Artigo

A Constituição, o Supremo e a competência concorrente legislativa

O debate surgido com o combate à crise da Covid-19

Sessão plenária do STF. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF (12/03/2020)

No meio do caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

(DRUMMOND, 1928)

Com a finalidade de promover o combate e enfrentamento dos impactos causados pela COVID-19 o Executivo editou a Medida Provisória n. 926, de 20 de março de 2020, seguida do Decreto n. 10.282, da mesma data, instrumento normativo regulamentador da Lei n. 13.979/20, isto, em apertada síntese, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais.

O Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal (STF), em 23 de março de 2020, questionando a constitucionalidade da referida medida provisória, pois essa seria parcialmente incompatível com a Constituição Federal (ADI n. 6341).

A liminar requerida na ADI n. 6341 foi deferida em parte, “para torna explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente.” dos entes para legislarem.

É de se observar que esse teor decisório abriu relevantes debates sobre a insegurança jurídica de tal posicionamento, uma vez que os estados editaram e continuam editando decretos cada vez mais restritivos, inclusive, mencione-se a título ilustrativo, vedando a circulação de gêneros alimentícios fora de seus limites territoriais. Há de se ter ainda a confusão que avança para a competência concorrente estabelecida no artigo 24 da Constituição, dividida entre União, Estados e o Distrito Federal, donde a União edita normas e os estados e Distrito Federal, normas suplementares.

O equívoco da decisão proferida reside no trazer para o debate a competência comum, diferente da concorrente, estabelecida no artigo 23 da Carta Magna. A competência comum é de ordem concorrente administrativa, não legislativa ou material, e nela sim se incluem os municípios, hipótese onde encontramos o diálogo federativo, isto na ausência de outra expressão.

Nesta toada, importante asseverar que quando houver conflito de interesses entre os entes federativos em matéria de concorrência administrativa deve prevalecer o critério da preponderância de interesses, ou seja, os interesses mais amplos (da União) devem preferir aos mais restritos (Estados, DF e Municípios).

Curioso é que, retomando o tema e analisando ação direta de inconstitucionalidade movida pela Rede Sustentabilidade (REDE) em 24 de março de 2020, contra as Medidas Provisórias n.s 926 e 927 – aqui para o que nos aproveita, a MP n. 926 – o mesmo Supremo Tribunal Federal concluiu por indeferir a liminar reclamada pela REDE pois, as medidas provisórias atacadas “hão de ser examinadas a partir de cautelar maior, abandonando-se o vezo da crítica pela crítica.”; sendo que, a nosso sentir, faltou explicitar que pelas regras constitucionais os estados, em matérias como as disciplinadas pela MP n. 926 – serviços públicos e atividades essenciais – somente podem os entes menores legislar sobre aquilo que não regulado pelo ente maior. Muito menos ainda poderiam os municípios.

Aliás, o debate sobre o

sistema de distribuição de competências materiais e legislativas, privativas, concorrentes e comuns, entre os três entes da Federação, tal como estabelecido pela Constituição de 1988 e tendo em vista a observância do princípio da predominância do interesse, é marcado pela complexidade, não incomum chamar-se o Supremo a solucionar problemas de coordenação e sobreposição de atos legislativos, especialmente federais e estaduais.” (ADI 6204, sessão plenária de 14 a 20 de fevereiro de 2020, trechos de voto do Ministro Marco Aurélio)

Pois bem, considerando que o Supremo Tribunal Federal foi chamado a se manifestar sobre o alcance dos termos atinentes aos serviços públicos e atividades essenciais postos na MP n. 926, a complexidade, ambiência e alcance da discussão – editada essa medida para disciplinar regras ao combate à crise da COVID-19 -, entendemos que a resolução para a matéria já foi posta pela própria Corte Suprema, no sentido conclusivo de sempre ser necessário formular o questionamento da prévia existência de norma federal regulamentando determinada situação conflituosa, e, se sim, a solução resposta é a de que deverá sobressair a competência maior (federal) sobre a menor (estadual); o que em conclusão assumimos ser a hipótese resolutiva para a constitucionalidade da MP n. 926/2020.

É imperioso informar que tivemos de dar continuidade ao artigo dias após a conclusão desse expediente, pois o articulista foi, assim como muitos dos leitores, surpreendido com decisão liminar parcialmente deferida pela mesma Corte Suprema, agora nos autos da ADPF 672

RECONHECENDO E ASSEGURANDO O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS GOVERNOS ESTADUAIS E DISTRITAL E SUPLEMENTAR DOS GOVERNOS MUNICIPAIS, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, …; INDEPENTEMENTE DE SUPERVINIÊNCIA DE ATO FEDERAL EM SENTIDO CONTRÁRIO, sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário”

A decisão em comento sinaliza ser de rigidez pedagógica ainda maior do que a anteriormente proferida pelo próprio Supremo Tribunal Federal, mas, insistimos, fortes em nossos argumentos, tal posicionamento ainda não tem o condão de afastar o equívoco que vem sendo cometido pela Corte na discussão e aplicação para o tema competência concorrente legislativa, conforme acima apontamos.

Não fosse bastante, mas sem prejuízo ao todo aposto, temos que em Suspensão de Segurança movida pelo Município de Teresina (SS 5362) a presidência da Corte indeferiu cautelar que buscava vedar o funcionamento de empresa industrial; isto, em razão da crise da COVID-10, fundada a decisão no argumento de que a autoridade municipal somente poderia legislar e impor “restrição à circulação de pessoas,” com “respaldado em recomendação técnica e fundamentada da ANVISA, o que não ocorre na espécie.”.

Ou seja, em sessão plenária virtual prevista para ocorrer no curso da semana caberá ao próprio Supremo Tribunal Federal desatar o “nó górdio” para a matéria da competência concorrente legislativa, uma vez que em um primeiro momento informou ser necessário reforçar o cunho pedagógico da jurisprudência do Tribunal (ADI n. 6341) sobre a matéria para, em momento seguinte, determinar que as lições sobre o assunto eram de ordem ainda mais restritiva (ADPF 672), e, ato – quase – contínuo, consignar que há barreiras instransponíveis ao didatismo que buscam adotar os entes menores, quando não observado o quanto já disciplinado pelo ente maior.

Aguarda-se, então, que a Corte Suprema garanta aos jurisdicionados um mínimo de segurança jurídica no momento de firmar entendimento sobre o tema aqui apresentado, oportunidade que terá para se posicionar e afirmar em qual dosagem, proporção, amplitude e razoabilidade é admitida a competência concorrente legislativa, inclusive a denominada suplementar.