Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“O que sabe ensina; o prudente governa; e o sábio reza.”
- Marquês de Pombal.</blockquote>
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Celebra-se, na data de hoje, o aniversário de 265 anos do estabelecimento da primeira “Denominação de Origem Controlada” (DOC) de vinhos do mundo: a do “Vinho do Porto”. Em 10 de setembro de 1756, El-Rei D. José I publicou um Alvará Régio instituindo a “Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto-Douro”, empresa monopolista, que tinha por objetivo demarcar a região do Douro, valorizando a produção local e controlando o comércio exportador do seu cobiçado vinho. Repare, cara leitora, que o Alvará estabelecia como uma das prioridades da companhia o abastecimento do mercado brasileiro. Também conhecida como “Real Companhia Velha”, a constituição da empresa, ainda hoje em operação, foi um fato de grande significado político, diplomático e econômico.
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O empreendimento se incluía na política mercantilista do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Sob forte orientação das idéias iluministas da época, Pombal foi um grande reformador do Estado e da administração portuguesas. Aboliu a escravatura nas Índias, reformou o sistema tributário, reorganizou as forças armadas e instituiu um sistema de proteção industrial e promoção comercial baseado nas associações corporativas de caráter monopolista. Jurista e diplomata experiente, durante o reinado de D. João V, Pombal foi embaixador em Londres e em Viena, quando travou íntimo contato com as potências comerciais, financeiras e militares da época e encontrou inspiração para a reconstrução do estado lusitano que levou à cabo como Secretário de Estado de D. José I.
O seu período como diplomata na Corte de Saint James, entre 1738 e 1745, é assaz interessante. Recorde, cara leitora, que se estava sob a égide dos dois Tratados de Methuen (1703), que estabeleciam uma aliança militar e comercial entre Portugal e a Inglaterra. O tratado comercial, conhecido o “Tratado dos Panos e Vinhos”, estabelecia que os produtos têxteis ingleses entrariam no mercado português livres de quaisquer taxas e que, em contrapartida, os vinhos portugueses entrariam no mercado inglês com um desconto de um terço em relação às tarifas alfandegárias cobradas sobre a importação dos vinhos franceses. Era a época da Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1714), na qual Espanha e Inglaterra estavam em lados opostos e Portugal, aliado da França, que apoiaria o pleito espanhol, passava agora para a esfera de influência inglesa, franqueando suas bases navais e recebendo, em troca, o alento comercial de que tanto necessitava, uma vez que as rendas do açúcar brasileiro se esvaíam em face da competição anglo-holandesa. Não se engane, contudo, cara leitora. Era nada mais do que um breve alento: o comércio bilateral seguia ainda fortemente deficitário para Portugal, que tinha de importar não somente bens manufaturados, mas trigo e milho também.<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Quando Pombal assume a representação em Londres, Portugal tinha como principais objetivos estratégicos a manutenção de suas possessões ultramarinas, em particular as províncias do sul do Brasil, com a defesa da posse da Colônia do Sacramento e a livre-navegação do Rio da Prata como prioridades máximas. Além disso, havia, também, a questão da ilha de Salsete, na Índia, cujo controle a coroa portuguesa havia perdido. Pombal fez inúmeras gestões diplomáticas junto ao gabinete do poderoso sir Robert Walpole, solicitando ajuda militar inglesa para resolver essas questões – além protestar energicamente contra outras ofensas à soberania portuguesa – com base no direito internacional, recebendo, sempre, porém, respostas evasivas ou protelatórias. Tamanho o desprezo do gabinete pelas gestões de Pombal que este solicitara – e recebera – autorização de Lisboa para ignorar os canais diplomáticos com o governo inglês e apelar diretamente ao rei George II.<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Por instrução da Secretaria de Estado em Lisboa, o marquês conduziu um aprofundado estudo das relações bilaterais, registrado no seu relatório “Relação dos Gravames do Comércio e Vassalos de Portugal na Inglaterra”. Carvalho percebera que os termos da relação bilateral eram muito desbalanceados e que os ingleses viam Portugal não como um aliado, mas como um vassalo. Apontava ele que “o inglês imagina, por prevenção inata, que nasceu para senhor dos cabedais do mundo”<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e que a parte de Portugal nas rendas de seu próprio comércio exterior era deveras pequena.<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> “Todo o dinheiro que gira é dos ingleses”,<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> remarcava. Era preciso, portanto, recalibrar os termos dessa aliança, o que demandaria muito tato diplomático.
