José Eduardo Faria

<blockquote class="jota-article__quote">“A falsidade deliberada trata com fatos contingentes, ou seja, com coisas que não trazem em si nenhuma verdade inerente, nenhuma necessidade de ser como são.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Hannah Arendt</footer>
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Dois dias depois de um <a href="https://www.jota.info/eleicoes/de-anitta-a-luciano-huck-artistas-reagem-a-veto-do-tse-a-atos-politicos-no-lollapalooza-28032022">ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter acolhido recurso</a> apresentado por um partido político governista, que, sob a justificativa de que a legislação proíbe atos políticos em shows antes do início da campanha eleitoral, pedia a aplicação de uma multa a uma cantora que elogiara o ex-presidente Lula num festival de música, o presidente da República fez algo semelhante. Ele não apenas <a href="https://www.jota.info/eleicoes/candidatos-a-presidencia-em-2022-quem-sao-23032022">lançou sua candidatura à reeleição</a>, infringindo a mesma legislação, como também afrontou as instituições de direito afirmando que “embrulha o estômago ter de cumprir a Constituição".
A hipocrisia do presidente e de seu entorno, que não hesitam em bater nas portas dos tribunais para barrar atos de seus adversários, mas não hesitam em agredir a ordem constitucional quando ela não lhes favorece, é só um lado do problema. Desde sua posse, o inquilino do Planalto sempre recorreu à hipocrisia, radicalizando seu discurso contra adversários. A estratégia é conhecida, demagógica e torpe. O objetivo do presidente é criar inimigos, agredi-los moralmente e deslocar o eixo das discussões para questões menores, o que mascara ou oculta sua inépcia perante o eleitorado.
O outro lado do problema envolve o uso reiterado da mentira, a repetitiva negação da verdade dos fatos e a guerra de narrativas na vida política – temas que há mais de meio século foram objeto de dois brilhantes ensaios da filósofa alemã radicalizada nos Estados Unidos Hannah Arendt (1906-1975). Um desses ensaios foi publicado no livro "Entre o passado e o futuro", lançado em 1954. O outro foi publicado na coletânea "Crises da República", de 1969. Nesses dois textos, especialmente no segundo, a autora lembra que a capacidade de mentir e a capacidade de agir com o objetivo de mudar os fatos sempre tiveram uma mesma fonte: a imaginação.
Fatos necessitam de testemunho para serem lembrados e de testemunhas de confiança para se estabelecerem. Contudo, o problema é que as mentiras muitas vezes são mais plausíveis do que esses testemunhos, pois os mentirosos têm a vantagem de saber de antemão o que as plateias desejam ou esperam ouvir, diz ela. Por isso, políticos que mentem de modo contumaz, como o atual presidente, costumam preparar muito bem suas narrativas, para torná-las críveis perante o público. Já os políticos mais responsáveis e não mentirosos muitas vezes se atrapalham quando surgem fatos inesperados com os quais não estão preparados para lidar.
O problema muda de figura quando as discussões, em vez de fatos, envolvem princípios. “O mentiroso que consegue enganar com quantas falsidades comuns quiser verá que é impossível enganar com mentiras de princípios éticos, morais e políticos. Esta é uma das lições que podiam ter sido aprendidas das experiências totalitárias e da assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira – na capacidade de reescreverem a história uma e outra vez para adaptar o passado à linha política do momento presente, ou de eliminarem dados que não se ajustam às suas ideologias”, afirma Arendt.
Todavia, lembra a autora, a mentira só é eficiente quando o político mentiroso tem clara ideia da verdade que tenta esconder. Por isso, há sempre um ponto em que a mentira acaba se tornando contraproducente. E ele surge, justamente, quando o auditório para o qual as mentiras são dirigidas é forçado a menosprezar a fronteira entre a verdade e a falsidade. Nesse momento, “já não importa mais o que seja, se sua vida depende de você agir como se acreditasse; a verdade digna de confiança desaparece por completo da vida pública e, com ela, o principal fator de estabilização nos cambiantes assuntos dos homens. Nesse sentido, mesmo que não prevaleça em público, a verdade possui uma primazia inerradicável sobre qualquer falsidade”, lembra a autora.
Decorre daí a importância das liberdades de expressão, de manifestação do pensamento e de opinião, diz Arendt – seja em espetáculos artísticos ou em textos publicados pela imprensa livre, digo eu. Não foi por acaso que, no show de música em que uma cantora elogiou o adversário do atual presidente no pleito de outubro próximo, a cúpula do bolsonarismo rapidamente apelou para o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tse">TSE</a> com o objetivo de intimidar a classe artística, tentando evitar que seus membros façam manifestações políticas em favor de candidatos de oposição. E também não foi por acaso que, todas as vezes em que o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) decide contrariamente aos seus interesses, o presidente da República afronta alguns de seus ministros e afirma que “cumprir a Constituição embrulha o estômago”.
Retomando outro argumento de Hannah Arendt, cujo pensamento se destaca por uma incrível atualidade no atual momento brasileiro, enquanto essa corte continuar preservando a Constituição, o direito à informação não manipulada dos fatos, “sem a qual a liberdade de opinião não passaria de uma farsa cruel”, estará garantido. Por mais tosco, ignaro e carente de princípios éticos, morais e políticos que seja, o atual inquilino do Palácio do Planalto tem clara consciência disso. Não por leitura, mas por intuição, ele sabe, como dizia Arendt, que “a verdade nunca esteve entre as virtudes políticas” e que “as mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis” na vida política.
Foi justamente por isso que, em vez de comemorar a vitória que obteve sexta-feira no TSE, o presidente da República optou por tentar, mais uma vez, desqualificar a Constituição em sua inconsequente e irresponsável arenga no domingo.

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JOTA

Bolsonaro afronta as instituições de direito ao afirmar que 'embrulha o estômago ter de cumprir a Constituição'

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