Adriano Milanesi Sutto

Guilherme Eleutério Martínez

Não se pode mais fechar os olhos para uma revolução outrora silenciosa que aos poucos vem influenciando a percepção que se tem por dinheiro (real), valor (e formas de gerá-lo) e até mesmo renda (sujeita à tributação).
Os criptoativos já são realidade e, muito antes do que se imagina, farão ainda mais parte do cotidiano de boa parte dos indivíduos e empresas, com as mais diversas funções e aplicações.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Muito mais que uma mera nova “classe” de ativos, os criptoativos tem potencial de influenciar drasticamente não só a maneira como se negociam ativos, produtos e serviços (em razão de sua função de meio de pagamento – as chamadas “moedas virtuais”), mas também abre um leque infinito de possibilidades de se estruturar novos tipos de investimentos lastreados em praticamente qualquer tipo de ativo (ou “valor”) que se possa imaginar (mesmo a priori “ilíquidos”), que podem envolver desde imóveis, ações, títulos de dívida (ou mesmo frações de tais ativos) a créditos de carbono, popularidade de influencers, resultados de eleições presidenciais ou até mesmo um tuíte no famoso aplicativo Twitter (são os chamados ativos “tokenizados”).
Os diversos usos dos criptoativos se fundam na segurança, confiabilidade e eficiência dos sistemas tecnológicos que os regem, que se baseiam na chamada “tecnologia de registro distribuído” (distributed ledger technology – DLT), destacando-se o blockchain (“tipo” de DLT), que funciona como um método descentralizado, transparente e imutável de manter registro de transações em uma grande rede mundial.
Com exceções específicas (i.e., as moedas virtuais emitidas por Bancos Centrais, como já ocorre em países como China e Bahamas), não há uma autoridade central regulando (ou controlando) as transações realizadas dentro da blockchain.
Esses arranjos tecnológicos são a viga-mestra do que hoje se denomina de finanças descentralizadas (em inglês descentralized finance ou DeFi), que são serviços financeiros que se utilizam de moedas virtuais e funcionam com base em algoritmos programados em DLT.
O Ethereum é o maior expoente desse tipo de sistema, por conta da maleabilidade de seu código, que permite a criação de novos “sub-sistemas”, com incontáveis possibilidades.
Atualmente, empréstimos, derivativos, seguros e conversão de moedas estão entre as mais populares aplicações do DeFi, tudo realizado sem o controle estrito por um agente regulador.
A criptomoeda (como o Bitcoin ou Ether), por sua vez, pode ser entendida, de maneira bastante simplista, como uma linha de códigos criptografados que são inseridos cronologicamente em um blockchain, impossível de ser alterado.
A segurança do sistema e a dificuldade significativa de se gerar (via mineração, p.ex.), alterar ou manipular esses registros e códigos é justamente o que cria o valor desse ativo digital no “mundo real”.
<blockquote class="jota-article__eye">Na medida em que há uma confiança geral do mercado sobre esse “ativo digital” e sua utilidade, maior a sua liquidez, valor e possibilidades de uso.</blockquote>
A hype dos criptoativos é tamanha que, apesar dos diversos desafios de ordem regulatória que se colocam à frente, recentemente se anunciou a compra pela Tesla, de Elon Musk, de o equivalente a US$ 1.5 bilhão em Bitcoin. Grandes bancos como JPMorgan, GoldmanSachs e BBVA anunciaram recentemente o início das suas operações com criptoativos.
O Citibank emitiu relatório ao mercado reforçando o otimismo com o potencial disruptivo do Bitcoin como meio de pagamento de negócios globais (redução da exposição cambial, maior segurança e rapidez, menores custo de transação, além da rastreabilidade das operações estão entre os elementos positivos elencados pelo banco).
