Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Golfinhos e baleias se engalfinhavam. A batalha já durava muito tempo quando, vindo das profundezas, uma carpa tentou reconciliá-los. Mas um dos golfinhos falou: 
- Antes morrer sob os golpes de nossos adversários, que te ter como mediador!”
- Esopo, Fábula 39 (século VI A.C.)</blockquote>
Existe um debate milenar acerca de qual seria a segunda profissão mais antiga do mundo. Alguns sustentam que seria diplomacia. Outros que seria a espionagem. E outros, ainda, que seria a medição. Ronald Reagan achava que eram os políticos, “cada vez mais parecidos com a primeira profissão mais antiga”, provocava ele. Não vejo grandes diferenças: tudo farinha do mesmo saco.
Independente de quem ande pela sacristia, a notícia auspiciosa é a de que, no último dia 4 de junho, o Brasil assinou a Convenção de Singapura sobre Mediação de 2019.<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> O texto ainda deverá ser submetido aos trâmites internos de ratificação. Trata-se, contudo, de um acordo internacional que visa a criar parâmetros jurídicos uniformes para o reconhecimento e a execução transfronteiriços de acordos celebrados por mediação. Na ausência de um tratado internacional como a Convenção de Singapura, acordos mediados somente podem ser reconhecidos em outras jurisdições como se fossem contratos, o que demanda procedimentos judiciais de conhecimento e não lhes confere, de imediato, a força executória de uma decisão judicial ou arbitral. A questão é de grande importância nestes tempos de pandemia, quando se espera que a mediação possa se apresentar como uma alternativa mais flexível e economicamente viável para empresas atuantes no comércio internacional.
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O método em si não é novidade, exceto pela uniformização do reconhecimento dos seus resultados em escala global. A mediação, de fato, vem sendo utilizada como método preferencial de solução de controvérsias desde os primórdios da história universal. No Egito dos Ptolomeus (305 A.C.-30 A.C.), por exemplo, havia mesmo uma política governamental de referir uma disputa primeiro para mediação e somente aceitá-la se o intento de mediar houvesse falhado. Derek Roebuck<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> relata que os pedidos eram formulados em petições de papiro, endereçadas a um funcionário da corte do governador local, o strategos. Os arquivos antigos eram vendidos para funerárias, que usavam o papiro para embalsamar múmias. Em muitas delas pode-se ler ainda hoje o seguinte despacho-padrão, em grego: “malista dialuson autos” – “melhor reconciliá-los. Se não tiver sucesso, remeta novamente para o tribunal”. A judicialização completa da vida humana, cara leitora, é fenômeno do século XXI. Esperamos que não dure.
O Brasil tem tradição na área. Na esfera do direito internacional público, por exemplo, a diplomacia brasileira angariou enorme prestígio como mediadora, em especial em nosso entorno regional, a América do Sul. Nos anos 1930, a questão de Letícia, na fronteira entre o Peru e a Colômbia, e a Guerra do Chaco, entre o Paraguai e a Bolívia, que, segundo o embaixador Rubens Ricupero, foi “a maior guerra na América do Sul durante do século XX”<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, encontraram solução graças à mediação de diplomatas brasileiros. No primeiro caso, destacou-se a atuação de Afrânio de Melo Franco e, na segunda, a de José Carlos de Macedo Soares. É interessante registrar que, no caso de Letícia, Melo Franco atribuía o sucesso da mediação inteiramente “ao determinado espírito de conciliação e a alta competência jurídica dos delegados”.<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Disposição conciliatória e competência jurídica: esses os elementos essenciais de qualquer mediação de sucesso. Vale anotar.
<blockquote class="jota-article__eye">Na esfera do direito internacional privado, por sua vez, a Convenção de Singapura tem a possibilidade de tornar-se um instrumento muito útil para o comércio exterior brasileiro, em especial para o agronegócio, particularmente pelo fato de a China ser o maior parceiro comercial do Brasil.</blockquote>
Isso porque uma das características mais marcantes da cultura jurídica chinesa é a sua ênfase na mediação como o principal método de solução de controvérsias no país asiático. A tradição chinesa na matéria remonta a filosofia de Confúcio (551-479 A.C.), para a qual a harmonia é um dos princípios fundamentais e, portanto, a mediação, por buscar harmonizar amigavelmente as partes, seria o método de solução de controvérsias mais eficaz.<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>Na China, a litigância e a arbitragem são mesmo vistas como soluções de último caso, porque terminam não com a conciliação das partes, em um processo amigável, mas sim com a imposição de uma decisão vinculante, obtida através de um processo contencioso.<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Famoso mesmo o provérbio chinês que diz: “é melhor morrer de fome do que se tornar um ladrão; é melhor ser aborrecido até a morte do que iniciar um processo judicial.”<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
