Erlan Valverde

Helena Tuccio Teixeira

Recentemente, a Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (Sefaz-SP) publicou a Resposta à Consulta 25.343/2022. Essa RC reconhece que incide o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/itcmd">ITCMD</a>) quando um beneficiário, localizado no mencionado estado, receber patrimônio decorrente de trust irrevogável instituído por pessoa física ou jurídica localizada no exterior.
Em suma, esse primeiro posicionamento do fisco sobre a matéria conclui que a instituição do trust, quando irrevogável e sem que haja qualquer intenção de investimento de seu patrimônio por parte do settlor, poderia se configurar como doação para o beneficiário, que estaria sujeito ao pagamento deste imposto.
Utilizado amplamente para planejamento sucessório em países de tradição anglo-saxã, o trust é um instituto através do qual o settlor (ou instituidor) transfere a propriedade de seus bens a um administrador (trustee), para que este o administre em prol de um terceiro (o beneficiário), que é detentor do direito de interesse econômico. O beneficiário pode ser o próprio instituidor ou terceiros nomeados por ele, pelo trustee ou por lei.
Do ponto de vista jurídico, portanto, existem dois atos distintos para transferência patrimonial neste instituto: o primeiro, realizado entre o settlor e o trustee para composição do patrimônio do trust, sem que haja qualquer caráter de doação; e o segundo, entre o trustee e o beneficiário que, a depender das características do instituto, pode ter caráter de doação.
Explicamos: o beneficiário, enquanto o patrimônio que passará a ser de sua titularidade estiver sob a administração do trustee, é considerado apenas como beneficiário em potencial, tornando-se beneficiário efetivo após a aquisição de direito incondicional sobre aqueles bens cedidos pelo settlor.
Ainda, conforme será explorado adiante, nem todos os trusts podem ser considerados como doação, e essa característica depende exclusivamente da vontade do settlor no momento da constituição do instituto. Por exemplo, se esse for revogável, não há como se vislumbrar uma vontade de doar por parte do instituidor, tendo em vista a reversibilidade da estrutura a qualquer momento.
Na <a href="https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/RespostasDeConsultas.aspx?StartDate=2023">RC 25.343/2023</a>, o contribuinte descreveu que foi constituído, por pessoa jurídica sediada no exterior, um trust (i) que é irrevogável; (ii) cujo settlor não se confunde com o beneficiário; (iii) cujo patrimônio é autônomo e independente daquele de titularidade do trustee; e (iv) que terá a distribuição de seu fundo para o beneficiário a título gratuito.
O contribuinte questionou, de maneira direta, se a distribuição de ativos pelo trust deveria ser considerada como doação e, em caso positivo, se deveria ser recolhido o ITCMD na transferência desses bens a pessoa física ou jurídica com domicílio ou sede no Brasil.
A Sefaz analisou o trust descrito à luz do instituto da doação. De maneira geral, entendeu que a transferência para o trust consistiu em ato de liberalidade do titular, o qual é verificado no momento da instituição do trust.
Partindo da premissa (equivocada) de que o ato de constituição é qualificado como doação, o Fisco, aplicando o artigo 155, inciso I, da Constituição Federal (CF) e o artigo 2º, inciso II, da <a href="https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2000/lei-10705-28.12.2000.html">Lei Estadual 10.705/2000</a>, a Sefaz-SP entendeu que o ITCMD incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido por doação e que, nesse sentido, poderia ser considerado como doação o contrato por meio do qual uma pessoa, física ou jurídica, por liberalidade, transfere seus bens ou vantagens para o patrimônio de outrem (artigo 538 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/codigo-civil">Código Civil</a>).
O fisco fundamenta seu entendimento na presença do animus donandi, da intenção de doar, para que essa operação possa ser caracterizada como doação e esteja sujeita à incidência do ITCMD.