A Hashdex, gestora brasileira de fundos com exposição a criptoativos, anunciou, em conjunto com a Nasdaq, um índice (Nasdaq Crypto Index) voltado a investidores institucionais que promete mapear os melhores criptoativos do mercado, com base em critérios mais estritos de performance, liquidez e custódia.
E não menos relevante, a Mastercard emitiu comunicado ao mercado informando que criptomoedas passarão a ser aceitas nas redes de cartões da bandeira e o Paypal também passou a oferecer suporte para transações com algumas criptomoedas dentro de seu sistema.
As possibilidades são infinitas e a democratização dos criptoativos é um processo gradativo e imparável. É digno de nota o referido movimento da Mastercard sobre o “cryptocard”, que tende a tornar o ecossistema cripto mais palatável e acessível.
Isso apenas torna de notório conhecimento público (e global) o que já é realidade em algumas partes do mundo: a conversão de criptomoedas em moeda “real” por meio de um cartão que converte a quantidade necessária de criptomoeda para realizar o pagamento na moeda fiduciária que se deseje. Isso aproxima o mercado consumidor do “dia-a-dia” aos criptoativos, o que pode influenciar ainda mais a hype do ecossistema.
Toda revolução no ambiente de negócios prescinde de uma regulamentação jurídica ampla, de modo a trazer segurança aos investidores e players. O Fundo Monetário Internacional (FMI), em detalhado relatório sobre criptomoedas e ativos digitais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, alerta de maneira categórica sobre os riscos de sua utilização para lavagem de dinheiro, terrorismo, evasão fiscal e fraudes.
Talvez sejam os grandes desafios da regulação do ecossistema cripto, mas é muito importante que não se prejudique a capacidade de inovação.
No Brasil, um sandbox regulatório definitivo parece ainda algo distante, apesar dos avanços que já são vistos, como a promoção pelo Banco Central do Brasil do Ciclo 1 de seu Sandbox Regulatório<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, que envolverá a análise de soluções em blockchain e criptoativos.
A despeito da aparente ausência de regulamentação específica no Brasil, fato é que produtos, estruturas e atividades que envolvem criptoativos são lícitas e permitidas por lei, podendo ser livremente estruturados com base no ordenamento jurídico vigente.
Ou seja, na contramão de alguns poucos países que baniram o uso de criptomoedas (Bolívia e Marrocos, p.ex.), no Brasil não há qualquer proibição. Alguns precedentes importantes da Administração Pública corroboram inequivocamente essa conclusão.
Cite-se o exemplo do Ministério da Economia, que se pronunciou recentemente pela viabilidade de se utilizar criptomoedas para fins de integralização de capital social de empresas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
A tributação dos criptoativos e transações relacionadas é um capítulo à parte. Apesar de também ser possível (tentar) acomodá-las com alguma segurança dentro das normas tributárias já em vigor, a situação é mais nublada, por não existirem ainda diretrizes firmes do Fisco e na própria legislação.
Como oferecer à tributação transações que envolvem ativos cuja própria natureza jurídica é ainda relativamente incerta? Para complicar ainda mais, fora a relativa incerteza sobre a natureza dessas transações, multiplica-se por dois o desafio da regulação fiscal: há dois sistemas praticamente distintos de tributação, o das pessoas jurídicas e das pessoas físicas, cada um com suas peculiaridades e desafios.
Até o momento, a RFB possui manifestações formais definindo o que entende por criptoativo (é ativo financeiro, e não moeda), detalhando os players desse mercado (os exchanges e custodiantes) e impondo a tais players obrigação de reportar as operações com cripto realizadas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Além disso, há instruções recentemente editadas pela RFB sobre como declarar criptoativos para fins do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), bem como esclarecimento específico no sentido de que uma alienação de criptoativos estaria sujeita à tributação aplicável aos ganhos de capital<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> (alíquotas de 15% a 22.5%<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, desde que as alienações no mês excedam o limite de isenção de R$ 35.000,00<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>).