A assinatura da Convenção de Singapura, então, pode fazer da mediação um grande instrumento facilitador do comércio exterior brasileiro. Isso porque permitirá soluções mais ágeis e baratas para disputas comerciais internacionais que, preservando o relacionamento das partes, permitirão a continuidade dos negócios, sem as disrupções e custos de fricção causados por processos judiciais e mesmo arbitrais. A Convenção de Singapura pretende ter o mesmo efeito revolucionário para a mediação internacional que a Convenção de Nova Iorque de 1958 teve para a arbitragem internacional, estabelecendo um mecanismo de reconhecimento de laudos arbitrais emitidos em jurisdições distintas. O eminente internacionalista sueco J. Gillis Wetter (1931-1995) dizia que a Convenção de Nova Iorque “tem sido o pilar mais importante a sustentar o edifício da arbitragem internacional”.<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Sobre a Convenção de Singapura, seguramente, erguer-se-á o edifício da mediação internacional. Já não era sem tempo.
É importante que as partes tenham em mente que a Convenção de Singapura se aplica, apenas, a disputas comerciais internacionais. Para a execução do acordo em outra jurisdição, as partes devem apresentar evidência de que o acordo foi celebrado por meio de um processo de mediação, o que pode ser feito pela demonstração da assinatura de um mediador respeitado ou de uma instituição de reputação, na linha da observação do embaixador Melo Franco. Um cuidado importante é o de definir, no bojo do acordo, as penalidades pelo seu descumprimento, que podem variar de jurisdição para jurisdição se não tiverem sido preestabelecidas. O fundamental para as partes que queiram buscar uma solução via mediação é ter mente que, tal qual na arbitragem, a qualidade de uma mediação é diretamente proporcional à qualidade dos mediadores. Não podem ser “carpas”. Do contrário, os golfinhos preferirão o cortejo fúnebre de um processo judicial.<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
A Convenção de Singapura sobre Mediação, por fim, certamente representará um impulso a uma das muitas “segunda profissão mais antiga do mundo”. A implementação do tratado é, sem dúvida, auspiciosa, sempre com a qualificação de Lorde Denning em Bremer Vulkan<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>: “quando eu era jovem, um homem-sanduíche de cartola costumava desfilar na frente destes tribunais com suas pranchas na frente e atrás, proclamando ´arbitre, não litigue´. Era um conselho muito bom, desde que as arbitragens fossem conduzidas rapidamente: como muitas ainda o são na City de Londres. Mas não é tão bom quando as arbitragens se arrastam para sempre.” O mesmo vale para a mediação: “malista dialuson autos” – “melhor reconciliá-los”. Rapidamente, de preferência.
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<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O título oficial do tratado é “Convenção das Nações Unidas sobre Acordos de Transação Internacionais resultantes de Mediação”. O texto completo do instrumento pode ser consultado no site da convenção: https://www.singaporeconvention.org/convention/the-convention-text/
<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Roebuck, Derek. ''Best to Reconcile' : Mediation and Arbitration in the Ancient Greek World', 66, Arbitration: The International Journal of Arbitration, Mediation and Dispute Management, Issue 4, 2000, pp. 275-287.
<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ricupero, Rubens. A Diplomacia na Construção do Brasil. 1750-2016. Rio de Janeiro: Versal, 2017. p. 345.
<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Apud Melo Franco, Afonso Arinos de. Um Estadista da República. Vol. III. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. p. 1483.
<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Pissler, Knut B. Mediation in China: Threat to the Rule of Law? Oxford: OUP, 2012.
<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Cohen, Jerome Alan. “Chinese Mediation on the Eve of Modernization.” California Law Review, vol. 54, no. 3, 1966, pp. 1201–1226.
<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Idem.
<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Wetter, J. Gillis. ´The present status of the International Court of Arbitration of the ICC: an appraisal´, American Review of International Arbitration, vol 91, I, 1990, p. 93.
<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> A qualidade dos mediadores e do processo de mediação em si são mesmo mencionados no texto do tratado como motivos para a recusa, pelos tribunais dos Estados-Parte, do reconhecimento e da execução do acordo, conforme o Art. 5,1(e) e (f) da Convenção de Singapura.
<a href="applewebdata://C20CE2DC-2EF2-4804-B0C3-CD71926E3A36#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Bremer Vulkan v South Indian Shipping [1981] AC 909

solução de conflito

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JOTA

A assinatura do Brasil pode representar uma verdadeira revolução para o setor agroexportador

A Convenção de Singapura sobre mediação

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