José Eduardo Faria

Deflagrada com o objetivo de pressionar a reitoria a contratar mais professores, especialmente para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a greve dos estudantes da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/usp">USP</a> só surpreendeu pela capacidade de articulação dos estudantes e pelo modo um tanto quanto rude como se comportaram. No mérito, a motivação é não apenas procedente e justa. É, também, antiga e está associada ao crescimento do número de alunos em quase todos os cursos da instituição e uma crescente hegemonia de valores tecnocráticos na gestão do ensino superior das universidades públicas.
Originariamente, elas são um locus autônomo de poder econômico e político; de espaço de liberdade de criação e de pensamento independente; e de lugar de iniciativas críticas e consciente de que em momento algum pode deixar de se pronunciar sobre assuntos polêmicos. A universidade é um espaço policêntrico de saber. É um ambiente de reflexão, debate, crítica e luta. Conhecimento não é apenas sinônimo de prestígio e autoridade. É, também, um instrumento de poder acadêmico, de poder institucional e de controle social, ora reproduzindo e justificando um padrão de organização econômica, ora criticando suas estruturas para subvertê-lo e torná-lo mais justo, equitativo e participativo.
A produção de conhecimento crítico é a função precípua de uma universidade pública enquanto locus autônomo de poder econômico e político; enquanto espaço de liberdade de criação e de pensamento independente e aberto ao diálogo. Conhecimento não é apenas sinônimo de prestígio e autoridade. É, também, instrumento de poder acadêmico, poder institucional e controle social, ora reproduzindo e justificando um padrão de organização econômica, ora criticando suas estruturas para tentar torná-las mais justas. Como poder, o conhecimento está na essência das revoluções paradigmáticas da ciência. No campo social, é instrumento para mobilizações, protestos e revoluções. No campo político, é instrumento para o questionamento contínuo da ordem estabelecida.
Por esses motivos, a carreira acadêmica exige qualidades especiais, como muita leitura, capacidade de abstração, capacidade de suscitar e equacionar problemas e raciocínio crítico. E, também, de respeito aos valores da ética científica, tais como a ótica voltada à comunidade, o desinteresse e o ceticismo metódico.
Nas últimas décadas, porém, a universidade pública foi pressionada a se submeter aos imperativos da economia, às exigências do mercado de trabalho, à ênfase à lógica produtivista e ao princípio da análise do custo/benefício no desenvolvimento de atividades acadêmicas e de pesquisas. Com isso, a qualidade criativa do ensino superior público foi progressivamente substituída por uma visão gerencial e pelo advento de uma burocracia administrativa situada acima dos professores e pesquisadores e de seus respectivos departamentos.
Enquanto estes valorizam o ensino e a pesquisa, conscientes de que conhecimento exige uma reflexão que não pode ser acelerada sem o prejuízo das próprias ideias e de seu impacto na sociedade, essa burocracia centralizadora se preocupa apenas com resultados rápidos, diretos e que podem ser comercializados por meio da venda de serviços, pesquisas e patentes.
Preocupam-se, igualmente, com estratégias para cortar custos – como é o caso, por exemplo, da não reposição de professores que se afastam, aposentam ou corte de custos. No caso específico da USP, em 2014 ela contava com 6.000 professores. Hoje, tem cerca de 4.900. Por isso, na Faculdade de Direito, há professores que dão aula presencial numa classe e, ao lado dela, há outra classe em que mais alunos da mesma turma a assistem... virtualmente.
A tecnoburocracia das universidades públicas despreza ainda o que dizia Florestan Fernandes há décadas: as universidades públicas não são instituições isoladas – pelo contrário, fazem parte dos processos globais da sociedade. Além disso, estão voltados somente aos resultados.
Em matéria de financiamento, por exemplo, os tecnoburocratas defendem a tese de que a universidade pública tem de gerar seus próprios recursos, para não ficar na dependência de repasses de verbas orçamentárias. Estabelecem prazos, metas de produção e de lucro. Encaram professores e pesquisadores como agentes econômicos diretos, isto é, força de trabalho. Qualificam os resultados da atividade intelectual como simples produto. Investem contra os órgãos colegiados com participação paritária de professores, sacralizando o que chamam de administração profissional e encarando o trabalho acadêmico na perspectiva de uma linha de produção que asfixia o pensamento crítico.
Foi por ter se deixado dominar por essa lógica que a USP achatou salários, reduziu o número de professores, o que levou à supreendentemente bem organizada greve de seus alunos, apesar dos excessos de alguns deles. É para isso que a greve lança luz, nestes dias em que o mundo tem mudado de modo tão acelerado, modificando competências, habilidades e conteúdos.
Uma universidade pública, como a USP, exerce uma função vital na orientação do universo social. Por isso, (i) quanto mais responsável for sua gestão tendo em vista sua função social e seu papel histórico, (ii) quanto mais sua cúpula se conscientizar de que o saber é muito mais do que informação com utilidade imediata e (iii) quanto menos se deixar levar pela lógica de mercado, mais ela incorporará vozes advindas da sociedade que a circunda e maior será sua capacidade de reflexão crítica. Mas isso exige que ela, depois de ter aberto mais vagas e mais cursos por pressão social e política, tenha um número de docentes à altura de suas necessidades, sem o que não se reencontrará com seu espírito originário.

Praça do Relógio

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Ação só surpreendeu pela capacidade de articulação dos alunos e pelo modo um tanto quanto rude como se comportaram

A greve da USP

Greve dos estudantes da USP só surpreendeu pela capacidade de articulação dos estudantes e pelo modo um tanto quanto rude como se comportaram