Ana Claudia Borges de Oliveira

Nos próximos dias, torcedores do mundo inteiro estarão de olho nos estádios do Qatar e nos jogadores-estrelas de diversos países correndo atrás da bola – e das câmeras.
Enquanto os atletas buscam o ouro em campo, fiscos do mundo inteiro já quantificam o peso em ouro daquelas imagens e qual a tributação da renda gerada por tais divulgações. Se o jogador tem renda gerada em razão da divulgação da imagem, necessário avaliar como a legislação admite sua administração e se há e quando há incidência do imposto sobre a renda.
Enquanto os arts. 5º, X da Constituição Federal e 12 do Código Civil conferem à imagem o status de direito da personalidade, inviolável, intransmissível e irrenunciável, o art. 87-A da Lei Pelé (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm">Lei 9.615/1998</a>), incluído pela Lei 12.395/2011, prevê que o direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo.
Há mais de 20 anos, o STJ, ao julgar o direito de imagem de Pelé e Garrincha, concluiu que a imagem dos atletas possui conteúdo econômico e patrimonial, transmissível e passível de gerar receitas (REsp n. 74.473/RJ, rel. min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 23/2/1999, DJ de 21/6/1999).
Adiante, a Lei 13.155/2015 incluiu o parágrafo único ao art. 87-A da Lei Pelé para determinar que, quando houver, por parte do atleta, a cessão de direitos ao uso de sua imagem para a entidade de prática desportiva detentora do contrato especial de trabalho desportivo, o valor correspondente ao uso da imagem não poderá ultrapassar 40% da remuneração total paga ao atleta, composta pela soma do salário e dos valores pagos pelo direito ao uso da imagem.
O percentual de 40% aplica-se somente ao caso de cessão de direito de imagem e contrato de trabalho esportivo feitos entre o mesmo clube esportivo e após a vigência do dispositivo. Exemplificando, valores recebidos por cessão do direito de imagem ao álbum de figurinhas da Copa ficam de fora desta trava de 40%.
Há, ainda, o direito de arena, que não confunde-se com o de imagem, e consiste na transmissão da imagem de quem participa de uma competição esportiva. Nos termos dos arts. 42 e 42-A da Lei Pelé, serão distribuídos aos atletas profissionais, em partes iguais, 5% da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais do espetáculo desportivo e terá caráter de pagamento de natureza civil, salvo disposição coletiva de trabalho em contrário.
Não obstante, o exercício de uma atividade personalíssima, por meio de pessoa jurídica, sem que se trate de sociedade unipessoal, é amparado pelo art. 129 da Lei 11.196/2005, que surgiu no ordenamento jurídico com a finalidade de viabilizar a contratação de pessoa jurídica para a prestação de serviços de natureza intelectual, cultural, artística ou científica. Entende-se por atividade personalíssima aquela que é intuito personae, ou seja, cuja realização deve ser feita pela própria pessoa física contratada. Em outras palavras, personalíssimo é aquele ato ou serviço que depende essencialmente do indivíduo a que se refere para ser realizado.
Em dezembro de 2020, ao finalizar o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 66, o STF declarou a constitucionalidade do art. 129 da Lei 11.196/2005. A relatora, ministra Cármen Lúcia, considerou que o estabelecimento de vínculo jurídico deve pautar-se pela mínima interferência na liberdade constitucionalmente assegurada e revestir-se de grau de certeza para assegurar o equilíbrio nas relações econômicas e empresariais.
Cingindo-se a dúvida quanto à aplicação do citado art. 129 aos atletas profissionais sob o fundamento de inexistir serviços intelectuais de atletas, fato é que o dispositivo permite a prestação de serviços personalíssimos por intermédio de pessoa jurídica. O legislador usa uma cláusula aberta ao deixar a expressão “inclusive os de natureza científica, artística ou cultural”, ao sinal que os serviços podem ser culturais, artísticos etc., e não apenas científicos.
Por outro lado, a fiscalização tributária entende que, ao lado da intransmissibilidade do direito de imagem, existe um disfarçado pagamento de salário ao atleta profissional que, fugindo à incidência do IRPF e das contribuições previdenciárias, recebe os valores por meio de uma pessoa jurídica, como rendimentos gerados pela exploração do direito de imagem, com a incidência apenas do IRPJ.
