Luciano Feldens

Apresentado há 30 anos, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2.462/1991, que revoga a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) e acrescenta ao Código Penal o Título XII, contemplando 10 novos tipos penais, sob a rubrica “Dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito”.
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O objeto da tutela penal, aqui, é a ordem constitucional, no modelo de Estado que ela institui (art. 1º da CF). Mais definidamente, protege-se o conteúdo essencial da Constituição, historicamente vinculado a dois elementos materiais: a separação de poderes e a garantia dos direitos individuais (art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão – França, 26 de agosto de 1789), conquistas revolucionárias que evidenciariam uma lição: nem todo Estado com Direito é um Estado de Direito.
Nessa perspectiva de preservação dos alicerces que estruturam o modelo político-institucional vigente, o projeto em referência parece buscar atender, em parte, o comando de criminalização estabelecido no inciso XLIV do art. 5º da Constituição de 1988 – não paradoxalmente o berço dos direitos e garantias individuais:
Art. 5º (...)
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
Logicamente, são conhecidos os contingenciamentos políticos pelos quais passa o processo de construção das leis, de modo a acomodar o interesse das diferentes forças políticas, isso até mesmo em ordem a viabilizar a aprovação dos projetos – em detrimento, muitas vezes, da técnica legislativa. Já o diz a redação do dispositivo constitucional acima referido, objeto de acirrada disputa política, pela esquerda e pela direita, de modo que não seria diferente o momento de sua configuração legal.
Assim, tomando-se por referência o projeto tal como aprovado na Câmara dos Deputados, o dispositivo que melhor corresponde a essa obrigação constitucional de tutela penal é aquele descrito como Abolição violenta do Estado Democrático de Direito:
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais.
Pena – reclusão, de quatro a oito anos, além da pena correspondente à violência
Disposições legais não propriamente idênticas, mas projetadas para contextos semelhantemente ameaçadores, são encontradas na legislação de países democráticos que estão na base de nosso constitucionalismo, a exemplo de França (que pune a violência suscetível de colocar em perigo as instituições da República), Alemanha (que pune o emprego de violência ou ameaça tendente a derrocar a Federação, ou a modificação da ordem constitucional estabelecida), Portugal (que pune a alteração violenta do Estado de Direito), Itália (ao punir o atentado contra a Constituição ou insurreição armada contra os poderes) e Espanha (onde são puníveis a rebelião – correspondente ao "alzamiento violento y público" para derrogar a Constituição – e a sedição, delito recentemente atribuído, pelo Tribunal Supremo, aos líderes do movimento na Cataluña).
Embora inegável a legitimidade de propósito da lei, a redação final sugerida ao art. 359-L deixa sérias dúvidas sobre sua real capacidade de funcionar como instrumento tendente à proteção jurídico-penal das “instituições democráticas”, objeto específico de tutela do Capítulo II do Título XII, ao qual estão sujeitos o próprio art. 359-L e o art. 359-M, que define o delito de “Golpe de Estado”.
<blockquote class="jota-article__eye">A principal suspeita nesse sentido está atrelada à amplitude do crime: o que o tipo penal incrimina é nada menos do que a tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito. Surge, desde logo, a dúvida sobre o motivo pelo qual o legislador não incriminou a própria abolição do Estado Democrático de Direito, mas apenas sua tentativa.</blockquote>
Duas hipóteses de resposta se apresentam de imediato. A primeira acusaria a pergunta de ingênua: em havendo o resultado desejado pelo agressor (abolição do Estado Democrático de Direito), não teria sobrado pedra sobre pedra, menos ainda juízes para aplicarem o Código Penal (talvez a pergunta não seja tão ingênua, se considerarmos a decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, após a reunificação, no caso dos atiradores do muro de Berlim). A segunda hipótese de resposta apontaria para um problema dogmático mais acentuado: porque nenhuma ação humana teria aptidão para efetivamente abolir o Estado Democrático de Direito. Seja como for, para a caracterização do crime, no modelo aprovado pela Câmara, será necessário identificar – e comprovar – a ocorrência de atos executórios reconhecidamente eficazes para alcançar o fim almejado (a abolição do Estado Democrático de Direito), um resultado que apenas não terá sido atingido por circunstâncias alheias à vontade do agente agressor. De modo que mesmo o juízo hipotético de tipicidade demandará uma verificação – e justificação – sobre a idoneidade do meio empregado, na medida em que, se absolutamente ineficaz para atingir o fim perseguido, será impunível a tentativa (art. 17 do Código Penal).
Outro aspecto duvidoso está relacionado à estrutura típica adotada. Do ponto de vista gramatical – critério a ser observado em atenção aos mandados de clareza e precisão na redação das leis (art. 11 da Lei Complementar 95/2001), sobretudo em matéria penal (art. 5º, XXXIX, da CF) –, o tipo do art. 359-L contempla uma oração principal (Tentar abolir o Estado Democrático de Direito), um adjunto adverbial de modo (com emprego de violência ou grave ameaça) e uma oração subordinada adverbial consecutiva (impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais). Essa decomposição gramatical do tipo indica que não bastaria uma ação eficazmente capaz de abolir o Estado Democrático de Direito, senão que dela haveria de resultar uma restrição ou o impedimento ao exercício dos poderes constitucionais (o deslocamento da oração subordinada até poderia atribuir outro sentido ao tipo, cuja redação aprovada, entretanto, não permite atingir).
