Lígia Ziggiotti

Em 16 de setembro de 2022, o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) suspendeu a<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14434.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2014.434%2C%20DE%204%20DE%20AGOSTO%20DE%202022&amp;text=Altera%20a%20Lei%20n%C2%BA%207.498,de%20Enfermagem%20e%20da%20Parteira."> Lei 14.434/2022</a>, que estabelecia o piso salarial de R$ 4.750 mensais para a enfermagem no país. Menos de uma semana depois, a mesma corte discutiu a obrigatoriedade estatal de garantir vagas em creches e em pré-escolas para crianças de até cinco anos. 
Pautado pelo ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/luiz-fux">Luiz Fux</a> em sua última sessão como presidente do Supremo Tribunal Federal, o Recurso Especial 1008166 flertou com o retrocesso. Rompendo com o entendimento construído em 2005 pelo já aposentado ministro Celso de Mello de que o acesso à creche é dever constitucional do Estado e que pode ser judicialmente demandado pelos cidadãos, Fux propôs em seu voto condicionar este direito à comprovação de incapacidade financeira parental para os custos com eventual matrícula em instituição particular. Para o fôlego da concepção correta de universalidade da educação infantil no país, a maior parte da corte não acompanhou o relator. 
Especialmente as mães pretas e pobres dependem de uma articulação tensa com as creches públicas e com as outras mulheres de suas famílias e de suas comunidades para contornarem as demandas cotidianas das crianças – de quem pouco ou nada se ocupam os homens. Logo, restringir o acesso às instituições significaria não só uma afronta aos sujeitos de direito de até cinco anos como também àquelas a quem sobraria o peso de um possível precedente que foi, felizmente, barrado pela maioria dos ministros. 
Mesmo assim, a tese de que o cuidado configura um valor jurídico digno de proteção respira por aparelhos. A partir de um argumento tão orçamentário quanto o que ameaçou o direito à educação pré-escolar, mantém-se suspenso, até uma provável intervenção do governo federal através de Medida Provisória anunciada para esta temática, o mínimo existencial das enfermeiras – substantivo que se flexiona, sem dificuldades estatísticas, no feminino.
Entre creches e hospitais, há um precarizado proletariado formado por mulheres. Elas constituem 85% da enfermagem, segundo dados do Conselho Federal da classe, e aproximadamente 95% da docência pré-escolar. Por outro lado, em bancos do Supremo Tribunal Federal, que garantem aos ministros rendimentos dez vezes maiores do que o mínimo que se tenta garantir às enfermeiras, são mais raras. Compõem uma taxa de nomeação de apenas 11,1% entre 2000 e 2021. 
A percepção de que julgar consiste em uma atividade mais digna de reconhecimento patrimonial do que cuidar revela uma estratégia – ainda que sem estrategistas, conforme uma conhecida lição foucaultiana – para a perpetuação da desigualdade. 
Construído como doméstico e íntimo, ao invés de político, o ato de cuidado é percebido, socialmente, como produto do amor. Mobiliza aplausos em janelas durante crises sanitárias, sacralização materna em discursos religiosos e maçãs bem lustradas em dia das professoras. Mas a comoção popular depende, maliciosamente, da capacidade destas cuidadoras em silenciarem sobre o próprio sofrimento para que a sua dura atividade se mantenha despolitizada. Denunciar as condições nas quais operam significa desestruturar uma ilusão de autonomia a quem se privilegia do trabalho emocional, físico, relacional, sexual e cognitivo, gratuito ou mal remunerado, delas – em geral, homens tão brancos, heterossexuais e patrimonialmente favorecidos quanto os frequentes tomadores de decisões do país. 
A lógica neoliberal insiste em uma fatalista falácia de ausência de viabilidade financeira para as necessidades materiais dos grupos mais vulnerados socialmente. Mas as narrativas de que faltam recursos para amparar as demandas de quem provê cuidados ocultam que, em verdade, não se sofre de escassez de dinheiro. Com efeito, para o piso salarial da enfermagem, a Emenda Constitucional 127/2022 tratou de especificar que os superávits dos fundos públicos cobrem, até folgadamente, o impacto da garantia proposta a esta classe de trabalhadoras. Sofre-se, então, é de más escolhas sobre a quem se destinam tantos recursos. 
Em geral, parecem falar mais alto os interesses privados – como os da Confederação Nacional de Saúde, representativa dos complexos hospitalares lucrativos, que advogou pela derrubada da Lei 14.434/2022 junto ao Supremo Tribunal Federal, e cuja pretensão, em sede de liminar, segue atendida. Do outro lado, os interesses até agora minimizados, esperançosos pela prometida Medida Provisória do governo federal para a derrota do entendimento da corte, também não têm formas abstratas. É chegado o momento de se revelar: têm gênero, raça e classe social.

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JOTA

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