Diversos atletas, como Neymar Jr., Alexandre Pato e Gustavo Kuerten, e os técnicos Cuca e Felipão já enfrentaram processos sobre o tema. No âmbito do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/carf">Carf</a>, a jurisprudência segue indefinida.
Ainda em 2009 (antes das principais alterações da Lei Pelé), a 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 2ª Seção deu provimento ao recurso voluntário da Sociedade Esportiva Gama sob o entendimento de que o “direito de imagem, valor que é pago por terceiros, detentores dos meios de comunicação, aos atletas, como remuneração pela transmissão dos jogos não constitui salário, direto ou indireto. Isso porque, os valores pagos não se destinam à remuneração do custeio do trabalho prestado pelo atleta ao clube contratante, nem tem relação alguma com a execução regular do contrato de trabalho. Tratando-se, na verdade, de pagamento originário, efetuado pelos compradores diretos dos direitos dos espetáculos, aos seus astros, sob a forma de negócios comerciais completamente distintos dos contratos de trabalho” (Acórdão nº 2301-000.618).
Ao julgar a cessão dos direitos de imagem de Gustavo Kuerten, a 2ª Turma da Câmara Superior, pelo voto de qualidade à época vigente, concluiu, em desfavor ao atleta, que “os rendimentos decorrentes de serviços de natureza eminentemente pessoal, inclusive os relativos a cessão de direitos de imagem, devem ser tributados na pessoa física do efetivo prestador do serviço, sendo irrelevante a denominação que lhes seja atribuída ou a criação de pessoa jurídica visando alterar a definição legal do sujeito passivo” (Acórdão nº 9202-004.548).
No início de novembro, relatei o voto de mais uma autuação de jogador de futebol. Na ocasião (acórdão ainda não publicado), a 2ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção, por maioria de votos, decidiu pela possibilidade da cessão e da exploração da imagem do atleta por meio de pessoa jurídica, desde que haja contrato de natureza civil, que não se confundirá com o contrato desportivo.
Emblemático o caso do jogador Neymar Jr., no qual esta mesma Turma julgadora, na composição de 2017, reduziu parte do valor lançado contra o jogador e decidiu, entre outros apontamentos, que o direito de imagem tem vertente patrimonial disponível, igualmente diferenciando a imagem, em si, de seu aspecto puramente econômico (Acórdão nº 2402-005.703).
Lá fora, em outubro deste ano, o técnico da seleção portuguesa, Fernando Santos, foi julgado pelo Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária (CAAD) de Portugal, que manteve a autuação fiscal contra ele lavrada sob os fundamentos de que os valores recebidos por meio da pessoa jurídica eram verbas salariais, abuso da forma jurídica adotada por inexistência de razões econômicas válidas para interposição da PJ, que foi utilizada para alcançar resultado fiscal mais favorável e aplicação, ao caso, da chamada Cláusula Geral Anti-Abuso (CGAA) – no Brasil, falamos em norma geral antiabuso.
A CGAA, prevista no nº 2 do art. 38º da Lei Geral Tributária (LGT) de Portugal, tem como princípio a prevalência da substância sob a forma e, na <a href="https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_busca_art_velho.php?nid=253&amp;artigonum=253A0038&amp;n_versao=3&amp;so_miolo=">redação em vigor à data dos fatos</a> e aplicável ao caso (posteriormente alterada pela <a href="https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=3058&amp;tabela=leis&amp;ficha=1&amp;pagina=1&amp;so_miolo=">Lei 32/2019, de 3 de maio</a>), estabelecia que são ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de fatos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas. Assim, apesar de os contratos terem sido celebrados, formalmente, com a sociedade, o que deles resulta, em substância, seria a contratação de prestações de serviços pessoais e intransmissíveis.
Ainda sobre a seleção de Portugal, notícia desta semana informa que Cristiano Ronaldo é a primeira pessoa a alcançar 500 milhões de seguidores no Instagram. Por ora, não duvidem do valor desta imagem, enquanto aguardamos os próximos desdobramentos tributários aqui e fora do Brasil.

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JOTA

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