Ao entregar seus bens para a instituição do trust, o settlor, na visão fazendária, não teria a intenção apenas de realizar investimentos financeiros ou mesmo salvaguardar seu patrimônio, mas sim fazer com que ele chegue ao beneficiário de forma gratuita, havendo o animus donandi e, por isso, incidiria o ITCMD na incorporação destes bens ao patrimônio do beneficiário.
Cabe, aqui, uma importante crítica, tendo em vista que o ato de doação poderia ser verificado apenas na efetiva distribuição de ativos pelo trustee aos beneficiários. Esse, por sinal, é o entendimento do excelente <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2339412">PLP 145/2022</a>, que determina a incidência do ITCMD no momento que o beneficiário potencial adquire o direito incondicional e imediato sobre qualquer parcela de ativos sob o trust, tornando-se beneficiário efetivo. Mais recentemente, entendimento similar foi proposto pela <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/157178">MP 1171/2023</a>, que, entre outras medidas, regulamenta o trust para fins da legislação tributária federal.
A Fazenda claramente deixou de observar a existência de dois atos distintos no trust: aquele realizado entre o settlor e o trustee e aquele firmado entre este último e o beneficiário.
Nota-se que a Sefaz-SP entende pela incidência do imposto desde o momento da instituição do trust, quando já existiria a intenção de doar por parte do settlor. Legitima-se, assim, que se exija, do beneficiário, ITCMD com incidência de multa e juros, pois, quando ele adquirir seu direito incondicional aos bens e direitos do trust, o fato gerador do tributo (instituição pelo settlor) já estará no passado. Outro risco decorrente desse entendimento é de que poderia, inclusive, ocorrer bitributação, pois a transferência do trustee para o beneficiário poderia ser vista como nova doação, também sujeita ao ITCMD.
Entretanto, há uma particularidade no trust analisado que faz com que o entendimento da Sefaz paulista seja ainda mais inconsistente: o settlor está localizado no exterior.
Em que pese o artigo 4º da Lei Estadual 10.705/2000 determinar que, nas doações realizadas por doador localizado no exterior e cujo donatário esteja no estado de São Paulo, incide o ITCMD, houve declaração de inconstitucionalidade desse mesmo dispositivo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do RE 851.108/SP, em regime de repercussão geral (Tema 825).
O Tribunal Constitucional entendeu que haveria uma hipótese de eficácia contida da lei nesse caso, tendo em vista que, na ausência de Lei Complementar em nível nacional que tratasse sobre a matéria, os estados não deteriam competência para tributar doações recebidas de doadores localizados no exterior.
A Sefaz, afastando a decisão proferida pelo STF sob o argumento de que o referido artigo 4º não foi retirado do ordenamento jurídico, entendeu que é devido o ITCMD ao estado de São Paulo no caso de trust irrevogável instituído por settlor sediado ou domiciliado no exterior.
Nesse contexto, é importante destacar que, do ponto de vista técnico, a inconstitucionalidade declarada no Tema 825 não poderia implicar na declaração de nulidade, por incompatibilidade com a CF, ou suspensão da eficácia do artigo 4º do texto legal.
Em primeiro lugar, pelo fato do Senado, poder legiferante, não ter suspendido os efeitos da executoriedade da lei, exercendo a competência atribuída pelo art. 52, X da CF/88.
Em adição, a decisão no Tema 825 não questionou a constitucionalidade do texto do próprio artigo 4º, mas sim a ausência de lei complementar que autorizasse a aplicação de uma norma constitucional de eficácia contida.
Se o fisco determina que o trust é qualificado como doação, quando irrevogável, deveria guardar respeito à decisão proferida pelo STF. Com a decisão adotada na RC, a Sefaz-SP perde a oportunidade de reduzir o número de litígios sobre a matéria, e esse cenário demonstra ainda mais a necessidade de discussão acerca do PLP 145/2022 e a regulamentação plena do trust no Brasil.
Assim, caso existam contribuintes enquadrados na mesma situação que a descrita na Consulta, entendemos pela possibilidade de ajuizamento de ação judicial para questionar a incidência de ITCMD na hipótese.

Imposto sobre grandes fortunas

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JOTA

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