Marcelo Cama Proença Fernandes

Na conclusão do julgamento da ADPF 357, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu uma importante decisão. A Suprema Corte brasileira declarou a não recepção, pela Constituição da República, do art. 187 do Código Tributário Nacional e do art. 29 da Lei de Execuções Fiscais e, ainda, determinou o cancelamento do verbete n. 563 da Súmula do Tribunal. Com isso, afastou, da ordem normativa, as previsões legais de preferência no pagamento de créditos federais e de prioridade da União Federal em sede de execuções fiscais, quando houver concorrência com outros entes federados.
Esse ato decisório, proferido em arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta pelo Governador do Distrito Federal, com o apoio da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, possui grande significado por si só, dada a sua enorme importância jurídico-constitucional e as relevantes implicações práticas que trará na cobrança de débitos por milhares de entes federados Brasil afora. Daí a razão pela qual ganhou imediata repercussão, inclusive fora da comunidade jurídica.
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Contudo, parece-nos que essa decisão também pode ser examinada em um contexto mais amplo, do qual se extrai uma importante tendência de mudança de posicionamento do Supremo Tribunal Federal a respeito do sentido e do alcance do federalismo brasileiro.
Embora o princípio federativo tenha estado presente em todas as constituições republicanas do país, o fato é que o legislador constituinte de 1988 herdou, da ordem anterior, uma organização estatal quase unitária. Naquele momento, o país vivia o auge do processo de centralização e de enxugamento das competências, da autonomia e das atribuições dos demais entes federados frente à União.
<blockquote class="jota-article__eye">A Carta Constitucional de 1988 inaugurou, em todos os sentidos, uma nova ordem jurídica no Brasil. E o federalismo não ficou imune às relevantes mudanças trazidas pela nova ordem constitucional.</blockquote>
Dentre os dispositivos constitucionais que definem os traços do pacto federativo do Estado brasileiro na Constituição de 1988, o art. 1º estabelece que a República Federativa do Brasil é “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Além disso, o art. 18 prevê que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. Do mesmo modo, o inciso I do § 4º do art. 60, definindo uma das chamadas cláusulas pétreas, dispõe que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado”. Por fim, a última parte do inciso III do art. 19 da Constituição veda a instituição, pelos entes federados, de preferências entre si.
O exame do complexo de normas acima referido deixa clara a circunstância de que houve uma verdadeira reconfiguração na federação brasileira. A nossa Carta Constitucional, nos termos dos arts. 1º, 18, 19, III e 60, § 4º, I, consagrou a ideia de federalismo cooperativo, de paridade ou de consenso, que constitui um relevante postulado a orientar a interação, muitas vezes revestida de certo grau de antagonismo de interesses e consequente tensão institucional, entre os entes federados. Trata-se de um vetor constitucional que estabelece a noção de que os integrantes da federação compartilham competências, repartem ônus e benefícios em nível nacional e atuam de forma conjunta no sentido do alcance dos objetivos do País, notadamente aqueles inscritos nos arts. 1º, 3º e 4º da Carta da República. Há, entre os diversos integrantes da federação, uma relação de autonomia e interdependência, sem que qualquer um deles possa se colocar em uma posição de superioridade hierárquica ou de precedência em relação aos demais.
Mais que isso: o resgate do federalismo no país teve por escopo potencializar-se o caráter democrático e consensual da Carta Política de 1988. Os entes federados passaram a funcionar como atores políticos com poder de veto, instituindo uma sistemática constitucional de fragmentação do poder e de incremento dos mecanismos de controle recíproco nas diversas facetas de atuação estatal. O legislador constitucional, desconfiado da política e preocupado com a excessiva concentração de poderes em apenas um ente público (Poder Executivo Federal), desenhou a ordem institucional brasileira de modo a aumentar, no limite, a repartição de competências em todos os níveis de atuação do Estado.
