A mais recente onda fiscalizatória da Receita Federal do Brasil em matéria previdenciária trouxe à tona muitas questões relacionadas às características e aos limites da contribuição destinada ao custeio do benefício previdenciário da aposentadoria especial: a contribuição adicional do SAT/RAT.

Se a quantidade (milhares) de ações judiciais ajuizadas por trabalhadores (com a intenção de obter a aposentadoria especial) e a quantidade (centenas) de autuações fiscais lavradas pelo fisco nos últimos meses (para a cobrança da contribuição adicional do SAT/RAT) denotam a relevância do tema, a falta de um devido enfrentamento do tema (dentro das empresas e perante os Poderes Legislativo e Judiciário) acende um sinal de emergência que não deve ser desprezado.

Nesse sentido, o presente artigo apresentará uma concisa opinião a respeito dos principais aspectos que envolvem a contribuição destinada ao custeio da aposentadoria especial.

De fato, remota à década de 1960 as primeiras normas que se prestaram a regulamentar a concessão da aposentadoria especial. A então Lei Orgânica da Previdência Social (Lei 3.807/1960) delegou ao Poder Executivo a indicação das atividades profissionais que, por serem consideradas penosas, insalubres ou perigosas, ensejariam a concessão da aposentadoria especial em 15, 20 ou 25 anos.

O Decreto 53.831/1964, com o propósito de regulamentar a norma acima mencionada, condicionou a concessão do benefício previdenciário à comprovação do tempo de trabalho permanente e habitualmente prestado no serviço ou serviços, considerados insalubres, perigosos ou penosos, durante o prazo mínimo fixado na lei.

Transportando-nos diretamente aos dias atuais, elegemos os principais acontecimentos ocorridos nas últimas seis décadas que impactaram de forma significativa o custeio da aposentadoria especial:

A publicação da Lei 9.032/1995, que afastou a concessão da aposentadoria especial baseada tão somente na comprovação do exercício de determinada atividade econômica;
A publicação da Lei 9.732/1998, que institui a contribuição destinada ao custeio da aposentadoria especial, correspondente a um adicional de 6, 9 ou 12% sobre a remuneração do empregado exposto a agente nocivo que lhe dê direito ao benefício previdenciário em 25, 20 ou 15 anos;
A publicação do Decreto 4.729/2003, que majorou em 4, 3 ou 2% a alíquota da contribuição previdenciária (em regra, 11% ou, posteriormente, 3,5% no caso de recolhimento de contribuição previdenciária sobre receita bruta, conforme previsto na Lei 12.546/2011) incidente sobre as notas fiscais de serviços prestados mediante cessão de mão de obra;
Em 2014, o julgamento, com repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de um processo de benefício previdenciário – ARE 664.335 - que resultou na fixação de duas teses: a) o direito à aposentadoria especial pressupõe a efetiva e habitual exposição do trabalhador a agente nocivo à sua saúde, de modo que, se o Equipamento de Proteção Individual (EPI) for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo constitucional à aposentadoria especial; e b) na hipótese de exposição do trabalhador a ruído acima dos limites legais de tolerância, a declaração do empregador, no âmbito do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), sobre a eficácia do EPI, não descaracteriza o tempo de serviço especial para aposentadoria (o trânsito em julgado ocorreu em 2015);
A Emenda Constitucional 103/2019 (reforma da Previdência), que reincluiu a necessidade de cumprimento do requisito idade mínima para a obtenção do benefício; e
O Projeto de Lei Complementar 245/2019, já aprovado pelo Senado que, dentre as suas diversas proposições, retoma a ideia de concessão da aposentadoria especial com base no exercício de determinadas atividades econômicas, bem como institui um novo benefício previdenciário para as pessoas que mantêm o exercício da atividade especial após o cumprimento do período mínimo.

Nesses termos, atualmente a concessão da aposentadoria especial e a cobrança da contribuição adicional do SAT/RAT dependem da comprovação de que uma determinada pessoa exerça as suas atividades mediante exposição a um dos agentes nocivos indicados pelo Executivo (Anexo IV do Decreto 3.048/1999), em limite superior ao de tolerância (a partir do qual existe o risco de causar prejuízos à saúde), 1) de forma efetiva (quando as medidas de controle adotadas pela empresa não são capazes de eliminar ou neutralizar a nocividade – artigo 64, §1º do Decreto 3.048/1999) e 2) permanente (não ocasional nem intermitente, no qual a exposição ao agente nocivo seja indissociável da produção do bem ou da prestação do serviço – artigo 65 do Decreto 3.048/1999).

Ocorre que a verificação do preenchimento desses requisitos acima foi, por muito tempo, tarefa atribuída apenas às áreas de saúde e segurança (para definição das medidas de controle e preservação da saúde dos trabalhadores) e de recursos humanos (para emissão do Perfil Profissiográfico Previdenciário, no qual são indicados em quais períodos e funções a pessoa esteve exposta a determinado agente nocivo) das empresas.

E isso ocorreu porque, também por muito tempo, se entendeu que a relação jurídica interessaria apenas aos trabalhadores e à Previdência Social (para avaliação da concessão da aposentadoria especial).

Atualmente, a visibilidade das condições de trabalho se tornou muito maior após essa última fase de implantação do eSocial, na qual unificou a prestação de informações relacionadas à medicina e segurança do trabalho, o que deveria ter gerado uma maior sinergia entre todas as áreas responsáveis pelo reporte nas empresas (i.e.: RH, SST, jurídico etc.).

