Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">
"Como qualquer outra política ambiental viável, a busca por energia limpa começa em casa."
<footer class="jota-article__quote-cite" style="text-align: left;">Roger Scruton</footer>
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A leitora atenta deste espaço, ao terminar <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-crise-energetica-global-21082022">a coluna da semana passada</a>, deve ter ficado a se perguntar se a crise de oferta que se abate sobre os mercados globais de óleo e gás também afetaria as fontes de energia renováveis, isto é, se o incremento da contribuição das fontes alternativas na matriz energética global não poderia contrabalançar o gargalo dos combustíveis fósseis. A resposta é, infelizmente, ainda não.  
Apesar da sua utilização crescente, as energias renováveis ainda representam um percentual relativamente modesto na matriz energética global quando comparados aos combustíveis fósseis. <a href="https://www.c2es.org/content/renewable-energy/">As fontes renováveis representaram 11,2% da energia consumida no mundo em 2019.</a> Na geração de eletricidade, as fontes renováveis, em 2020, representaram 29%, dos quais a vasta maioria veio de hidrelétricas (16,8%). Os combustíveis fósseis, por outro lado, representaram, em 2019, 80,2% do consumo energético global.   
Esses dados indicam que a transição da matriz energética global para 100% renovável ainda vai levar algum tempo. E o caminho tampouco será isento de obstáculos. O fenômeno mesmo das alterações climáticas globais vem gerando uma instabilidade tão forte nas movimentações atmosféricas a ponto de perturbar a própria geração de energias renováveis. É como um círculo vicioso em que a doença dificulta a produção do seu próprio remédio.  
Na parte de energia hidráulica, a atual onda de calor no hemisfério norte vem gerando as maiores secas em séculos. No momento em que escrevo, <a href="https://edo.jrc.ec.europa.eu/edov2/php/index.php?id=1000">47% do território europeu encontra-se em estado de preocupação e 17% em estado de alerta</a>. A seca vem <a href="https://www.weforum.org/agenda/2022/08/drought-impacts-europe-unexpected/">impactando severamente a produção de energia</a>, tendo o fornecimento das hidrelétricas se reduzido em 20% no continente e em 44% só na Espanha. Além disso, algumas usinas nucleares na França tiveram de ter a sua capacidade reduzida, devido ao baixo nível dos rios não ser o suficiente para promover o seu resfriamento. O impacto da seca na agricultura, em adição à redução da oferta de fertilizantes e aos efeitos das medidas para conter a pandemia, <a href="https://www.ft.com/content/4d746aa5-29e3-4796-b9e6-0b64c6865389?segmentId=98583035-ac35-a0ba-ed44-378e53f8caec">está a provocar uma crise alimentar muito severa na África, com possibilidade de gerar conflitos sociais e deslocamentos populacionais em massa no continente.</a>  
Na parte de energia solar e eólica, a crise, entretanto, não se apresenta tão aguda. A sua presença na matriz global, contudo, é assaz reduzida, <a href="https://www.weforum.org/agenda/2022/04/wind-solar-electricity-global-energy/">representando pouco mais de 10% da eletricidade global em 2021</a>. Além disso, a instabilidade climática tem se apresentado tão drástica que afeta a previsibilidade do regime de ventos, e, portanto, aumentando o risco na constância do fornecimento. Isso sem falar no rito ainda lento, segundo o Fórum Econômico Mundial, de desenvolvimento de redes elétricas para a transmissão altos níveis de energias renováveis.   
Mas é na parte de biocombustíveis, que representam cerca de 10% do consumo global de energia, que a situação se afigura mais complicada. A produção de biocombustíveis compete diretamente com a produção de alimentos, já que eles são produzidos por commodities alimentares, como grãos, cana-de-açúcar e oleaginosas. Com uma demanda internacional crescente, estimada em aumentar em cerca de 28% até 2026, o cenário é o de uma pressão inflacionária crescente no setor de alimentos. Combinada com a crise do setor de óleo e gás e de fertilizantes, que analisamos na semana passada <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-crise-energetica-global-21082022">aqui nesta coluna</a>, o quadro é o de uma tempestade perfeita.   
A produção agropecuária global, já reduzida pelos altos preços dos fertilizantes, está jogando a crise alimentar global em um outro círculo vicioso, também tributário das mudanças climáticas. Essa crise alimentar, que já tivemos a oportunidade de abordar <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/crise-global-de-seguranca-alimentar-27052022">aqui nesta coluna</a>, está rapidamente se constituindo em um movimento de “nacionalismo de recursos”, pelo qual os países produtores procuram manter a produção em território nacional, evitando importar a fome global. Nesse sentido, a Indonésia e a Índia, por exemplo, já implantaram controles de exportação e de comercialização de suas principais commodities. A Índia, segundo maior produtor mundial de trigo, vem sofrendo particularmente com a crise energética e climática global, <a href="https://www.cnbctv18.com/agriculture/government-on-wheat-imports-on-low-production-amid-high-commodity-prices-14557052.htm">vendo as suas reservas da commodity se reduzirem ao menor nível em 14 anos</a>.  
Essa dupla crise global, alimentar e energética, não tem precedentes na história recente. E quem mais será atingido pela crise serão os pobres. Estima-se que a fome possa gerar o maior deslocamento populacional da história conhecida. Segundo o Programa Mundial de Alimentos da ONU, a crise climática provocou as maiores secas em 40 anos, <a href="https://www.theguardian.com/world/2022/aug/20/drought-in-horn-of-africa-places-22m-people-at-risk-of-starvation-says-un">elevando a mais de 22 milhões o número de pessoas sob risco de inanição somente na região do Chifre da África</a>. Trata-se de uma verdadeira catástrofe, que demanda uma intensificação exponencial das ações da ajuda humanitária.   
Nem tudo são espinhos, contudo. <a href="https://www.epe.gov.br/pt/abcdenergia/matriz-energetica-e-eletrica">O Brasil se singulariza nesse quadro por contar com uma grande participação das fontes limpas na sua matriz energética</a>. As fontes renováveis representaram, em 2019, 46% da matriz energética brasileira, contra uma média global de apenas 14%. Na geração de eletricidade, então, as renováveis representaram 83% do fornecimento nacional, contra apenas 27% da média mundial no mesmo ano. O Brasil, na composição da sua matriz energética, é sem dúvida alguma um exemplo para mundo, tendo um papel muito importante a desempenhar na contenção da crise atual. 
A única forma de aliviar a dupla crise global, pelo lado das energias renováveis, é pelo aumento exponencial do investimento em pesquisa e desenvolvimento, que aumente a eficiência tanto na geração de energias limpas, quando, principalmente, na estocagem e na distribuição. É um esforço crucial, mas que leva tempo para maturar, o que é um complicador em um quadro no qual a crise atual já se tornou emergencial. No curtíssimo prazo, a situação estruturou-se em um dilema crucial para humanidade: a fome e o meio-ambiente estão se posicionando em polos opostos ao de um trade-off terrível. O caminho à frente não será fácil e exigirá um esforço hercúleo de lideranças firmes e preparadas para enfrentar a tormenta, possivelmente um dos maiores desafios que já se apresentaram à humanidade. Destitutus ventis, remos adhibe[1].
<hr />
[1] Se os ventos lhe falham, use os remos.

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JOTA

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