
Pessoas reagem a incentivos[1]. Essa máxima da economia, tão intuitiva quanto correta, está materializada em diversas regras tributárias. A nota fiscal paulistana, que gera créditos a serem usados pelo tomador de serviços no pagamento do seu IPTU, por exemplo, foi uma forma inteligente de incentivar consumidores a exigir que os estabelecimentos emitissem notas fiscais.
O Programa paulista “Nos Conformes”, ao classificar bons e maus contribuintes, e àqueles conceder condições melhores na relação com o Fisco, busca dar esses “empurrões” para que contribuintes melhorem seus controles e busquem maior grau de aderência às normas tributárias.
Nem sempre estruturar um bom incentivo é fácil. Diretores de creches em uma cidade israelense, por exemplo, incomodados com os atrasos de pais para buscarem seus filhos, criaram uma pequena multa por hora de atraso[2]. A intenção era evitar gastos com horas extras de professores.
O resultado, porém, foi o aumento significativo no número de pais retardatários nas semanas seguintes. Uma primeira hipótese explica esse desfecho: multas pequenas foram incapazes de gerar mudança de comportamento naqueles que já estavam propensos a atrasar. Outra hipótese, mais sofisticada, é que o incentivo moral (evitar a culpa pela negligência) foi substituído pelo incentivo econômico (pagar a multa).
Normas bem desenhadas devem considerar como organizações e pessoas reagirão aos seus mandamentos, e, havendo desvio do resultado esperado, devem ser redesenhadas, para que evitem perpetuar situações esdrúxulas ou disfuncionais.
Aqui encontramos o objeto central deste artigo. Até 2015 vigia uma norma processual disfuncional, maximizada pela jurisprudência dominante, em que a condenação aos honorários de sucumbência diminuía, quase anulava, o risco para a Fazenda Pública litigar.
Conforme previa o artigo 20, §4º, do CPC/73, nos casos em que a Fazenda fosse vencida, a fixação de honorários seria feita com base no critério de equidade, não se limitando aos limites percentuais mínimo e máximo definidos pelo §3º do dispositivo.
Nesse cenário de risco mínimo, o modelo de cobrança dos créditos tributários espelhava uma baixa racionalidade no ajuizamento e condução das execuções fiscais.
Até junho de 2016, a taxa de recuperabilidade dos débitos inscritos em dívida ativa era de apenas 2,1% do crédito tributário em cobrança, abrangendo R$ 3,7 bilhões dos R$ 163 bilhões ajuizados entre 2011 e 2015[3].
Com a reformulação das regras processuais pelo Código de Processo Civil vigente a partir de 2015, os honorários devidos nas causas em que a Fazenda Pública for parte (artigo 85, §3º[4]) passaram a observar critérios objetivos de fixação, sendo definidos de acordo com faixas percentuais variáveis conforme o valor da condenação ou do proveito econômico obtido pelo litigante.
Na esteira desse novo paradigma de risco, algumas medidas de redução da litigiosidade já foram adotadas pela União, em atitude mais responsiva, como a ampliação das hipóteses de dispensa de contestar e recorrer previstas pela PGFN, a autorização para o arquivamento de execuções fiscais inferiores a um milhão de reais, a instituição do Regime Diferenciado de Cobrança de Créditos Tributários (RDCC) e a possibilidade de oferecimento de garantia e apresentação de Pedido de Revisão de Dívida Inscrita previamente ao ajuizamento do feito executivo[5].
Esse cenário indicativo de uma redução da litigiosidade e maior racionalidade do sistema, contudo, poderá ser enfraquecido pela interpretação a ser formada pelo STJ sobre a aplicação do artigo 85 do CPC/15.
Em setembro deste ano, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça começou a julgar o Resp nº 1.644.077/PR, no qual apreciará os critérios para a fixação de honorários sucumbenciais devidos pela Fazenda Pública em razão da exclusão de sócia indevidamente incluída no polo passivo de execução fiscal, julgamento que pode impactar os recursos repetitivos REsp 1.358.837 e REsp 1.812.301, também sobre os parâmetros para a determinação dos honorários devidos em casos envolvendo o ente público.
Para a Fazenda Nacional, os limites objetivos previstos no §3º do artigo 85 devem ser substituídos pela equidade, definida no §8º. Sem nos estendermos nessa crítica, chama atenção a desconexão entre a escolha legislativa (§8º, equidade em casos de valor inestimável ou irrisório) e a intenção da PGFN (equidade nas causas em que for parte). É desolador constatar também, que, após tantos avanços, a PGFN busca retornar ao antigo modelo de litígio sem risco.
Custos processuais e de sucumbência são apontados em diversos estudos[6] como importante desincentivo ao litígio, e devem ser considerados na construção de um sistema ótimo de dissuasão da litigância.
A sucumbência tem papel relevante na teoria básica da litigância de Louis Kaplow e Steven Shavell[7], estruturada sobre os fatores econômicos que influenciam as partes na escolha a respeito do início e da manutenção de medidas judiciais: o custo do processo e a expectativa de ganho decorrente de um julgamento favorável e probabilidade de êxito/perda.