Compreende-se, no ponto, o intento de “fechar” o tipo penal diante da abertura da conduta incriminada. Ao fazê-lo, todavia, o legislador não recorreu à fórmula comumente utilizada para essa finalidade: o emprego de tipos penais de forma vinculada (v.g., art. 1º da Lei 8.137/90, para não citar apenas o sempre mencionado delito de curandeirismo). O que se fez foi algo distinto: aparentemente, foi pretender reduzir a amplitude do tipo mediante a atribuição de um resultado naturalístico. Ocorre que esse resultado típico – a restrição (não é necessário o impedimento, que a engloba) ao exercício dos poderes constitucionais – mais se transparece como algo inerente à execução do crime, que está, portanto, no curso da ação do agente. Ou será imaginável a caracterização de um ato executório de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito que não perpasse, sequer, pela restrição ao exercício dos poderes constitucionais?
Por fim, tampouco está claro se por “poderes constitucionais” devemos tomar os “Poderes da União” (art. 2º da CF) e se, nesta hipótese, o tipo postula que a restrição –  enquanto resultado a ser alcançado – abarque o exercício de todos eles conjuntamente (Executivo, Legislativo e Judiciário) ou se seria o bastante a restrição ao exercício de qualquer deles (Executivo, Legislativo ou Judiciário). Além disso: seria o “poder” como um todo que haveria de ser restringido? Ou apenas parte dele (v.g., órgão, casa legislativa, tribunal)? Ainda, agora com diverso enfoque semântico sobre as elementares do tipo: alguma instituição pública – que não um poder de Estado – titular de poderes constitucionais estaria englobada nessa definição típica?
A partir dessas relevantes questões dogmáticas, políticas e históricas, todas confluentes no complexo processo de elaboração da lei, surgem algumas hipóteses fáticas que podem colocar em teste a efetividade da proteção penal perseguida. Antes de recorrermos a elas, porém, é preciso termos claro que qualquer análise que se venha a fazer sobre a incidência da lei deverá levar em consideração as causas de exclusão do crime previstas no art. 359-T, em boa hora explicitadas no projeto. Vejamos:
Art. 359-T. Não constitui crime previsto nesse Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais, nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou qualquer outra forma de manifestação políticas com propósitos sociais.
Feita essa consideração, vamos às seguintes hipóteses-teste de aplicação do Projeto de Lei aprovado na Câmara dos Deputados:
(a) o "autogolpe" de Estado está contemplado na lei?
(b) a obstaculização, mediante violência ou grave ameaça, ao exercício das atividades de uma CPI, é conduta alcançada pela lei?
(c) o descumprimento de decisão judicial, dirigida a Chefe de Poder, que a considera ilegítima e, sequencialmente, arregimenta seguidores, estimulando-os a constranger ameaçadoramente o emissor da decisão judicial, ou respectivo tribunal, está adequadamente tipificado como crime?
Nenhuma das três hipóteses acima está claramente caracterizada como crime no projeto aprovado pela Câmara dos Deputados e agora remetido à deliberação do Senado Federal:
Em relação à hipótese (a), o projeto prevê explicitamente apenas a conduta do "Golpe de Estado", que define como "tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente instituído", inaplicável, portanto, a quem já esteja no poder e busque nele se preservar (hipótese em que não há “deposição”). A alternativa seria buscar enquadramento típico no crime de Abolição do Estado Democrático de Direito (art. 359-L), o que parece viável, mas não inquestionável. A ser assim, a pena cominada a tão grave conduta (reclusão, de 4 a 8 anos) seria a mesma prevista para o delito de preterição da ordem cronológica do pagamento de faturas de contratos administrativos (art. 337-H do Código Penal), engrossando as críticas formuladas por aqueles que denunciam a incoerência endonormativa do sistema de proteção jurídico-penal.
Sobre a hipótese (b), sua criminalização dependeria de determinada interpretação a ser conferida aos elementos do crime e, sobretudo, da identificação acerca da aptidão da conduta para abolir o Estado Democrático de Direito.
Quanto à hipótese (c), é conduta igualmente grave, sujeita à repercussão em outras esferas, mas que tampouco evidencia o propósito do agressor de, com isso, abolir o Estado Democrático de Direito, ou sobre a capacidade real de alcançá-lo em razão do meio empregado; além disso, seria preciso identificar se com sua ação o agente efetivamente terá restringido ou impedido o exercício dos "poderes constitucionais".
São apreciáveis o esforço e a moderação do legislador democrático em dar vigência ao dispositivo constitucional (art. 5º, XLIV, da CF) de modo a conciliá-lo com a preservação da liberdade geral de ação. Nessa difícil tarefa, talvez devam ser consideradas, sobretudo diante do contexto em que vivemos, condutas claramente atentatórias à democracia que ou não estão contempladas no Projeto de Lei ou, caso sejam interpretadas diferentemente, estariam penalizadas aquém de sua gravidade.
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