Guilherme Lobo Pecoral

JP Amaral

<blockquote class="jota-article__quote">“Hoje, cuidar do meio ambiente é querer dar continuidade à vida.” 
<footer class="jota-article__quote-cite">Darlienne Souza Lemos, 22, jovem ativista ambiental, em entrevista ao <a href="https://lunetas.com.br/jovens-ativismo-ambiental/">Portal Lunetas</a></footer>
</blockquote>
O período de chuvas que atravessa várias regiões do país tem chamado a atenção pública para uma realidade hostil a que crianças, adolescentes e jovens estão cada vez mais expostos: um cenário crítico de emergência climática e racismo ambiental permitido, quando não diretamente promovido, pelo Estado e agentes privados, em dimensão global.
As ações de solidariedade, doações e campanhas de arrecadação são fundamentais e merecem atenção, mas não dão conta, por sua natureza, do problema mais profundo por trás dos desastres, que consiste em um descaso generalizado (de países, entes federativos e empresas globais) em relação a políticas públicas de adaptação, mitigação climática e enfrentamento de modo geral às desigualdades, inclusive etárias.
Se a agenda ambiental já foi tratada por alguns à parte da agenda social, opondo a proteção da natureza à ocupação humana, hoje, frente ao contexto cada vez mais evidente de conexão entre violações de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/direitos-humanos">direitos humanos</a> e ambientais, esse erro não é mais possível. É o que esclarece o conceito de <a href="https://lunetas.com.br/racismo-ambiental-e-climatico/">racismo ambiental</a>, que identifica a relação intrínseca entre a degradação ambiental e a segregação de determinados segmentos da população, notadamente os povos negros, indígenas e tradicionais.
Embora esse termo ainda tenha, juridicamente, pouca permeabilidade, no sentido de subsidiar diretamente as decisões judiciais e o sistema de justiça, sua definição é de extrema relevância para os desafios postos hoje, em que a devastação ambiental e humanitária é premente.
São os territórios negros e populares os submetidos a regiões de risco, mais <a href="https://lunetas.com.br/a-culpa-e-da-chuva-como-estao-as-criancas-do-litoral-norte-de-sp/">afetadas pelas chuvas</a>, assim como as comunidades indígenas são mais expostas ao <a href="https://lunetas.com.br/garimpo-ilegal-amazonia-criancas/">garimpo ilegal</a>, uma geografia que reflete interesses econômicos e políticos de exploração de recursos naturais e humanos, de forma a afetar as condições de vida no planeta para todos.
Junto aos segmentos mais afetados pelas mudanças climáticas, estão, de forma especialmente grave, as crianças e os adolescentes, sobretudo os que vivem no Sul Global, como destaca o “<a href="https://criancaenatureza.org.br/pt/clima/legal-policy-brief/">Legal Policy Brief</a>”, do Instituto Alana, sobre o direito das infâncias a um meio ambiente saudável. O relatório ''<a href="https://www.unicef.org/reports/climate-crisis-child-rights-crisis">A crise climática é uma crise dos direitos da criança</a>'', do Unicef, por sua vez, expõe que cerca de 1 bilhão deles — quase metade dos 2,2 bilhões de meninas e meninos do mundo — vivem em um dos 33 países classificados como de "risco extremamente elevado".
De 163 países no ranking de mais vulneráveis climaticamente, o Brasil encontra-se em 70º lugar, apresentando um indicador elevado e muito preocupante de 7.3 (de uma pontuação que varia de 0 a 10) de fatores de risco ambientais e climáticos para crianças e adolescentes.
Cerca de 330 milhões de crianças, ou seja, 1 a cada 7 crianças no mundo, estão atualmente expostas a inundações fluviais, sendo que há probabilidade de que a situação se agrave, na medida em que as geleiras derretem e as precipitações aumentam devido ao alto teor de água na atmosfera, resultado de maiores temperaturas médias no planeta. Além disso, 240 milhões de crianças (1 a cada 10 no mundo) estão altamente expostas a inundações costeiras. Novamente, é provável que a situação se agrave, ao passo que os níveis do mar continuam aumentando, com os efeitos consideravelmente ampliados quando combinados com tempestades.
Os chamados eventos climáticos extremos são uma das principais consequências desse cenário. Entre 9,5 milhões de brasileiros que estão em pontos de alto risco de deslizamento de terra, quase 2 milhões são idosos ou crianças, calcula o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). As novas gerações passarão por uma incidência média 2 a 7 vezes maior de queimadas, secas, enchentes, tempestades tropicais e quebras de safras (colheitas menos proveitosas) ao longo de suas vidas, em comparação com quem nasceu em 1960, aponta uma pesquisa publicada na <a href="https://www.science.org/doi/10.1126/science.abi7339">revista Science</a>.
