Pandemia

A fratura do modelo sindical brasileiro exposta pela pandemia Covid-19

Alteração constitucional para garantir a existência de um modelo sindical livre, seguindo os termos da Convenção nº 87 da OIT

Crédito: Pixabay

“O ‘lobby’ dos sindicatos, entretanto, já está razoavelmente organizado e é mais velho que os de empresários e agricultores, formados nos últimos meses. O comando deste ‘lobby’ é o Diap —Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar—, fundado em 1983, com sede própria em Brasília, um corpo de doze técnicos e advogados pagos pelo movimento sindical, computador e uma atuação que procura pairar acima das divisões entre os dirigentes.”ii

Esse é um parágrafo da coluna de Jânio de Freitas, de Domingo, 1º de fevereiro de 1987, no jornal Folha de São Paulo. Informa os seus leitores sobre a organização dos sindicalistas para a Assembleia Nacional Constituinte, que estava sendo instalada naquela data, para a elaboração do texto que seria consagrado como Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Defendendo a ideia de que os trabalhadores seriam despreparados para buscar uma proteção social, num viés claramente paternalista, os sindicalistas obtiveram êxito na aprovação de um sistema sindical flagrantemente contraditório, mas que a eles garantia a subsistência, numa espécie de “reserva de mercado”.

Explicando, a Constituição Federal, responsável pela ampliação das liberdades dos cidadãos, previu a liberdade de reunião e de associação (incisos LVI a XXI, do artigo 5º) e, no campo do trabalho, a liberdade e autonomia sindicais, conforme artigo 8º e seus incisos I, III, V e VIII. Foram expressamente vedadas “ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical” (inciso I).

A liberdade conquistada foi acompanhada, contudo, pela manutenção de bases de um sistema corporativista instituído ainda na década de 1930, dentre elas a contribuição sindical compulsória, o poder normativo da Justiça do Trabalho e, a mais relevante neste momento, a unicidade sindical. Isto motivou Brito Filhoiii a denominá-lo de “tripé da incompetência” ou “tripé da farsa”, porque restringe a representatividade do movimento sindical, permitindo a sua subsistência ainda que em desacordo com a vontade da base trabalhadora.

Do referido “tripé”, o poder normativo da Justiça do Trabalho foi bastante reduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e, quanto à contribuição sindical, a

Lei nº 13.467/2017, dita Reforma Trabalhista, extinguiu seu caráter compulsório, eliminando a fonte de custeio primária dos sindicatos que, a partir de então, somente arrecadam se obtiverem “autorização prévia e expressa” dos integrantes da categoria (artigo 579, da CLT).

Permanece intacta, no entanto, a unicidade sindical, porque o inciso II, do artigo 8º, da Constituição Federal proíbe “a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município”.

O dispositivo, se não prima por uma clareza absoluta, pode ser traduzido como a garantia de um “monopólio” para atuação de um sindicato de uma categoria dentro de um município, no mínimo. Por exemplo, somente um sindicato poderá representar os trabalhadores de restaurantes no município de Belo Horizonte. Caso exista algum garçom insatisfeito com a atuação deste sindicato, tem como alternativas não se filiar à organização ou, se possuir interesse, tempo, capacidade política e resiliência, buscar eleger membros para a diretoria dela, caminho deveras árduo e pouco atraente ou até mesmo inviável para a grande maioria dos trabalhadores.

A manutenção desta contradição constitucional – à que, inclusive, se atribui a não ratificação, pelo Brasil, da Convenção nº 87 da OIT, que trata da liberdade sindical – sempre despertou inúmeros debates políticos e doutrinários, protagonizando algumas Propostas de Emenda à Constituição, dentre elas a PEC 369/2005 e, a mais recente, a PEC nº 196/2019, com distintas abordagens, porém ambas tendentes a eliminar a unicidade sindical.

Apesar disso, foi a crise decorrente da pandemia causada pela Covid-19 que escancarou a necessidade de alteração no modelo sindical brasileiro, permitindo a constatação de que a ausência de representatividade dos sindicatos dos trabalhadores prejudica não só os empregados, mas também os empregadores.

Num cenário econômico em que a redução de salário é uma estrada menos penosa, mas, ainda assim, urgente, todas as cabeças foram viradas para o inciso VI do artigo 7º, da Constituição Federal, que autoriza a diminuição salarial. Foi observado, todavia, que o dispositivo impõe a negociação coletiva para tanto, de modo que a leitura seguiu para algumas linhas adiante, em que o texto constitucional exige “a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho” (inciso VI, do artigo 8º, da Constituição Federal).