Isso Pombal tinha de sobra. Ainda em Londres, o marquês trava íntimo contato com a “Companhia das Índias Orientais”, uma companhia majestática britânica que tinha o monopólio do comércio de chá e especiarias das colônias inglesas. Pombal estudou minuciosamente a estrutura jurídica da companhia e compreendeu o peso e o significado que a nova forma de organização empresarial tinha para o comércio e para as relações internacionais. Londres, em suma, fora uma educação para o marquês, que ansiava por uma oportunidade de dar o troco, implementando o novo sistema societário no império lusitano.
De volta a Lisboa, após um período de ostracismo, o novo rei, D. José I, o nomeia, em 1750, Ministro dos Negócios Estrangeiros e, em 1755, Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino. Nessa posição, análoga à de Primeiro-Ministro, Pombal colocará em prática sua visão política de recolocação de Portugal no sistema internacional como uma potência, a partir de uma ampla reforma centralizadora interna, conduzida com mão de ferro, na qual a instituição da Real Companhia Velha, estruturada nos moldes da Companhia das Índias Orientais, era uma das pedras de toque. A companhia foi um sucesso estrondoso. Ao estabelecer a primeira denominação de origem geográfica do mundo, a empresa valorizou a produção do vinho do porto, aumentando o seu preço em Londres, cujos lucros eram, por sua vez, reaplicados no desenvolvimento da região. O êxito da Real Companhia Velha, entretanto, provocou forte reação da Inglaterra, culminando com o “Motim do Porto” (1755), uma revolta, supostamente “popular”, contra a instituição da companhia. Pombal, personalidade forte que era, a reprimiu brutalmente, defendendo a companhia sem concessões e não aceitando pressões contra ela de onde quer que viessem. No good deed goes unpunished.
A fundação da Real Companhia Velha não foi apenas um enorme sucesso do ponto de vista comercial e diplomático. Foi, na verdade, uma verdadeira revolução no comércio internacional, disparando inúmeros processos de valorização da produção local por estratégicas de estabelecimento de “Indicações Geográficas” (IGs). Ao valorizar, proteger e promover a produção e os modos de vida da região do Alto-Douro, Pombal alterou para sempre os termos do comércio agrícola internacional, dando às regiões produtoras um poderoso trunfo diplomático e criando um movimento de valorização regional, que, ainda nos dias de hoje, está em plena expansão. Sim, cara leitora, a pujança econômica de regiões como Champagne, Bordeaux, Gruyères e Emilia-Romagna, deve muito à genialidade da diplomacia lusitana.
<blockquote class="jota-article__eye">Dados compilados em 2018 pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) dão conta da existência de 65.900 IG protegidas, em 92 países.<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> A Alemanha sozinha contava com o maior número de IGs em 2018: 15.556.</blockquote>
Vinha seguida pela China (7.247) e pela Hungria (6.683). Portugal contava com 5.998 e a França com 5.988. O Brasil, do outro lado do espectro, contava em 2018 com apenas 68 IGs. Atualmente esse número se elevou um pouco para 92 registros. Estamos bem atrás da Índia e da Turquia, por exemplo, que em 2018 detinham 330 e 398 IGs respectivamente. Em suma, cara leitora, estamos muito atrás da média internacional, havendo um enorme espaço para agregarmos ainda mais valor à nossa produção agropecuária, por um processo de demarcação regional, que se consolida pela valorização da cultura e do meio-ambiente das populações locais.
