com absoluta clareza que a atribuição para desenvolver políticas públicas destinadas à promoção, à proteção e à recuperação da saúde é responsabilidade comum dos entes que compõem a Federação, fazendo-o através da estrutura institucionalizada do Sistema Único de Saúde (SUS), prevista no art. 198 do referido diploma, cuja atuação:
 “Descentralizada e sob a forma de rede regionalizada de serviços – portanto não concentrada – permite adaptação das ações e dos serviços de saúde às necessidades locais, não somente quanto a aspectos operacionais, como em termos epidemiológicos, assim atendendo às diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS)  e às reivindicações do Movimento de Reforma Sanitária. Há um evidente liame entre a estrutura constitucional do SUS e o princípio federativo”.[4]
Desse modo, a autonomia dos entes subnacionais para a adoção de medidas de proteção à saúde para além de constituir uma evidente diretriz constitucional atende a uma exigência de natureza eminentemente técnica, sobretudo diante da tarefa de prover ações eficientes de vigilância epidemiológica dentro de um território tão vasto e repleto de peculiaridades regionais quanto o brasileiro.
O que sublinha a relevância na adoção de medidas específicas pelos referidos entes para o controle da disseminação de doenças, especialmente quando em jogo a proteção do direito fundamental à saúde diante da atuação insuficiente do governo central, sendo esta a conclusão do STF no recente julgamento da ADI 6.341-MC-/DF, onde restou consignado que “o pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo art. 23 da Constituição Federal. É grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que estados e municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os estados e os municípios”.[5]
Partindo de tais premissas, ainda que a política de vacinação em âmbito nacional seja atribuição do Ministério da Saúde, diante da inação ou mesmo da atuação insuficiente dos órgãos federais – o que se constata de maneira bastante eloquente no histórico do enfrentamento da pandemia pelo governo federal – o reconhecimento da autonomia dos Estados-membros para a adoção de políticas próprias de imunização em âmbito regional mediante a aquisição direta de vacinas encontra inegável amparo em nosso ordenamento jurídico-constitucional, especialmente considerando o dever estatal de respeito e proteção aos direitos fundamentais fortemente presente na Constituição de 1988[6].
Assertiva reforçada pelo conjunto normativo extraído da Lei nº 13.739, de 6 de fevereiro de 2020 (com a redação dada pela Lei nº 14006, de 28 de maio de 2020), especialmente no art. 3º, inciso VIII e no parágrafo 7º-A do mesmo dispositivo, os quais permitem excepcionalmente a aquisição de quaisquer materiais, equipamentos, medicamentos e insumos essenciais ao combate da Covid-19 mesmo sem o registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a quem compete conferir a mencionada autorização excepcional em até 72 (setenta e duas horas), sempre com base em critérios técnicos e científicos.
<blockquote class="jota-article__eye">À guisa de conclusão, constata-se que a autonomia das unidades federadas inerente ao pacto federativo é um fator fundamental para a promoção da defesa da vida e da saúde especialmente diante do gravíssimo quadro de crise sanitária enfrentado no Brasil.</blockquote>
O que abrange sem a menor dúvida a implementação de suas próprias estratégias de imunização no âmbito das competências constitucionais e legais que lhe são franqueadas; por outro lado, cumpre reconhecer que tal atuação é limitada, na medida em que apenas o regular funcionamento dos instrumentos de pactuação democrática mediante a adesão dos atores políticos às estratégias de solução conjunta poderia alcançar resultados mais efetivos e abrangentes.
O que pode ser constatado diante do reduzido alcance da eficiência brasileira na redução da contaminação pelo novo coronavírus decorrente sobretudo da ausência de uma concreta coordenação nacional capaz de promover a imprescindível conjugação de esforços no combate à Covid-19, sendo tarefa urgente resgatar a promessa constitucional cada dia mais longínqua de um federalismo verdadeiramente cooperativo.
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O episódio 47 do podcast Sem Precedentes analisa o julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiu pela inconstitucionalidade da reeleição dos presidentes do Congresso. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=roD5SwCzhLI
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Referências:
[1] A Alemanha, por exemplo, já tem um plano pronto para imunização de sua população, que deve iniciar logo nos primeiros dias de 2021, conforme declarou chefe de gabinete da primeira-ministra Angela Merkel. Disponível em: &lt;https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/12/07/alemanha-diz-que-vacinacao-contra-covid-deve-comecar-no-inicio-de-janeiro.htm&gt;.
[2] Até o momento o Governo Federal ainda está discutindo um esboço do Plano e, pelas informações que circulam na imprensa e confirmadas por declarações de representantes do Ministério da Saúde, nem mesmo os insumos básicos, como seringas, até o momento foram encomendados junto aos fornecedores do Ministério. Disponível em: &lt;<a href="https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/12/01/autoridades-apresentam-esboco-de-um-futuro-plano-de-imunizacao-nacional-contra-a-covid.ghtml">https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/12/01/autoridades-apresentam-esboco-de-um-futuro-plano-de-imunizacao-nacional-contra-a-covid.ghtml</a>&gt;.
[3] Nos referimos, no caso, à Ação Cível Originária nº 3451, ajuizada pelo Estado do Maranhão, além de duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental  ajuizadas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pelo partido Rede Sustentabilidade, ainda sem numeração definida no STF).
[4] SARLET, Ingo Wolfgang, em CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, página 1079.
[5] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341. Relator: min. Marco Aurélio, 23 de março de 2020. Disponível em: &lt;http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADI&amp;documento=&amp;s1=6341&amp;processo=6341&gt;. Acesso em: 27 de agosto de 2020.
[6] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficacia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, página 218.

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