A ausência de participação das empresas no contencioso relativo à concessão da aposentadoria especial resultou na adoção de uma equivocada presunção pelos Juízes: de que a mera comprovação da exposição a determinados agentes nocivos em limite superior ao de tolerância bastaria à concessão do benefício previdenciário, independentemente da adoção de medidas de controle pela empresa.

Ou seja, todos os meses dezenas, centenas e até mesmo milhares de aposentadorias especiais têm sido concedidas de forma contrária às disposições legais e jurisprudência aplicáveis, contribuindo para o rombo da Previdência na medida em que há concessão de aposentadorias especiais sem o respectivo custeio/contrapartida.

Pior. Diante da desenfreada concessão de benefícios previdenciários, a Receita Federal editou o Ato Declaratório Interpretativo 2/2019, por intermédio do qual definiu que “ainda que haja adoção de medidas de proteção coletiva ou individual que neutralizem ou reduzam o grau de exposição do trabalhador a níveis legais de tolerância, a contribuição social adicional para o custeio da aposentadoria especial (...) é devida pela empresa, (...) nos casos em que não puder ser afastada a concessão da aposentadoria especial, (...).”

Aliás, a supramencionada norma dá fundamento a duas forças-tarefa voltadas à cobrança da contribuição adicional SAT/RAT: uma relativa ao agente nocivo benzeno (que teve como foco em distribuidoras e postos de combustível) e outra relativa ao agente nocivo ruído (que tem como foco todas as indústrias do país).É importante salientar que o fisco tem sido extremamente agressivo na lavratura de autuações fiscais sobre o tema, com a inclusão de diretores e administradores no polo passivo como devedores solidários, além de reflexos criminais.

As autuações relacionadas ao agente nocivo benzeno perderam força em decorrência das decisões judiciais proferidas no processo 1044497-38.2019.4.01.3400, ajuizado pela Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (Fecombustíveis), que suspenderam a eficácia do Ato Declaratório Interpretativo RFB 2/2019 por conta da ilegalidade de se presumir que o agente nocivo, independentemente de sua dose de exposição ou das medidas de controle adotadas pelas empresas, daria direito à aposentadoria especial.

Já em relação ao agente nocivo ruído, dezenas de empresas já foram autuadas nos últimos meses, sendo que em todos os casos o fundamento é o mesmo: a tese fixada pelo STF teria sido a de que a eventual eficácia do EPI não afastaria o direito à aposentadoria especial especificamente para esse agente nocivo. Consequentemente, seria devida a contribuição adicional do SAT/RAT para os trabalhadores sujeitos à exposição habitual ao agente nocivo ruído, independentemente do uso e eficácia de EPI.

A nosso ver, tal entendimento não deve prosperar por inúmeros motivos, dentre eles, o fato que o julgamento do ARE 664.335 não endereçou a questão do custeio da Previdência Social, por se tratar de um processo de benefício, razão pela qual os efeitos da referida decisão não deveriam extrapolar para o campo tributário. E não só isso. A nossa Constituição Federal dispõe que a concessão de aposentadoria deve ser exceção, devendo ser privilegiado à saúde e segurança do trabalhador. Contudo, com base na intepretação do fisco, praticamente todas as indústrias brasileiras serão obrigadas a recolher a contribuição adicional sobre o agente nocivo ruído independente da eficácia do EPI, aumentando o encargo previdenciário para os empregadores e desestimulando o investimento em medidas de segurança no trabalho (isso é um retrocesso!).

Mas não é só, o posicionamento do fisco também não deve ser acolhido seja porque não reflete corretamente o posicionamento adotado pelo STF quando do julgamento do ARE 664.335 (na medida em que a própria Corte Suprema reconhece que essa tese não deve ser considerada como irreversível, eis que a evolução da tecnologia dos EPIs poderá neutralizar/atenuar o agente nocivo ruído aos limites de tolerância), seja porque não reflete a legislação superveniente ao julgamento do STF, ambos no sentido de que a comprovação da eficácia dos EPI afasta o direito à aposentadoria especial.

Nesse aspecto, a demonstração da eficácia dos EPIs demanda a comprovação de sua entrega, utilização e substituição adequadas, assim como a comprovação de que reduzem a exposição dos trabalhadores aos níveis de tolerância.

Como já dito, trata-se de um trabalho multidisciplinar, no qual a área de saúde e segurança é a gestora das informações relativas à exposição das pessoas aos agentes nocivos, a área recursos humanos é a responsável pela declaração dos dados nos documentos oficiais (eSocial) e a área jurídica é a responsável por definir quais são as diretrizes legais aplicáveis e garantir que haja uniformidade de tratamento em todas as esferas (nos processos que envolvem a concessão da aposentadoria especial, no processos que envolvem o pagamento do adicional de insalubridade e nos processos que envolvem a cobrança da contribuição adicional SAT/RAT).

Por fim, vale lembrar que o Legislativo recentemente se debruçou sobre o tema da aposentadoria especial, quando o Senado votou o PLP 245/2019. Na ocasião, os debates estiveram focados unicamente nos benefícios do trabalhador. Não se está aqui a questionar a relevância do tema sob a ótica da proteção social do trabalhador, mas a ausência de busca por estudos técnicos (jurídicos e de saúde ocupacional), de uma devida compreensão dos impactos nos cofres da Previdência Social e, principalmente, da avaliação da eficácia das medidas de proteção adotadas pelas empresas poderão trazer prejuízos irreversíveis.

A contribuição adicional de SAT/RAT ao custeio da aposentadoria especial

Falta de um devido enfrentamento do tema pelas empresas e pelo Legislativo acende sinal de emergência