Rafael Gomes França

O imigrante ganense Evans Osei Wusu, que tinha 39 anos, faleceu no último dia 6 de setembro após passar mal[1] enquanto estava retido no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, no aguardo de ter acesso ao procedimento para reconhecimento do status de refugiado e, em seguida, autorização para deixar a zona de trânsito.
A <a href="https://www.jota.info/eleicoes/quem-sao-os-candidatos-a-prefeito-de-guarulhos-nas-eleicoes-de-2024">Prefeitura de Guarulhos</a> informou o falecimento, por meio de nota, e, dado o estado de deterioração do corpo de Wusu e da ausência de conhecimento de sua morte por sua família, a Embaixada de Gana no Brasil aprovou o sepultamento, sendo providenciada a devida documentação para ser realizado o enterro, que por sua vez, foi autorizado e liberado pelo Instituto Médico Legal, sob responsabilidade do governo estadual.
<h3><a href="https://conteudo.jota.info/marketing-lp-newsletter-ultimas-noticias">Assine a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email</a></h3>
Em 16 de agosto, a Defensoria Pública da União (DPU) havia protocolado um documento contendo diversas recomendações, após observar violações de direitos humanos no local onde estavam centenas de imigrantes retidos ao aguardo do procedimento de refúgio.
Entre as recomendações estavam: i) que a GRU Airport se comprometesse a encontrar modos para garantir condições, juntamente com os esforços das companhias aéreas, de acesso facilitado à higiene básica e à alimentação de todos os migrantes retidos, em proporções que seriam acompanhadas pela DPU e pelo Ministério Público Federal, e ii) que o Ministério da Justiça se comprometesse a enviar reforços de servidores para a realização de serviços emergenciais, tanto nas atividades de processamento dos protocolos de refúgio quanto para a segurança no espaço. 
O local designado aos que aguardam autorização para entrar em território brasileiro é gerido pela GRU Airport, cabendo à concessionária zelar pela saúde dessas pessoas, com o apoio das companhias aéreas que as trouxeram, uma vez que se encontram em território internacional. No ambiente, há um hotel, onde se hospedam passageiros em conexões demoradas, mas também há espaços, com pouco acesso a locais para higienização e necessidades básicas, nos quais se instalam os inadmitidos. 
Todo esse cenário demonstra fragilidade e uma provável ausência de pactuação no âmbito do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/SUS">SUS</a>) sobre como lidar com essas pessoas. Durante a pandemia da Covid-19, centenas de migrantes ficavam retidos, por falta de comprovante de vacinação, pressionando o sistema de saúde do município de Guarulhos, gerando confusão para os três níveis de governo (municipal, estadual e federal). Até o momento, não há fluxos definidos para os casos que acontecem na área de trânsito.
Também não parece haver pactuação no âmbito do SUS sobre como lidar com essas chegadas. Pelo sistema público, há definições das atividades atribuídas aos entes federados, todas elas discutidas e pactuadas no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite (CIT).
Dessa maneira, pela obrigação de o cuidado ser das empresas aéreas que trouxeram inadmitidos, há problemas na leitura das atribuições dos entes federados e suas instituições não sabem a quem cabe o acolhimento dessas populações, que chegam ao país em situação de vulnerabilidade. Soma-se a necessidade de mais profissionais de saúde, sejam eles municipais, estaduais ou federais, que deem vazão à crescente demanda.
Para além do acolhimento que ofereça triagem que atenda as reais necessidades dos migrantes, há também o componente da vigilância em saúde, que possa identificar a possível introdução de doenças novas ou de doenças já erradicadas no Brasil e que poderiam ser reintroduzidas. Também se destaca a importância da derivação desses cidadãos, quando necessário, referenciando-os a serviços de saúde próximos aos locais onde se instalarão para sua devida atenção.
Por fim, a quem caberia esta responsabilidade? À GRU Airport e às companhias aéreas, que compartilham do problema na área restrita? Ao município de Guarulhos, onde se encontra o aeroporto internacional? Ao estado de São Paulo? Ou ao governo federal?
Como resposta à crise instalada, o Gabinete do Departamento de Migrações publicou uma nota técnica[2] sobre a situação dos migrantes irregulares no aeroporto de Guarulhos. No expediente, relata-se o aumento do fluxo migratório especialmente vindo de países do sul e sudeste asiático, como nepaleses, indianos, vietnamitas e paquistaneses, sendo que a maioria tem como destino final outros países da América do Sul que não exigem vistos para entrada, parando em São Paulo para conexões. 
O departamento destaca que grande parte desses migrantes estão tomando a perigosa rota entre São Paulo e Acre, com a finalidade de atravessar para o Peru e depois seguir caminho para os Estados Unidos – rota já consolidada de migração irregular e de tráfico humano.
Ademais, ao observar o aumento significativo de pedidos de refúgio no aeroporto, nota-se uso abusivo do instituto do refúgio para outras finalidades. A nota coloca em evidência práticas de contrabando de migrantes em larga escala, processo já bem consolidado e profissionalizado ao redor do mundo que usa aeroportos como hubs de trânsito de passageiros que se tornam objeto de contrabando. 
Há alguns dispositivos legais sobre migração e refúgio no Brasil que podem ser aplicados, e possíveis interpretações, como o Plano de Ação em Enfrentamento ao Contrabando de Migrantes[3], formalizado pela Secretaria Nacional de Justiça em julho de 2024, também à frente das crises recentes; o Protocolo das Nações Unidas contra o Contrabando de Migrantes por Terra, Mar e Ar de 2003[4]; a Lei da Migração de 2017[5]; e a lei de outubro de 2016 sobre o tráfico de pessoas[6], que buscou adequar a legislação brasileira ao Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, Protocolo de Palermo, de 2004.
