José Augusto Medeiros

Bruno Teixeira Peixoto

Uma empresa não pode ser vista como uma "caixa preta com um cano saindo dela"<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Os danos da ausência de políticas públicas e de ações privadas voltadas à proteção ao meio ambiente junto às organizações de mercado são cumulativos, têm efeito multifacetado nas estruturas sociais, desembocando nas mais diversas esferas de responsabilidade.
Nos últimos anos, as mudanças climáticas e as questões ambientais (e agora a pandemia) atingiram as bases do capitalismo, acelerando uma marcha que já vinha se arrastando por décadas. Os sinais dessa transformação são mais do que evidentes e replicam a lógica dos danos cumulativos para o centro das discussões dos mecanismos que organizam o processo econômico.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Embora legislações especiais como a financeira, a anticorrupção ou a ambiental tenham alcançado alguma relevância acerca da mitigação dos efeitos negativos dessas mudanças, o desafio, agora, é refletir sobre a instrumentalização relacional dessas leis.
Um elemento chave acerca dessa reflexão diz respeito à função que os programas de compliance podem e devem exercer no ordenamento jurídico-econômico nacional.
<h3>A dinâmica do processo econômico internacional</h3>
Entender a dinâmica do capitalismo moderno implica compreender a alteração de nível e de complexidade inerente às estruturas internas de organização empresarial e sua consequente vinculação com o processo econômico.
A partir da década de 1970, o capitalismo passou a ter como referência estruturas de empresas cujas bases repousam na eficiência e na comunicação. Esse modelo de capitalismo vinculou-se estritamente à engenharia financeira, à engenharia de produção e à comunicação de análise de risco<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Nessa linha, a coordenação jurídica supranacional dos mercados fez-se sentir, principalmente: (i) pela alteração de legislação inerente à flexibilização das leis trabalhistas; (ii) pelo combate à corrupção pública e privada; (iii) pelo estabelecimento dos códigos e padrões financeiros pelo BIS (Bank for International Settlements); e (iv) pela disseminação de instrumentos de auto-vigilância, especialmente com o fortalecimento dos mecanismos de autorregulação. Referidos pontos revelaram-se como marcos internacionais do desenho jurídico dos mercados. O Brasil não ficou imune a esse processo.
Desde o início da década de 2000, legislações como a Lei de Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005), a Lei de reformulação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (Lei 12.259/2011), assim como a Legislação da Delação Premiada (Lei 12.850/2013) e a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), instrumentalizada pelo Decreto Federal 8.420/2015, podem ser citadas como reflexo direto da reorganização internacional dos mercados no Brasil.
<h3>A fase substancial do compliance</h3>
Em linhas gerais, no Brasil da década de 1990 os programas de compliance estiveram restritos às instituições bancárias. A partir da primeira década do Século XXI, a prática de aplicação destes instrumentos de auto-vigilância foi disseminada para outros setores. Parte considerável dos compliances implantados nessa época, no entanto, não teve eficácia real, figurando como "compliance de gaveta"<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
O cenário foi alterado com a reconfiguração das instituições brasileiras e a disciplina específica da matéria em leis especiais, como, por exemplo, a Lei nº 12.846/2013, o Decreto nº 8.420/2015 e a Lei das Estatais nº 13.303/2016. As diretrizes estabelecidas pelo Cade e pela CGU também contribuíram para a parametrização e a ordenação dos programas em solo brasileiro. 
Didaticamente é possível pontuar que os programas de compliance compartimentaram-se em duas fases iniciais. Uma primeira, vinculada à aproximação internacional das regras de conformidade, na qual os programas não necessariamente detinham estruturação voltada para a eficiência, mas eram de aplicação restrita de organizações que precisavam seguir protocolos internacionais.
E uma segunda, que classificamos como "institucional" e "procedimental", na qual a reconfiguração das instituições brasileiras tornou possível o fortalecimento das bases dos programas por meio de legislações e orientações específicas.
A despeito dos avanços sentidos neste último estágio, seu quadro contextual não evitou uma onda adesista de programas. Como efeito prático, muitos programas permaneceram banhados na lógica da eficiência de processos organizacionais ou como mecanismos estritamente vinculados à anticorrupção.
Não raras vezes, esta última consolidou-se como a "raison d'être" para verdadeira explosão de especialistas e publicações sobre o assunto. Em alguns casos, o combate à corrupção tornou-se uma ferramenta cega, prejudicando inclusive aquilo que queria proteger<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Olhar mais atento e prospectivo torna possível notar o sobrevir de uma terceira fase dos programas. Esse fenômeno estaria ocorrendo não apenas no Brasil, mas em nível mundial, e seria principalmente impulsionado pelos efeitos das crises econômica e ambiental. Trata-se de um momento em que se abre a possibilidade de construir uma crítica capaz de desvelar funções outras ao referido instituto, a ponto de alçá-lo ao viés constitucional.
