Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">
"Em tempos de rápidas transformações, a experiência pode ser o seu pior inimigo."
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Uma desgraça nunca vem sozinha, já diziam, na sua infinita sabedoria, os antigos. Ao lado da atual crise global de segurança alimentar, que já tivemos a oportunidade de analisar <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/crise-global-de-seguranca-alimentar-27052022">nesta coluna</a>, a humanidade ingressa também em uma crise energética global, capaz de nos manter na escuridão até o final desta década. O movimento natural do ciclo dos mercados de energia foi interrompido por uma série de eventos que correm o risco de trazer um cenário muito complicado para os próximos meses e anos.
Os mercados de commodities, dentre as quais se destacam os recursos energéticos, são cíclicos, isto é, alternam períodos de expansão e de contração, devido ao fato de que o ajuste entre demanda e oferta não se dá de maneira imediata, porque diferida no tempo. Tome-se o caso dos mercados internacionais de petróleo, por exemplo. Um aumento da demanda global, causado por um crescimento da economia mundial, exige, ao menos em tese, um crescimento proporcional da oferta, para que não haja inflação.
Acontece que o crescimento da oferta é longamente diferido no tempo, porque necessita de investimentos em exploração e produção (E&amp;P), que levam anos para maturar. Quando o investimento está pronto para chegar ao mercado, muitas vezes o ciclo da alta da demanda, o bull market, já passou, causando assim uma sobreoferta, que pressiona os preços para baixo, levando ao cancelamento das operações mais caras e prenunciando um ciclo de contração, um bear market, pelos anos seguintes. A arte de corretamente medir o tempo de entrar e sair dos mercados, na maioria das vezes, é o que distingue os profissionais dos amadores.
No caso atual, em especial nos mercados de petróleo e gás natural, mesmo antes da pandemia de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/covid-19">Covid-19</a> o mercado global já assistia ao fim de um ciclo de expansão, causado pela revolução do oléo e do gás de xisto (shale, em inglês), iniciada no começo da década de 2000. A extração de hidrocarbonetos da rocha de xisto a partir da técnica do fraturamento hidráulico provocou a maior revolução nos mercados de energia do século 21, transformando, por exemplo, os EUA de importador a exportador de petróleo.
A revolução do shale foi tamanha que, como seria de se esperar, levou a uma superprodução, inundando os mercados internacionais de petróleo. Combinada com a crise financeira global de 2008, que derrubou a demanda e o crescimento da economia mundial, a revolução do shale levou a uma derrocada do preço do petróleo em 2014, de cerca de US$ 100 o barril em junho para cerca de US$ 50 o barril em janeiro de 2015. Nesse cenário de demanda fraca e sobreoferta de óleo, os investimentos em E&amp;P praticamente cessaram, em um movimento natural dos mercados de ajuste entre oferta e demanda. Vale lembrar, cara leitora, que campos de óleo e gás não são infinitos, tendo uma vida útil de cerca de 20 a 40 anos.
Passadas quase duas décadas da última rodada global de investimentos em E&amp;P, seria, agora, o momento da retomada da oferta, que, comprimida, atrairia, pela alta de preços, novos investimentos para atender à demanda. Os eventos dos últimos anos, contudo, em especial a pandemia da Covid-19 e a eclosão do conflito na Ucrânia, desarticularam as cadeias globais de oferta, aumentando ainda mais o abismo entre ela e a demanda que, apesar de fraca, distanciou-se demasiadamente da oferta, gerando uma pressão inflacionária secular. Por secular, cara leitora, leia-se “não transitória”, ao contrário do que alguns bancos centrais alegam.
Para reduzir as pressões inflacionárias globais é necessário aumentar a oferta de óleo e gás, o que exige investimentos de longa maturação, que, ressalte-se, não se estão a realizar. Ao contrário, a maioria dos governos ao redor do globo estão enfrentando a crise energética pela mera introdução de paliativos de demanda, notadamente por cortes de impostos para reduzir o preço dos combustíveis na bomba para o consumidor final, em um receituário que só vai agravar o problema, pois com o passar do tempo, mais e mais campos de hidrocarbonetos se esgotam sem que outros sejam abertos para cobrir-lhe as perdas.
A estratégia correta para se enfrentar a atual crise energética global é a de atacar o problema pelo lado da oferta, criando incentivos e reduzindo os enormes riscos das atividades de E&amp;P e, ao mesmo tempo, investindo pesadamente no aumento da capacidade de refino. O maior gargalo da indústria está, de fato, na etapa do refino. Aí está a chave para se enfrentar a atual crise energética global, justamente onde estão os maiores spreads da indústria, isto é, na diferença entre o preço do barril no campo e o preço do combustível refinado.
Note, cara leitora, que a crise energética tem ligações diretas com a crise alimentar. A agricultura global é altamente dependente de fertilizantes, os quais são extraídos basicamente de apenas três elementos: de nitrogênio, de fósforo e de potássio. Os fertilizantes de nitrogênio, retirados precipuamente a partir do gás natural, cuja disponibilidade está a reduzir-se como vimos, representam mais de 60% da oferta global do insumo. O restante é complementado por fertilizantes de fósforo e de potássio, cujos maiores fornecedores são a Rússia e a Bielorrússia, regiões envolvidas em um conflito geopolítico que está a desarticular suas conexões às cadeias de fornecimento globais. Isso indica uma redução global da oferta de fertilizantes, diminuindo consequentemente a produtividade agrícola e aumentando exponencialmente as pressões inflacionárias internacionais.
Esse quadro, em suma, aponta para a constituição de uma dupla crise global, energética e alimentar, sem precedentes na história conhecida. Os impactos dessa dupla crise devem começar a se fazer sentir já a partir do início do outono no hemisfério norte, especialmente em meados de outubro. É o momento, portanto, para a estruturação de uma estratégia nacional de enfrentamento dessa dupla crise global, que passe, necessariamente, pela proteção do fornecimento energético e alimentar nacional e por um investimento massivo no aumento da capacidade autóctone de refino no Brasil. O risco, já visível no horizonte, é o de uma década de fome e escuridão. Ut sementem feceris, ita metes <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Aquilo que se semeia é aquilo que se colhe.

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JOTA

Cenário de dupla tormenta no horizonte demanda estratégia nacional de enfrentamento

A crise energética e alimentar global

É o momento para a estruturação de uma estratégia nacional de enfrentamento dessa dupla crise global, energética e alimentar