Nada obstante essa clara escolha jurídico-constitucional estampada na Carta de 1988, o fato é que, na prática, o funcionamento da ordem política brasileira, no que se refere ao federalismo, pouco mudou em relação ao sistema anterior. A concentração de poderes políticos, administrativos, normativos e financeiros na União Federal sofreu poucas alterações, de modo que a federação brasileira, no início do atual regime constitucional, manteve-se em um patamar semelhante àquele verificado nos anos anteriores à Constituição.
Para além da cultura política brasileira, cujo processo de adaptação à nova ordem federativa mostrou-se compreensivelmente lento e hesitante, também contribuiu para essa realidade de pouca ou nenhuma mudança, o comportamento jurisdicional do Supremo Tribunal Federal.
Em decisões relativas a temas tão diversos quanto o piso nacional dos professores da educação básica, preferência de créditos tributários federais em detrimento dos demais entes federados e competência legislativa para variadas matérias (informações que devem ser discriminadas nas contas telefônicas, critérios de outorga de diplomas de conclusão de nível médio nas escolas locais, gratuidade de pontos adicionais de TV por Assinatura, disponibilização, para os consumidores, de informações sobre juros e rendimentos de aplicações financeiras, definição do conceito de pesca artesanal, proibição de cobrança de assinatura básica pelas companhias telefônicas, dentre outros), a Suprema Corte, ao longo dos anos, hipertrofiou, por intermédio de sua jurisprudência, o rol de atribuições administrativas e normativas da União Federal em desfavor dos demais entes federados.
Chegou-se ao ponto de o ministro Gilmar Mendes alertar, no julgamento da ADI 4.167/DF, que “entre nós, o discurso federativo é predominantemente um ‘discurso de domingo’ (...) Falamos em favor da Federação aos domingos e, durante a semana, trabalhamos contra a Federação”.
Esse cenário começou a mudar, ainda que lentamente, ao longo da década passada.
Em julgamentos referentes à temática da repartição de competências legislativas (na qual a União Federal dispõe sobre normas gerais e os Estados/Distrito Federal sobre questões específicas), o Supremo Tribunal Federal, atento à importância axiológica de que se reveste o postulado federativo, passou a saudar o exercício pleno das atribuições legislativas pelos demais entes federados, pois ele permite, na visão da Corte, a instituição de verdadeiros laboratórios legislativos(conforme a expressão empregada pelo ministro Gilmar Mendes) que viabilizam a implementação de novas e exitosas experiências, as quais podem eventualmente ser adotadas em nível nacional (ADI 2.922).
Portanto, a Suprema Corte brasileira tem acertadamente revisitado a sua jurisprudência em torno da distribuição de competências normativas entre os entes da federação. Amparando-se na verificação do exato alcance do postulado federativo e na necessidade da observância das realidades locais, o Tribunal passou a se distanciar de uma postura jurisprudencial mais rígida em torno da atribuição de normatização geral pela União Federal, outorgando aos Estados e ao Distrito Federal um espaço mais livre e amplo de atuação legislativa, inclusive no âmbito constitucional. Trata-se de um passo jurisdicional extremamente bem-vindo e absolutamente consentâneo com a moderna dimensão normativa e axiológica da ideia de federação.
Nesse mesmo sentido, observe-se o magistério jurisdicional do ministro Luiz Fux, que, tratando da competência legislativa dos entes federados, ressaltou que “o princípio federativo brasileiro reclama, na sua ótica contemporânea, o abandono de qualquer leitura excessivamente inflacionada das competências normativas da União (sejam privativas, sejam concorrentes), bem como a descoberta de novas searas normativas que possam ser trilhadas pelos Estados, Municípios e pelo Distrito Federal, tudo isso em conformidade com o pluralismo político, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a descoberta de novas searas normativas que possam ser trilhadas pelos Estados, Municípios e Distrito Federal” (ADI 4.060).
Essa clara tendência de resgate do princípio federativo acentuou-se nos últimos anos e superou as fronteiras da divisão de competências legislativas.
Logo no início da pandemia de Covid-19,  o Supremo Tribunal Federal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 6.431 MC-Ref/DF), reconheceu a competência concorrente dos entes federados para adotar medidas sanitárias de combate à doença, inclusive podendo legislar a respeito. Ou seja, potencializando a dimensão jurídico-constitucional do princípio federativo, a Suprema Corte outorgou, aos Estados e Municípios, a relevante tarefa de, conjuntamente com a União Federal, elaborar e implementar as providências de enfrentamento à grave crise de saúde pública por que passa o país. Chama a atenção uma específica passagem daquela decisão, na qual o Tribunal alertou que “O pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo art. 23 da Constituição Federal. É grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os Estados e os Municípios”.