Sobre a Lei da Migração, é importante destacar que não há exigência de vistos em casos de conexão pelo Brasil. Contudo, o Departamento de Migrações interpreta que se tratava de um mecanismo para facilitar a entrada de pessoas em trânsito que alegadamente não tinham como destino o Brasil. Além disso, a própria lei penaliza o crime de contrabando de migrantes e assegura seus direitos fundamentais em território nacional. 
Diante do impasse desses pontos, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-da-justica-e-seguranca-publica">Ministério da Justiça e Segurança Pública</a> propõe sugestões de curto, médio e longo prazo. Para ação imediata, sugere-se a inadmissão em território nacional de pessoas que chegam aos aeroportos com voos destinados a outros países, uma vez que positivado o interesse em seguir para outro local que não o Brasil – em consonância com a interpretação dada à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-migracao">Lei de Migração</a>. Além disso, sugerem não protocolar os pedidos de reconhecimento da condição de refugiado e fortalecer a sensibilização e comunicação sobre o contrabando de migrantes. 
Para o médio prazo, o Ministério da Justiça sugere a intensificação das ações de repressão aos crimes de tráfico de pessoas e contrabando de migrantes, com especial atenção para família com crianças e adolescentes. Mais a longo prazo, é necessário aprimorar o monitoramento e a resposta ao contrabando nas fronteiras nacionais, e indica ao Itamaraty que se articule regionalmente com outros países sul-americanos para discutir temas relacionados à imigração irregular na região.
Para mitigar a crise instalada, a Secretaria Nacional de Justiça anunciou medidas para impedir o abuso e uso indevido do instituto do refúgio nos aeroportos internacionais do Brasil, especialmente no de Guarulhos, adotando uma manutenção da política do instituto do refúgio. Desde o último dia 26 de agosto, passageiros em trânsito sem visto de entrada no Brasil seguirão viagem ao destino final ou retornarão à origem do voo[8]. O propósito da medida, no fim das contas, é evitar aglomeração e retenção na área restrita. 
Sem dúvida, trata-se de decisão importante, mas caberá observar se será eficaz e se está em linha com obrigações internacionais e nacionais de acesso de refugiados à proteção internacional.
Embora tardiamente, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-da-saude">Ministério da Saúde</a> iniciou a discussão sobre a Política Nacional para Migrantes, Refugiados e Apátridas, que ainda se encontra em processo de consulta nos territórios. Essa política terá o importante papel de definir fluxos claros, responsabilidades bem estabelecidas e garantir um tratamento humanizado e eficiente, compartilhadas entre os entes federados para que sejam acolhidos e possam ter pleno acesso aos serviços de saúde, de maneira universal e integral, como é o espírito do nosso SUS.
<hr />
[1] G1. Polícia Civil abre inquérito para investigar morte de imigrante após passar mal em Aeroporto de SP. Disponível em: <a href="https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/09/06/policia-civil-abre-inquerito-para-investigar-morte-de-imigrante-apos-passar-mal-em-aeroporto-de-sp.ghtml">https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/09/06/policia-civil-abre-inquerito-para-investigar-morte-de-imigrante-apos-passar-mal-em-aeroporto-de-sp.ghtml</a>. Acesso em: 8 set. 2024.
[2] GABINETE DO DEPARTAMENTO DE MIGRAÇÕES. Nota Técnica Nº 18/2024. Brasília, ago. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/secretaria-nacional-de-justica-senajus/nota-tecnica-demig.pdf. Acesso em: 09 set. 2024.
[3] Ministério da Justiça e Segurança Pública. MJSP e Agência da ONU para as Migrações lançam Plano de Ação em Enfrentamento ao Contrabando de Migrantes. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/mjsp-e-agencia-da-onu-para-as-migracoes-lancam-plano-de-acao-em-enfrentamento-ao-contrabando-de-migrantes. Acesso em: 09 set. 2024.
[4] PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto Nº 5.016. Brasília, Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5016.htm. Acesso em: 09 set. 2024.
[5] PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei Nº 13.445. Brasília, 24 maio de 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm?msclkid=5e60f3c2c38211eca6a4a5614d85b32a. Acesso em: 09 set. 2024.
[6] PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei Nº 13.344. Brasília, 06 out. 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13344.htm. Acesso em: 09 set. 2024.
[7] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. OFÍCIO Nº 39/2024/CGMIG/DPA/PF. Brasília, 01 set. 2024. Disponível em: &lt;https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/secretaria-nacional-de-justica-senajus/oficio-e-informacao-pf.pdf&gt; Acesso em: 09 set. 2024.
[8] BRASIL. Ministério da Justiça. Comunicado sobre Inadmissão de Passageiros em Trânsito. Secretaria Nacional de Justiça. Brasília: Ministério da Justiça, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/secretaria-nacional-de-justica-senajus/demig_inadmissao-passageiros-em-transito_comunicado_26082024-revisado.pdf. Acesso em: 9 set. 2024.

sohan-shingade-mUU2zZ0d2ms-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Falta pactuação no âmbito do SUS sobre como lidar com migrantes que aguardam procedimento de refúgio

A crise humanitária na zona de trânsito do Aeroporto de Guarulhos

Falta pactuação no âmbito do SUS sobre como lidar com migrantes que aguardam procedimento de refúgio