Vale lembrar algumas noções sobre toda essa problemática e, em especial, o que o arcabouço dos direitos de crianças e adolescentes informa a seu respeito. Cabe ainda responder como se insere a perspectiva da criança no desafio das mudanças climáticas e na responsabilidade de toda a sociedade com as vidas e com a natureza em um momento tão delicado.
Não é de hoje que crianças e adolescentes denunciam essa realidade e reivindicam seus direitos. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é um dos frutos dessa mobilização. Seu artigo 225 consagra o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, como bem de uso comum do povo, essencial à qualidade de vida, e que deve ser defendido para as presentes e futuras gerações. Na sequência, o artigo 227 estabelece a absoluta prioridade dos direitos dessa população.
Considerando a relação entre a qualidade de vida em um clima estável com o desenvolvimento de crianças e adolescentes, como aprofunda o já referido <a href="https://criancaenatureza.org.br/pt/clima/legal-policy-brief/">"Legal Policy Brief"</a>, é íntima a conexão entre os artigos citados, revelando o dever prioritário do Estado em implementar políticas para uma adaptação climática atenta às infâncias. Como afirmou a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 6148, sobre padrões de controle da qualidade do ar, “a efetiva proteção do meio ambiente assegura ao ser humano das presentes e futuras gerações uma existência digna: a preservação do meio ambiente é indissociável da própria defesa dos direitos humanos".
Essa indissociabilidade referida pela ministra joga luz novamente à perspectiva do racismo ambiental, evitando que a defesa do meio ambiente possa vir a ser concebida de maneira apartada das injustiças sociais. Nesse sentido, a prioridade absoluta dos direitos da criança, frente à crise climática e urbana, deve ser contextualizada, considerando as prioridades dentro do universo prioritário das múltiplas infâncias, conforme a legislação brasileira e internacional, a qual determina que, quanto mais vulnerável um grupo de crianças ou adolescentes for, mais deve ser protegido, em um <a href="https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-04092020-174138/pt-br.php">modelo interseccional de proteção</a>.
É, assim, compromisso constitucional a construção de uma sociedade igualitária e não discriminatória, inclusive na política ambiental e urbana. E é necessário que a atenção pública se debruce com prioridade sobre as infâncias e adolescências especialmente vulneráveis na cidade, como a população moradora de encostas e regiões consideradas de risco, no sentido de manejá-la e garantir sua permanência segura no território, ou, quando não for possível, de prover alternativa habitacional adequada.
O combate aos deslizamentos de terra e proteção do meio ambiente não pode ignorar essa realidade deflagrada de injustiças, que faz com que os impactos das mudanças climáticas sejam brutalmente desproporcionais. Não deve, assim, ser reduzido à política da remoção — nesse contexto, as famílias são expulsas e desamparadas, removendo-se também os vínculos afetivos, escolares e territoriais das crianças, que acabam muitas vezes ocupando novas regiões de risco.
O complexo que leva aos desastres, antes de tragédia climática, é resultado de um modelo urbanístico contrário ao que desejamos: voltado essencialmente a interesses imobiliários e negligente com a vida de crianças e suas famílias. A mudança desse modelo exige ações coordenadas entre os entes federativos, com envolvimento da população afetada, para um atendimento prioritário aos moradores de baixa renda dos municípios, além das políticas de prevenção e mitigação de risco, como aponta o <a href="http://www.labcidade.fau.usp.br/nota-do-observatorio-de-remocoes-sobre-decisao-judicial-que-autoriza-remocao-forcada-no-litoral-norte-de-sp/">Observatório de Remoções</a>, projeto colaborativo entre laboratórios de pesquisa da USP, UFABC e Unifesp.
Pensar adaptação climática, considerando as infâncias e adolescências, passa pela construção de um modelo de cidade mais sensível, participativo e territorializado, atento à diversidade e, sobretudo, às desigualdades estruturais do nosso país. É o que afirma Diosmar Filho, professor e coordenador da especialização em Estado de Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais da Universidade Federal da Bahia (UFBA) ao <a href="https://lunetas.com.br/racismo-ambiental-e-climatico/">Portal Lunetas</a>: “Quando a gente luta pelo meio ambiente, lutamos por uma infância que ainda não chegou. E quando ela chegar, precisará receber da gente um ambiente em condições de vida e igualdade".

Barra do Sahy chuvas

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JOTA

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