A opção pela via judicial deverá prevalecer quando o custo for inferior à expectativa de ganho resultante de seu julgamento, considerada a probabilidade de êxito.
Para a Fazenda Pública, a avaliação de risco para a cobrança da dívida ativa na via judicial já parte de um baixo custo do processo, representado pela isenção no pagamento de custas processuais (artigo 4º da Lei nº 9.289/96, na esfera federal) e pela inexigibilidade de garantias ou encargos legais (a exemplo dos previstos no Decreto-Lei nº 1.025/69), ao contrário do que se observa em relação aos contribuintes.
Com as regras trazidas pelo artigo 85 do Código de Processo Civil para a fixação de honorários sucumbenciais[8], passou a vigorar um paradigma de condenações que equipara fisco e contribuintes, dando relevância à sucumbência entre os fatores a serem considerados pelas partes ao litigar.
Assim, se mantida a lógica inaugurada pelo CPC/15, o custo do processo passa a ter relevância na avaliação de risco para ajuizamento de execuções fiscais, incentivando a Administração tributária a aprimorar seu filtro de controle da legalidade das inscrições em dívida ativa e de pedidos de responsabilização tributária.
Essa interpretação da lei processual é a que se alinha, inclusive, ao artigo 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro[9], vinculando a aplicação de conceitos abstratos, como a equidade, aos critérios objetivos de avaliação de risco.
Caso a aplicação da equidade prevaleça nas causas fazendárias, como apontam os primeiros votos proferidos no Resp nº 1.644.077/PR, a autorização para a fixação de honorários sucumbenciais em patamares inferiores às faixas de valor previstas no artigo 85, §3º, poderá sinalizar à Fazenda Pública que o litígio é uma boa aposta.
Esse resultado anulará, a uma só vez, a regra expressa estruturada pelo Parlamento, com ampla participação da sociedade e capitaneada por alguns representantes do Judiciário[10], e o incentivo econômico criado para desestimular o ajuizamento e condução indiscriminados de execuções fiscais.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
[1] “Os formuladores de políticas públicas nunca deveriam esquecer os incentivos, visto que muitas políticas mudam os custos ou benefícios com que as pessoas se deparam e, portanto, alteram comportamentos.” N. Gregory Mankiw, Introdução à Economia, Ed. Elsevier, 2ª ed., 2001, pág. 7.
[2] Freakonomics. O lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta. Steven Levitt e Stephen Dubner, Ed. Campus, 2005, pág. 21.
[3] Os dados expostos nesse artigo foram abordados também em nosso artigo, de maior fôlego, HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA NO NCPC. RISCO, ESCOLHA E APOSTA NO CONTENCIOSO JUDICIAL TRIBUTÁRIO. In: Medidas de Redução do Contencioso Tributário e o CPC/2015. Ed. Almedina, 2017. Disponível em: https://mannrichvasconcelos.com.br/honorarios-de-sucumbencia-no-ncpc-risco-escolha-e-aposta-no-contencioso-judicial-tributario/
[4] Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.
§3º Nas causas em que a Fazenda Pública for parte, a fixação dos honorários observará os critérios estabelecidos nos incisos I a IV do § 2º e os seguintes percentuais:
I – mínimo de dez e máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido até 200 (duzentos) salários-mínimos;
II – mínimo de oito e máximo de dez por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de 200 (duzentos) salários-mínimos até 2.000 (dois mil) salários-mínimos;
III – mínimo de cinco e máximo de oito por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de 2.000 (dois mil) salários-mínimos até 20.000 (vinte mil) salários-mínimos;
IV – mínimo de três e máximo de cinco por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de 20.000 (vinte mil) salários-mínimos até 100.000 (cem mil) salários-mínimos;
V – mínimo de um e máximo de três por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de 100.000 (cem mil) salários-mínimos.
[5] As medidas mencionadas estão previstas nas Portarias PGFN nº 502/2016, nº 396/2016 e nº 33/2018.
[6] Nesse sentido, confira-se os seguintes artigos:
KNUTSEN, Erik S. The Cost of Costs: The Unfortunate Deterrence of Everyday Civil Litigation in Canada, disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1667722>, acessado em 18 de dezembro de 2020.
HAY, Bruce L. Fee Awards and Optimal Deterrence. Disponível em: <https://core.ac.uk/download/pdf/217425764.pdf>, acessado em 18 de dezembro de 2020.
[7] KAPLOW, Louis. SHAVELL, Steven. Economic Analysis of Law. Disponível em: <http://www.law.harvard.edu/faculty/shavell/pdf/99_Economic_analysis_of_law.pdf>. Acessado em 29 de janeiro de 2017.
[8] Em especial a definição do percentual de condenação a partir do benefício econômico pretendido (nesse caso, o valor dos créditos tributários a serem cobrados) e a possibilidade de cumulação dos honorários a cada fase recursal (art. 85, §3º e §11).
[9] Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
[10] Não à toa o novo Código Processual chamado, por alguns ministros, de Código Fux, em alusão ao atual presidente do STF, Ministro Luiz Fux.