Seguindo conselhos de professores, consultores advogados ou amigos entendidos sobre o assunto muitas das pessoas, físicas e jurídicas, estas de todos os portes, mesmo sabendo que a tão falada Medida Provisória nº 936/2020 autoriza a redução de salário e suspensão do contrato por “acordo individual”, preferiram, por segurança (jurídica, como ouviram dizer, sobretudo após às decisões proferidas pelo Ministro Ricardo Lewandowski na ADI nº 6363iv, que não foram referendadas pelo Plenário do STFv), tentar negociar com o sindicato da categoria de seus empregados, para evitar os riscos de ações na Justiça do Trabalho. Para muitos, foi o primeiro contato com este tipo de associação ou, ao menos, a primeira vez em que tinham que buscar uma negociação sobre direitos de seus empregados.

Seguramente isso ocorreu, com mais frequência, entre micro e pequenos negócios, de conhecida relevância para economia nacionalvi, atingidos tragicamente pela crise econômica que acompanha a pandemia, enquanto também são eles que, normalmente, não dispõem de um departamento jurídico ou de uma consultoria trabalhista previamente contratada, para auxiliar na negociação.

E, no momento de se iniciar as tratativas, é razoável imaginar que surgem outros obstáculos, seja do ponto de vista técnico-formal ou material, o que, se proveniente do sindicato, é mais grave, numa possível negativa ou resistência em negociar, implícita (pela inércia ou ausência de comunicação eficiente) ou explícita.

Para agravar o quadro, não é demais antever um descompasso entre a vontade real dos trabalhadores, igualmente alcançados pela crise e que sabem depender da sobrevivência do empreendimento para subsistência do emprego póscrise, e do sindicato que os representa.

Não fosse a unicidade sindical, os empregados que não se sentissem representados pela atividade do sindicato poderiam escolher a via de se reunir e, seguindo regras previamente definidas, constituir uma organização que efetivamente refletisse a vontade da maioria.

Aliás, a deficiência de representatividade dos sindicatos é apontada como uma das razões para um percentual tão baixo de filiação, que, em 2018, atingia não mais do que 12,5% de todos os empregados formais do paísvii. Apenas um a cada oito empregados era, naquele momento, filiado ao sindicato de sua categoria, em sua base territorial.

Em um plano de liberdade sindical ampla e efetiva, em que seja permitida a coexistência de entidades com personalidade sindical – bastando o atendimento de requisitos de representatividade, democracia interna e outros que não limitem a própria existência associativa – os interesses individuais e coletivos dos trabalhadores seriam prestigiados. É a consequência natural de um regime de concorrência entre as associações que, efetivamente, trabalham em prol da categoria, ainda que, em dado contexto, como o atual, a atuação seja para permitir alterações temporárias que reduzem direitos dos próprios representados.

A liberdade sem as amarras da unicidade também favoreceria os inúmeros sindicatos que efetivamente representam seus trabalhadores, com o reconhecimento de sua atuação e valorização da própria atividade sindical. Poderiam se distanciar de um estigma que, infelizmente, tem acompanhado o sindicalismo nos últimos anos, com alguma lamentável marginalização de seus dirigentes e a quase sempre equivocada ideia difundida de serem os sindicatos mais um entrave do que uma solução aos conflitos trabalhistas.

Se há muito tempo já se discute sobre a necessidade de alteração do modelo de sindicalismo vigente desde a Constituição Federal de 1988, a pandemia coloca a sociedade em confronto com as vicissitudes do sistema, maléfico também aos próprios sindicatos, que, em razão da desestruturação causada pelo fim compulsoriedade da contribuição sindical com a manutenção da unicidade (“monopólio”), são constantemente acusados de serem inadequados ao mercado de trabalho atual.

A alteração constitucional para garantir a existência de um modelo sindical livre, seguindo os termos da Convenção nº 87 da OIT, representaria um progresso que não foi alcançado pelo texto publicado no Diário Oficial daquele 05 de outubro de 1988 pela Assembleia Nacional Constituinte. Progresso que beneficiaria trabalhadores, empreendedores, organizações sindicais, Estado e o próprio Direito do Trabalho, que tem a força coletiva em sua origem e como um fundamento de sua própria existência.

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ii

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/114196/1987_01%20a%2004%20de%20Fevereiro_044.pdf? sequence=1 (acesso em 18/04/2020, às 10h).

iii

BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Direito Sindical – 7 ed. – São Paulo : LTr, 2018, p. 72.

iv  

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441245 (acesso em 18/04/2020, às 10h).

v

http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441651&ori=1 (acesso em 18/04/2020, às 10h).

vi

https://www.poder360.com.br/economia/microepequenasempresasdominaramcriacaodeempregosem2019/ (acesso em 18/04/2020, às 10h).

vii

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/12/brasilperde15milhaodesindicalizadosaposreformatrabalhista.shtml (acesso em 18/04/2020, às 10h).