Os benefícios de uma política de demarcação e fortalecimento das denominações geográficas são imensos. Tome-se, cara leitora, por exemplo, o caso do café, cuja produção foi fortemente afetada pelas últimas geadas. O café é o produto brasileiro com o maior número de IGs registradas, atualmente 12.<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Os mercados internacionais de café são segmentados em dois grandes grupos: o tradicional e alternativo, ou premium. Nos mercados tradicionais, os contratos de compra e venda atendem a dois padrões fixos, o modelo-padrão norte-americano da Green Coffee Association (GCA) e o modelo-padrão europeu da European Coffee Federation (ECF). Esses contratos-padrão são bastante rígidos, com termos assaz protetivos da posição do comprador. Nesses mercados tradicionais, o produtor ou vendedor consegue o preço-base futuro e precisa proteger a sua posição contra a crescente volatilidade causada pelas mudanças climáticas através de uma sofisticada estratégia de hedge e seguros.
As negociações nos mercados alternativos, ou premium, de café, por outro lado, podem ser muito mais favoráveis para o produtor ou vendedor. Nesses mercados, negociam-se cafés especiais, que tenham, por exemplo, uma Indicação Geográfica (IG), cuja produção atenda à critérios ambientais, sociais e de governança, reunidos na conhecida sigla em inglês “ESG”. Normalmente, para o mercado de café, a padronização ESG envolve algum tipo de certificação fair trade, por exemplo. Nesses contratos premium, o produtor ou vendedor consegue não apenas um preço muito superior àqueles praticados nos mercados tradicionais, mas, também, e talvez mais importante, a possibilidade de fechar o preço em algum momento futuro, com as cláusulas chamadas PTBF (price to be fixed). Para o exportador de um café fair trade, com denominação de origem controlada, por exemplo, pode-se negociar um contrato premium com cláusula PTBF de seller´s call, isto é, o produtor/vendedor tem, pelos termos do contrato, o direito de determinar a data de fixação do preço. Isso pode ser crucial no caso de uma intempérie climática como a geada que vem assolando os cafezais nas últimas semanas: em um contrato alternativo com seller´s call, o vendedor poderia, em tese, ter o direito de fixar o preço spot atual, reduzindo drasticamente as suas perdas. Nos mercados internacionais de commodities, poder negociar no segmento premium a partir de IGs fortes e bem estabelecidas, simplesmente não tem preço.
O aniversário de 265 anos do estabelecimento da primeira IG do mundo para um vinho e da fundação da nossa querida Real Companhia Velha é uma efeméride que merece ser amplamente celebrada. Representou a criação de um verdadeiro trunfo diplomático, que tem o potencial de inverter os termos de negociação internacional entre vendedores e compradores, trazendo um impulso exponencial para o desenvolvimento das regiões produtoras, que podem ter o seu modo de vida, a sua cultura e o seu meio-ambiente respeitados, valorizados e promovidos. Mais uma obra de gênio da diplomacia lusitana, a ser louvada e reproduzida Brasil afora. De minha parte, festejarei a efeméride com uma garrafa de Dom José, uma caixa de Romeo y Julieta e um exemplar amarelado do “Perfil do Marquês de Pombal”, de Camilo Castelo Branco. Afinal, cara leitora, “não há amor que resista a vinte e quatro horas de filosofia”.
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<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Francis, A. D. “John Methuen and the Anglo-Portuguese Treaties of 1703.” The Historical Journal, vol. 3, no. 2, 1960, pp. 103–124.
<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Apud AZEVEDO, J.L. de. O Marquês de Pombal e sua época. Lisboa: Texto, 2018, loc. 377.
<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ibid, loc. 401.
<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ibid, loc. 438.
<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ibid, loc. 431.
<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/en/wipo_pub_941_2019-chapter5.pdf
<a href="applewebdata://4589B636-601D-4D42-9A10-DFCEDB9DACC3#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/62550507/cafe-e-o-produto-com-maior-numero-de-indicacoes-geograficas-no-brasil

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