Este novo estágio seria gerador de reflexões em favor da aplicação do compliance em ramos específicos da conformidade, como, por exemplo, da regulação ambiental e da ordem econômica.
<h3>O Direito Econômico e a função ambiental do compliance</h3>
Em paralelo aos efeitos da pandemia, o agravamento dos riscos ambientais vem forçando uma reorientação sintomática do capital pelo mundo, cujos efeitos mais diretos são a redefinição da ideia de gestão e a organização das atividades econômicas. Nesse quadro, os impactos ao meio ambiente inserem-se como balizas da existência econômica e jurídica das atividades econômicas<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Essa mudança evidencia a necessidade de que os programas de compliance assumam uma função ambiental na arquitetura da regulação econômico-financeira do capitalismo. Os exemplos de tal conjuntura estão em curso.</blockquote>
Em maio, o Banco Central da Noruega, por resolução, determinou a exclusão da mineradora Vale S/A e da Eletrobrás S/A da participação do maior fundo estatal de pensões do mundo. Como motivação da exclusão, o Banco indicou os danos ambientais e estruturais causados nas barragens em Mariana e Brumadinho, além de violações ambientais e de Direitos Humanos na construção da Usina de Belo Monte<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
As medidas confirmam que a atuação dos fundos passará a exigir a conformidade ambiental, o que implicará a estruturação de programas específicos voltados aos impactos das organizações ao meio ambiente.
Na mesma trilha, o último Fórum Econômico Mundial corroborou a dimensão substancial dos programas compliance na área ambiental, econômica e de desenvolvimento. Consoante estudos do BIS (Bank for International Settlements) – no que veio a denominar de “Cisne Verde” –, a economia e a regulação financeira nos próximos anos priorizarão a análise de riscos ambientais diante das incertezas da emergência climática, acentuando a necessidade do compliance ambiental em toda e qualquer atividade econômica que se relacione com o meio ambiente<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
É preciso lembrar que, desde 2018, a União Europeia vem aprimorando plano de ação para aumentar o cumprimento e melhorar a governança das regras ambientais dos países integrantes. Mais recentemente, a entidade colocou em pauta a regulamentação dos programas de compliance na função ambiental como instrumento em favor do “European Green Deal” ou Acordo Verde Europeu. Muito próximo do “Green New Deal”, proposto no Congresso dos Estados Unidos, em 2019, e em 2020 pelo governo da Coreia do Sul, debates que atribuem propósitos inéditos ao compliance nas ordens econômica e ambiental<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Algum avanço acerca do redimensionamento ambiental-econômico do compliance também pode ser visto no Brasil. O Projeto de Lei Federal nº 5.442/2019 é um caso. Em seu art. 4º, o PL busca regulamentar os "Programas de Conformidade Ambiental", propondo que os programas sejam tomados como "condição" das contratações públicas, subvenções econômicas, financiamentos públicos oficiais de crédito, inclusive incentivos fiscais e doações.
A Resolução 4.327, de 25 abril de 2014, do BACEN, igualmente pode ser vista como vetor da função ambiental do compliance, com força suficiente para condicionar a obtenção de créditos e de financiamentos à verificação do grau de exposição socioambiental das atividades e das operações da instituição tomadora<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. E o momento para o cenário econômico brasileiro aponta para estruturais vetos internacionais que exigem tal reestruturação ambiental jurídico-econômica<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Visto pela lente do Direito Econômico, o compliance pode assumir uma função ambiental nessa reorganização jurídica-econômica dos mercados<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Na sua fase substancial, os programas de compliance, articulados como ferramenta de organização do processo econômico capitalista, deteriam capacidade de empreender uma ressignificação "avant la lettre" acerca de sua funcionalidade.
A (re)interpretação substancial do compliance – como a aqui proposta – desenha, portanto, um novo caminho para a exigência e a eficácia dos programas, em que a sua função ambiental define a sustentação das atividades econômicas, significando, inclusive, vetor para a consecução material do desenvolvimento sustentável.
<hr />
Afinal, quem é Kassio Nunes? O que esperar dele no STF? E o que tiramos do processo de escolha de Bolsonaro? Ouça no Sem Precedentes, podcast sobre Constituição e Supremo:
https://www.youtube.com/watch?v=6UbopF1SKqA&amp;feature=emb_title
&nbsp;