Duas constatações saltam aos olhos na passagem jurisdicional e no próprio ato decisório acima referidos: (i) a aplicação, pelo Tribunal, da dupla dimensão do federalismo brasileiro, no sentido da repartição de competências e da fragmentação da atuação político-estatal, evitando-se, com isso, a concentração de poderes em um dado ente federado e permitindo-se um saudável incremento da sistemática de controle recíproco entre os entes federados e (ii) uma decisão dessa natureza e com tal contundência seria impensável há alguns anos. A Corte já caminhava, naquele momento, a passos largos no sentido da efetivação do real desejo do legislador constitucional em matéria de federalismo.
E então se chegou a um novo ponto dessa trajetória na semana passada, com nada menos que duas importantes decisões no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Na segunda-feira, a Min. Rosa Weber deferiu o pedido de medida cautelar deduzido em sede de arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada por dezenove governadores estaduais e do Distrito Federal para impedir a convocação das referidas autoridades pela CPI da Pandemia. Dentre outros fundamentos, a Relatora apontou que essa convocação constituiria um desrespeito ao princípio federativo, sobretudo na sua dimensão solidária, consensual e cooperativa. O comparecimento obrigatório dos Governadores à Comissão caracterizaria, em última análise, uma indevida intervenção de caráter federal nos entes estaduais e distrital (ADPF 848 MC/DF).
E, na quinta-feira, o Plenário da Corte concluiu o julgamento da ADPF 357, declarando, por expressiva maioria de nove votos, a não recepção, pela Constituição da República, do art. 187 do Código Tributário Nacional e do art. 29 da Lei de Execuções Fiscais. Determinou, ainda, o cancelamento do verbete n. 563 da Súmula do Tribunal, que vigia há quarenta e quatro anos. Com isso, reconheceu a existência de paridade entre todos os entes federados no âmbito de execuções fiscais e demais medidas envolvendo a cobrança e o pagamento de créditos tributários e não tributários.
Essa última decisão denota a existência de uma situação de absoluta isonomia entre os componentes da federação na cobrança da dívida ativa federal, estadual, distrital e municipal, afastando-se um lamentável quadro fático no qual a União Federal simplesmente se habilitava em execuções e demandas judiciais promovidas pelos Estados e Municípios. Ainda mais grave, a União muitas vezes surgia nos feitos judiciais, quando, após enorme esforço empreendido pelos Procuradores locais, finalmente era possível penhorarem-se ativos dos devedores. Dada a prioridade do crédito federal, emergia uma realidade na qual os servidores dos demais entes federados acabavam trabalhando em benefício da União. A mudança desse cenário permitirá a racionalização da cobrança de débitos tributários e não tributários, viabilizando, com isso, um incremento na eficiência administrativa.
O atual cenário jurisprudencial, agora reforçado pelas duas decisões proferidas na última semana, demonstra que o Supremo Tribunal Federal alcançou um ponto de sua orientação jurisdicional no qual se mostram substancialmente reduzidas as distinções, preferências e hierarquias na perspectiva da federação brasileira e em que se protege, de forma efetiva, um relevante espaço de autonomia política, legislativa e administrativa de cada ente federado. Mais que isso: a Corte tem admitido a relevância constitucional do federalismo paritário, cooperativo e solidário no Brasil. Racionaliza-se a atuação dos poderes político-estatais, prestigia-se a democracia de consenso desenhada na Constituição Federal e potencializa-se o legítimo sistema de controle recíproco existente entre os múltiplos atores de veto estabelecidos na Carta da República.
Há mais a avançar, é certo. Mas, finalmente, o federalismo parece ter deixado os discursos dominicais, para se consolidar como uma bem-vinda realidade no cenário constitucional brasileiro.
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Fotos produzidas pelo Senado

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JOTA

Supremo afastou prioridade da União em execuções fiscais, quando houver concorrência com outros entes federados

A evolução na jurisprudência do STF e o surgimento de um novo federalismo

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