Marcelo Malheiros Cerqueira

Há alguns anos, mas especialmente desde 2018, a moldura normativa do processo eleitoral brasileiro tem sido colocada à prova diante da nova realidade imposta pelas redes sociais no ambiente digital.
De um lado, as campanhas logo se adaptaram à dinâmica em que a informação se difunde em um ritmo alucinante. De outro, as instituições eleitorais tiveram – e ainda têm – significativas dificuldades em lidar com o ecossistema digital. Bem debaixo do seu radar, empresas de tecnologia assumiram um poderio inimaginável; outsiders populistas ascenderam na política por caminhos até então heterodoxos; disfunções associadas à livre expressão amplificaram-se, formando uma ensurdecedora cacofonia.
De forma simbiótica, a desinformação, os discursos de ódio e as manifestações antidemocráticas tomaram conta das manchetes de jornais. Corrupção, desigualdade e pobreza, entre tantos outros problemas crônicos da sociedade brasileira, muitas vezes assumiram o papel de meros coadjuvantes.
O tempo foi passando e essas disfunções não se dissiparam. A desordem informacional no ambiente digital, um fenômeno vivenciado em escala global, deu ensejo a outro igualmente preocupante: a desordem ou entropia institucional<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Na conjuntura das eleições de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou-se alvo de incessante escrutínio. Alguns setores da população e do governo começaram a dirigir críticas, muitas vezes distorcidas, falsas e ofensivas, à atuação da Corte e à figura dos seus integrantes. Em reação, em março de 2019 o Supremo instaurou de ofício o Inquérito nº 4.781 (<a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-pauta-acao-que-pode-influenciar-inqueritos-da-fake-news-e-atos-antidemocraticos-27092022">inquérito das fake news</a>), no qual assumiu o papel de inquisidor e julgador de seus críticos.
Desde então, não faltaram críticas ao autoritarismo do inquérito. Mas a racionalidade, como vaticinou David Hume há quase três séculos, é escrava das paixões. Um misto de autoridade acadêmica com cegueira ideológica cuidou de legitimar a medida com contornos inquisitivos pela via de um conveniente argumento de exceção. A democracia poderia militar, em sua própria defesa, contra as próprias salvaguardas democráticas – mesmo quando ausentes atos violentos ou gravemente ameaçadores em face do regime político ou de suas instituições.
Essa justificativa dos meios pelos fins foi o embrião de algo que hoje, no cenário eleitoral, ganha preocupantes contornos de censura à imprensa e à livre expressão. O Judiciário, mais uma vez vestindo-se de defensor da democracia, arvora-se como censor da verdade – e, novamente, por caminhos questionáveis.
É no ápice dessa controvérsia que o TSE inova com a Resolução nº 23.714, de 20 de outubro de 2022. Da possível censura de conteúdos à suspensão de contas, canais, perfis e até plataformas, pretende-se combater a desinformação com a mesma verve que embasou a instauração do inquérito das fake news.
A fragilidade de argumentos estritamente jurídicos para tamanha investida é gritante. O Procurador-Geral da República precisou de apenas um dia para ajuizar ação direta de inconstitucionalidade contra a resolução, questionando suas disposições e a extrapolação do poder regulamentar do tribunal<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. No dia subsequente, porém, o ministro Edson Fachin negou a suspensão do ato do TSE. Um dos fundamentos é que ela seria como parte de um “arco de experimentação regulatória no ponto do enfrentamento da desinformação e dos seus impactos eleitorais”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Preocupações legítimas com pautas e discursos de ataque à democracia e às suas instituições tornam o argumento da excepcionalidade sedutor. Mas o seu preço é demasiadamente caro. Esse álibi, que já se prestou até à invocação da anacrônica Lei de Segurança Nacional, sustenta há mais de três anos a tramitação do inquérito das fake news – sem linha investigativa, sem delimitação circunstancial ou temporal, sem nenhuma acusação formal pelo Ministério Público. Haja excepcionalidade. Haja experimentação.
Passados quatro anos desde o pleito de 2018, o diagnóstico brasileiro é desalentador: a desordem começa na informação, passa pelas instituições e termina na própria definição do que é democracia. Não sabemos mais discernir quem acusa de quem julga. Também não sabemos discernir o que pode do que não pode ser dito. Não estranha, afinal, que não saibamos discernir verdades de mentiras.
Com nossas lentes embaçadas pelo cenário eleitoral, fragmentamos toda essa complexidade em inúmeros pedacinhos. São os nossos cacos de vidro; com eles, justificamos nossas parciais visões de mundo e opções de voto. Ao acordarmos no dia 31 de outubro, seremos mais uma vez obrigados a juntá-los e colá-los na parede dos nossos banheiros. Então, teremos que decidir entre contemplar nosso distorcido reflexo ou olhar, através do espelho, para o futuro.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Escrevi sobre o tema há cerca de um ano, cf. “A entropia institucional: militarismo, militância ideológica e ‘democracia militante’” (<a href="https://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2021/08/28/hora-de-dissipar-a-tensao-politica-e-retomar-a-harmonia-institucional/">https://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2021/08/28/hora-de-dissipar-a-tensao-politica-e-retomar-a-harmonia-institucional/</a>).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ADI nº 7.261, cf. <a href="https://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-questiona-resolucao-editada-pelo-tse-ha-menos-de-duas-semanas-do-segundo-turno">https://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-questiona-resolucao-editada-pelo-tse-ha-menos-de-duas-semanas-do-segundo-turno</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Cf. <a href="https://obastidor.com.br/justica/fachin-prestigia-tse-4475">https://obastidor.com.br/justica/fachin-prestigia-tse-4475</a>.

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JOTA

Preocupações legítimas com discursos de ataque à democracia tornam argumento da excepcionalidade sedutor, mas preço é caro

A desordem através do espelho

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