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> LIGHT, Sarah E. The Law of the Corporation as Environmental Law. Stanford Law Review, vol. 71, no. 1, January 2019, p. 137-214.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Sobre a organização dos mercados para e por uma ordem internacional supranacional, conferir: JESSOP, Bob. Narrating the Future of the National Economy and the National State? Remarks On Remapping Regulation and Reinventing Governance. Department of Sociology, Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, Disponível em: &lt;<a href="http://www.comp.lancs.ac.uk/sociology/papers/Jessop-Narrating-the-Future.pdf">http://www.comp.lancs.ac.uk/sociology/papers/Jessop-Narrating-the-Future.pdf</a>&gt;. Acessado em 19 de maio de 2020.
Para uma análise sobre as origens da organização corporativa do Estado, ver, por todos: HORWITZ, Morton J. Santa clara revisited: The development of corporate theory. West Virginia Law Review, 88(2), (1985); BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Invertida: a Suprema Corte Americana no Combate à ampliação da Democracia. Lua Nova, São Paulo, 89: 2013; e SKLAR, Martin. The Corporate Reconstruction of American Capitalism 1860-1916. New York: Syndicate of the University of Cambridge, 1988.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A expressão, assim como “compliance de fachada” ou “compliance fake” remetem a programas que são destituídos de eficácia.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Nesse sentido, ver o trabalho de WARDE JÚNIOR, Walfrido J. e BERCOVICI, Gilberto; e SIQUEIRA NETO, José Francisco. Um Plano de Ação para o Salvamento do Projeto Nacional de Infraestrutura. São Paulo: Editora Contracorrente, 2015.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> CAPRA, Fritjof; MATTEI, Ugo. A revolução ecojurídica: o direito sistêmico em sintonia com a natureza e a comunidade. Tradução: Jeferson Luis Camargo. 1 ed. São Paulo: Cultrix, 2018,
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> COUNCIL OF ETHICS. The Government Pension Fund Global. Recommendation to exclude Centrais Elétricas Brasileiras SA from the Government Pension Fund Global. Disponível em: &lt;<a href="https://etikkradet.no/centrais-electricas-brasileiras-sa-eletrobras-eng/">https://etikkradet.no/centrais-electricas-brasileiras-sa-eletrobras-eng/</a>&gt;. Acesso em 17 de setembro de 2020.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BIS. The green swan Central banking and financial stability in the age of climate change. Disponível em: &lt;<a href="https://www.bis.org/publ/othp31.pdf">https://www.bis.org/publ/othp31.pdf</a>&gt;. Acesso em 17 de setembro de 2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Conferir, respectivamente.: EUROPEAN COMMISSION. Environmental Compliance Assurance. Disponível em: &lt;<a href="https://ec.europa.eu/environment/legal/compliance_en.htm">https://ec.europa.eu/environment/legal/compliance_en.htm</a>&gt;. Acesso em 17 de setembro de 2020;
UNITED STATES CONGRESS. Resolution 109. Recognizing the duty of the Federal Government to create a Green New Deal. Disponível em: &lt;https://www.congress.gov/bill/116th-congress/house-resolution/109/text&gt;. Acesso em 24 de junho de 2020;
South Korea Embraces EU-Style Green Deal For COVID-19 Recovery. Disponível em:  &lt;<a href="https://www.forbes.com/sites/davidrvetter/2020/04/16/south-korea-embraces-eu-style-green-deal-for-covid-19-recovery/#7699c5fb5611">https://www.forbes.com/sites/davidrvetter/2020/04/16/south-korea-embraces-eu-style-green-deal-for-covid-19-recovery/#7699c5fb5611</a>&gt;. Acesso em 17 de setembro de 2020.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Res. 4.327/2014. Disponível em: &lt;<a href="https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/res/2014/pdf/res_4327_v1_O.pdf">https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/res/2014/pdf/res_4327_v1_O.pdf</a>&gt;.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Fundos que administram US$ 4,1 tri em ativos pressionam Brasil a combater desmatamento. Disponível em: &lt;<a href="https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/investidores-e-deputados-da-ue-elevam-pressao-contra-desmatamento-no-brasil.shtml">https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/investidores-e-deputados-da-ue-elevam-pressao-contra-desmatamento-no-brasil.shtml</a>&gt;. Acesso em 17 de setembro de 2020.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Defendemos que, na arquitetura jurídica econômica brasileira, o compliance, em suas mais variadas funções, pode ser visto como instrumento do desenvolvimento econômico planejado constitucionalmente. Nesse sentido, conferir: MEDEIROS, J. A. e PEIXOTO, B. T. Exigir Compliance Ambiental da Vale é Questão de Direito Econômico. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/exigir-compliance-ambiental-da-vale-e-questao-de-direito-economico-22122019">https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/exigir-compliance-ambiental-da-vale-e-questao-de-direito-economico-22122019</a>&gt;.

7380809232_e1cb752199_k

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Pressionado pelas questões ambientais, cenário econômico mundial conduz programas de compliance à fase substancial

A função ambiental do compliance na reestruturação econômica mundial

Pressionado pelas questões ambientais, cenário econômico mundial conduz programas de compliance à fase substancial