Renato Silveira

O Brasil é o país do jeitinho. Essa alegação, bastante corriqueira em rodas informais, ganhou certa cientificidade com vários estudos, em especial com o ensaio, dos anos 1970, de Keith Rosenn, "The Jeito: Brazil's institutional by-pass of formal legal system and its developmental implications". Nos anos 2010, no entanto, o que se mostrava antes como peculiar, ganhou outros ares. Não raro, não mais se vê a questão unicamente como curiosa solução informal de problemas, mas como verdadeira chaga social vinculada à corrupção.
De fato, há tempos percebe-se uma pauta de política internacional contra a corrupção, a qual, muito para além de estipulação ética, pretende, sim, um nivelamento do campo de jogo econômico, visando paridade de armas entre os agentes envolvidos com o Estado. Daí, o ressurgir da velha e conhecida máxima de que ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil, adaptada às noções do crime de corrupção. Ganha, pois, a corrupção, as vestes de grande inimigo a ser combatido, o que é presente em termos normativos com a Lei Anticorrupção ou em tantas pautas políticas.
É interessante recordar, nesse sentido, a percepção debatida, nos anos 1990, quando das acusações ao Governo Collor. Mencionava-se, então, sobre a questão vivida pela legislação brasileira sobre a bilateralidade do crime de corrupção. Recorde-se que o Brasil optou por tratar a questão em crimes distintos, notadamente sobre a ideia de corrupção passiva – relativa ao corrompido –, no art. 317, do Código Penal (solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem), e a ideia de corrupção ativa – relativa ao corruptor –, no art. 333, do mesmo estatuto repressivo (oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício). Embora tipicamente independentes, por óbvio nota-se certa ligação entre ambos. Existe, é certo, unicidade existencial de cada qual, podendo haver punição de um sem obrigatória punição de outro. Podem se notar dúvidas, ainda, sobre as noções de ato de ofício ou outros termos, como se viu, à miúde, no tão debatido caso mensalão, mas essa não parece ser a questão crucial.
Existe, no entanto, uma exceção a esse estado de coisas. Isso se daria quando não há uma índole corruptora própria por parte do agente. Em outras palavras, pode-se concluir, no caso concreto, por uma verdadeira extorsão vivida pelo particular face ao agente público. Ao invés de criminoso, esse particular seria, de fato, vítima. É a situação descrita no crime de concussão, visto no art. 316, do Código Penal (exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida).
Pois bem, a proximidade entre os tipos penais, conhecida por todo aluno de Direito, gera um problema pontual, e que hoje parece voltar à tona. Uma das saídas defensivas frequentes para acusação de corrupção ativa acaba por se mostrar, pois, justamente na idealização de que teria havido uma situação de concussão, ou seja, uma real extorsão da qual o particular se viu como vítima. Não seria ele um corruptor, mas sim, extorsionado pela situação concreta.
Esse cenário, no entanto, em casos extremos, há de ser percebido dentro de um quadro maior de uma criminologia econômica, sob pena de real perda de referência. Nesse diapasão, poder-se-ia, mesmo, afirmar pela situação de uma concussão ambiental, onde, mais do que tudo, o ambiente corrupto na sua essência, acaba por todos confundir, situação tão discutida na realidade italiana. Imagine-se, pois, como recorda o catedrático da Universidade de Bologna, Vittorio Manes, que em um ambiente de ilegalidade difusa (tão presente em alguns setores da administração pública brasileira), se espera, de antemão, o pedido de extorsão por parte do funcionário. Sabe-se, profanamente, que ou se entrega dinheiro, ou o pedido, ainda que legitimo, nunca será efetivado. Antes mesmo de se verificar contextualmente esse pedido, não raro, o particular vem a entregar dinheiro ao funcionário. Seria ele corruptor? Mesmo não se verificando concretamente uma situação extorsiva, o ambiente, previa e sabiamente corrupto, tinha como regra a entrega de dinheiro para que a máquina funcionasse. Poder-se-ia concluir que, não havendo uma intencionalidade criminosa por parte do particular, não haveria crime por parte deste, ou essa seria uma leitura simplesmente ilusória de um competente defensor?
Sob olhares éticos, essa sorte de alegação pode parecer um tanto exagerada, mas são inúmeros os precedentes mundo afora. A possibilidade de existência de concussão ambiental é absolutamente real, quanto mais em países latinos e com a construção jurídica próxima à brasileira. O mundo dos negócios, por exemplo, sabe, perfeitamente, que o jeitinho nacional ganhou ares de ilegalidade explícita há tempos, e que, por vezes, é exigência de sobrevivência no mercado. O Judiciário nacional, exposto a essa realidade, em especial à básica noção de que não se trata de simples tese de defesa, mas de construção dogmaticamente alicerçada, deve ser sensível a tais alegações, sob pena de injustiça pontual. Esse, sem dúvida, um desafio interessante de ser avaliado do ponto de vista formal.
Os críticos, é verdade, poderiam se insurgir, afirmando que isso implicaria em falência completa do sistema. Não deixam eles de ter certa razão. E isso, por dois motivos. O primeiro, pela visualização de que várias culturas, como a brasileira, ainda aceitam, mesmo que informalmente, tais atos. O segundo, no entanto, talvez diga respeito a uma necessidade de reformulação esperada da legislação. As descrições típicas tradicionais não se adequam ao pretenso combate moderno da corrupção. Enquanto não se der um passo a mais, superando-se as vetustas descrições de corrupção ativa, passiva, e de concussão, há de se imaginar que um ambiente corrupto venha a constranger o particular, sujeitando-o, sim, a uma concussão ambiental, logo, a um não-crime. Observe-se, contudo, que tais considerações devem ser aceitas ou rejeitadas não por acepções de caráter íntimo, mas alicerçadas no Direito, e sempre no Direito.
Em um cenário bastante crítico, como o atual, em que o pragmatismo parece superar as construções dogmáticas, talvez seja o tempo de se voltar a uma certa preocupação de base científica. Embora a corrupção seja o grande ponto de debate atual – e isso não se nega –, ela não pode justificar o simples desprezo pela ciência do Direito. Pelo contrário. Somente com o enfrentamento sério das objeções de fundo é que, talvez, consiga se chegar a um justo esperado. Se assim não o for, estar-se-á, apenas, a legitimação de uma violência não menos grave e traumática – ainda que a longo prazo – que o próprio crime em si.

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JOTA

Esforço anticorrupção não pode justificar desprezo pela ciência do Direito

A corrupção e seu entorno

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