Fora referidas tentativas de regulação fiscal (que ainda são superficiais), ainda não há outros precedentes relevantes do Fisco ou medidas legislativas concretas para endereçar o tratamento fiscal das transações com criptoativos sob a perspectiva tanto da tributação direta quanto da indireta.
As pessoas físicas possuem ao menos um norte em relação ao IRPF (ainda que muitas dúvidas surjam), ao passo que as empresas do ecossistema cripto encaram um verdadeiro limbo legislativo-tributário em alguns aspectos de suas atividades. Isso naturalmente tende a mudar com a sedimentação desse “setor da economia” e as evoluções de nosso ordenamento legal como um todo.
Pensando apenas em algumas poucas questões que surgem com cada vez mais frequência no contexto da tributação de criptoativos: converter uma moeda virtual em outra moeda virtual (Ether por Bitcoin) pode ser considerada uma transação tributável pelo imposto de Renda? Ou é necessário que se converta a moeda virtual em moeda fiduciária (“real”) para que haja tributação sobre a renda?
Nesse caso, qual o custo a ser considerado para o cálculo do ganho tributável? Sob outro enfoque, qual a natureza das receitas decorrentes das operações DeFi (que muitas vezes envolvem “empréstimo” de criptoativo): juros financeiros ou “aluguel” pelo uso de propriedade? Empresas capitalizadas com criptomoedas podem ter ganho tributável ao convertê-las em moeda fiduciária?
Sob o ponto de vista contábil, muito importante também para fins fiscais no Brasil<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, há um imenso debate sobre qual seria a melhor qualificação dos criptoativos.
Há práticas diversas pelo mundo, mas pode-se dizer que a natureza do criptoativo pode variar de acordo com o evento econômico a que se refere ou a destinação que se pretende dar a tal ativo. Moeda, ativo financeiro, propriedade para investimento, estoque, ativo intangível (sujeito a impairment)?
Não há uma resposta objetiva que seja completamente aceita atualmente e se espera também uma evolução na regulamentação contábil, com repercussão na esfera tributária (para as empresas, em particular no Brasil).
Estamos longe de ter uma absoluta segurança jurídica e tributária sobre a matéria, mas é certo que a legislação deverá acompanhar essas inovações, com viés construtivo e não destruidor.
Os desafios vão desde a adaptação do sistema tributário até a própria maneira de se fiscalizar os players do ecossistema cripto (serão os novos auditores-fiscais da RFB “bots”?).
Muitas questões ecoam, mas uma coisa é certa: a inovação chegou e o futuro estará criptografado dentro de uma blockchain.
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O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/1T8EYyNCQeM
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> FMI. Virtual Currencies and Beyond. IMF Staff Discussion Note SDN/16/03. Janeiro de 2016, P. 5-6. Disponível em: &lt;https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2016/sdn1603.pdfVirtual Currencies and Beyond: Initial Considerations&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Vide Resolução BCB n. 50/2020, disponível em: &lt;https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20BCB&amp;numero=50&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Vide Ofício Circular nº 4081/2020/ME, disponível em: &lt;https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/drei/legislacao/arquivos/OfcioCircular4081criptomoedas.pdf&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Vide “Perguntão IRPF 2021”, itens 445 e 606, disponível em: &lt;https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/declaracoes/dirpf/pr-irpf-2021-v-1-0-2021-02-25.pdf&gt;.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Vide Art. 21 da Lei nº 8.981/1995.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Vide Art. 22 da Lei nº 9.250/1995 (redação dada pela Lei nº 11.196/2005).
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Os critérios e regras contábeis são essenciais para se determinar, por exemplo, a base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), em especial no Lucro Real, em que o lucro contábil é o ponto de partida do cálculo da base tributável (adições e exclusões são estabelecidas pela lei fiscal para se chegar à base tributável pelo IRPJ/CSLL).

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A 'democratização' dos criptoativos

Reflexões sobre o cenário jurídico e tributário brasileiro